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Conto

O Anjo Rafael

1869
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das famílias, em outubro, novembro e dezembro de 1869, assinado por Victor de Paula. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

III

Ora, o nosso herói teve um sonho durante o curto espaço de tempo que dormiu. Sonhou que, tendo executado o seu plano de suicídio, fora levado para a cidade das dores eternas, onde Belzebu o destinava a ser perpetuamente queimado numa imensa fogueira. O infeliz fazia as suas objeções ao anjo do reino escuro; mas este, com uma única resposta, reiterava a ordem dada. Quatro chanceleres infernais lançaram mão dele e o lançaram ao fogo. O doutor deu um grito e acordou.

Saía de um sonho para entrar em outro.

Levantou-se espantado; não conhecia o quarto em que se achava, nem a cama em que dormira. Mas pouco a pouco foi-lhe reproduzindo a memória todos os incidentes da véspera. O sonho tinha sido um mal imaginário; mas a realidade era um mal positivo. O rapaz teve ímpetos de gritar; reconheceu, porém, a inutilidade do recurso; preferiu esperar.

Não esperou muito; daí alguns minutos ouviu o ruído da chave na fechadura.

Entrou o criado.

Trazia na mão as folhas do dia.

- Já de pé!

- Sim - respondeu o Dr. Antero -. Que horas são?

- Oito horas. Aqui tem as folhas de hoje. Olhe, ali tem um lavatório.

O doutor não havia reparado ainda no lavatório; a preocupação tinha-lhe feito esquecer a lavagem do rosto; tratou de remediar o esquecimento.

Enquanto lavava o rosto, perguntou-lhe o criado:

- A que horas almoça?

- Almoçar?

- Sim, almoçar.

- Pois eu vou ficar aqui?

- São as ordens que tenho.

- Mas, enfim, estou ansioso por falar a esse major que não conheço, e que me tem preso sem que eu saiba por que motivo.

- Preso! - exclamou o criado -. O senhor não está preso; meu amo quer falar-lhe, e por isso é que eu o fui chamar; deu-lhe quarto, cama, dá-lhe um almoço; creio que isto não é tê-lo preso.

O doutor tinha enxugado o rosto, e sentou-se numa poltrona.

- Mas que me quer teu amo? - perguntou ele.

- Isso não sei - respondeu o criado -. A que horas quer o almoço?

- A que for do teu gosto.

- Bem - respondeu o criado -. Aqui tem as folhas.

O criado fez um respeitoso cumprimento ao doutor e saiu fechando a porta.

Cada minuto que passava era para o desgraçado moço um século de angústia. O que mais o torturava eram precisamente aquelas atenções, aqueles obséquios sem explicação possível, sem presumível desfecho. Que homem seria esse major, e que lhe queria ele? O doutor fez mil vezes esta pergunta a si mesmo sem achar resposta possível.

Do criado já sabia ele que nada poderia alcançar; além de novo na casa, parecia absolutamente estúpido. Seria honesto?

O Dr. Antero fez esta última reflexão metendo a mão no bolso e tirando a carteira. Restavam-lhe ainda uns cinquenta mil-réis.

"É quanto basta", pensou ele, "para conseguir deste pateta que me ponha fora daqui."

O doutor esquecia que já na véspera o criado recusara dinheiro em troca de um serviço menos importante.

Às nove horas o criado voltou trazendo numa bandeja um almoço delicado e apetitoso. Apesar da gravidade da situação, o nosso herói atacou o almoço com uma intrepidez de verdadeiro general de mesa. Dentro de vinte minutos só restavam nos pratos mortos e feridos.

Ao mesmo tempo que comia ia ele interrogando o criado.

- Dize-me cá; queres fazer-me um grande favor?

- Qual?

- Tenho aqui cinquenta mil-réis à tua disposição, e amanhã posso dar-te mais cinquenta, ou cem, ou duzentos; em troca disto peço-te que arranjes meio de me pôr fora desta casa.

- Impossível, senhor - respondeu o criado sorrindo -; eu só obedeço a meu amo.

- Sim; mas teu amo nunca virá a saber que eu te dei dinheiro; tu podes dizer-lhe que a minha fuga foi devida a um descuido, e deste modo ficamos ambos salvos.

- Eu sou honrado; não posso aceitar o seu dinheiro.

O doutor ficou desanimado com a austeridade do fâmulo; bebeu o resto do borgonha que tinha no copo, e levantou-se fazendo um gesto de desespero.

O criado não se impressionou; preparou o café para o hóspede e foi oferecer-lhe. O doutor bebeu dous ou três goles e restituiu-lhe a xícara. O criado arrumou a louça na bandeja e saiu.

No fim de meia hora voltou o criado dizendo que seu amo estava pronto para receber o Dr. Antero.

Conquanto o doutor desejasse sair da situação em que se achava, e saber o fim para que o haviam mandado buscar, nem por isso o impressionou menos a ideia de ir ver enfim o terrível e desconhecido major.

Lembrou-se que podia haver algum perigo, e instintivamente apalpou a algibeira; esquecia-se de que ao deitar-se tinha posto a pistola debaixo do travesseiro. Era impossível tirá-la à vista do criado; resignou-se.

O criado fê-lo sair primeiro, fechou a porta e seguiu adiante para guiar o mísero doutor. Atravessaram o corredor por onde haviam passado na véspera; depois entraram em outro corredor, que ia ter a uma pequena sala. Aí disse o criado ao doutor que esperasse enquanto ia dar parte a seu amo, e, penetrando numa sala que ficava à esquerda, voltou pouco depois dizendo que o major Tomás esperava o Dr. Antero.

O doutor passou à outra sala.

IV

Estava ao fundo, sentado numa poltrona de couro, um velho alto e magro, envolvido num largo chambre amarelo.

O doutor deu apenas alguns passos e parou; mas o velho, apontando-lhe para uma cadeira que lhe ficava defronte, convidou-o a sentar.

O doutor obedeceu imediatamente.

Houve um curto silêncio, durante o qual o Dr. Antero pôde examinar a figura que tinha diante de si.

Os cabelos do major Tomás eram completamente brancos; a tez era pálida e macilenta. Os olhos, vivos, mas encovados; dissera-se a luz de uma vela prestes a extinguir-se, e soltando do fundo do castiçal os seus últimos lampejos.

Os beiços do velho eram finos e brancos; e o nariz, curvo como um bico de águia, assentava sobre um par de bigodes da cor dos cabelos; os bigodes eram a base daquela enorme coluna.

O aspecto do major poderia causar menos desagradável impressão, se não fossem as bastas e cerradas sobrancelhas, cujas pontas internas vinham ligar-se na parte superior do nariz; além disso o velho contraía constantemente a testa, o que lhe produzia uma enorme ruga que, vista de longe, dava ares de ser uma continuação do nariz.

Independentemente das circunstâncias especiais em que o doutor se achava, a figura do major inspirava um sentimento de medo. Podia ser uma excelente pessoa; mas o seu aspecto repugnava à vista e ao coração.

O Dr. Antero não ousava romper o silêncio; e limitava-se a contemplar o homem. Este olhava alternativamente para o doutor e para as unhas. As mãos do velho pareciam garras; o Dr. Antero já as estava sentindo cravadas em si.

- Estou falando ao Dr. Antero da Silva? - perguntou lentamente o major.

- Um seu criado.

- Criado de Deus - respondeu o major com um sorriso estranho.

Depois continuou:

- Doutor em medicina, não?

- Sim, senhor.

- Conheci muito seu pai; fomos companheiros no tempo da Independência. Era ele mais velho do que eu dous anos. Pobre coronel! Ainda hoje sinto a tua morte.

O moço respirou; a conversa levava um bom caminho; o major confessava-se amigo de seu pai, e lhe falava nele. Animou-se um pouco, e disse:

- Também eu, Sr. major.

- Bom velho! - continuou o major -. Sincero, alegre, valente...

- É verdade.

O major levantou-se um pouco apoiando as mãos nos braços da poltrona, e disse com voz surda:

- E mais que tudo, era obediente àqueles que têm uma origem no céu!

O doutor arregalou os olhos; não compreendera bem o sentido das últimas palavras do major. Não podia supor que aludisse aos sentimentos religiosos de seu pai, que era tido no seu tempo como um profundo materialista.

Contudo, não quis contrariar o velho, e procurou ao mesmo tempo obter uma explicação.

- É exato - disse o rapaz -; meu pai era profundamente religioso.

- Religioso não basta - respondeu o major brincando com os cordões do chambre -; conheço muita gente religiosa que não respeita os enviados do céu. Creio que o senhor foi educado com as mesmas ideias de seu pai, não?

- Sim, senhor - balbuciou o Dr. Antero aturdido com as palavras enigmáticas do major.

Este, depois de esfregar as mãos e torcer o bigode repetidas vezes, perguntou ao seu interlocutor:

- Diga-me, foi bem tratado em minha casa?

- Magnificamente.

- Pois aqui vai morar a seu gosto e o tempo que lhe parecer.

- Teria muita honra nisso - respondeu o doutor -, se pudesse dispor do meu tempo; há de consentir, pois, que eu recuse por enquanto o seu oferecimento. Apressei-me a vir ontem por causa do bilhete que me mandou. Que me quer V. Exa.?

- Duas cousas: a sua companhia e o seu casamento; dou-lhe em troca uma fortuna.

O doutor olhou espantado para o velho, e este, compreendendo o espanto do rapaz, disse-lhe sorrindo:

- De que se admira?

- Eu...

- Do casamento, não é?

- Sim, confesso que... Não sei como mereço essa honra de ser convidado para noivo mediante uma fortuna.

- Compreendo o seu espanto; é próprio de quem foi educado lá fora; eu cá procedo de modo contrário ao que se pratica nesse mundo. Mas vamos, aceita?

- Antes de tudo, Sr. major, responda: por que se lembrou de mim?

- Fui amigo de seu pai; quero prestar-lhe esta homenagem póstuma, dando ao senhor em casamento a minha única filha.

- Trata-se então de sua filha?

- Sim, senhor; trata-se de Celestina.

Os olhos do velho tornaram-se mais vivos que nunca ao pronunciar o nome da filha.

O Dr. Antero olhou algum tempo para o chão e respondeu:

- Bem sabe que o amor é que faz os casamentos felizes. Entregar uma moça a um rapaz a quem ela não ama é dar-lhe um suplício...

- Suplício! Ora, aí vem o senhor com a linguagem lá de fora. Minha filha ignora até o que seja amor; é um anjo na raça e na candura.

Dizendo estas últimas palavras o velho olhou para o teto e ficou assim durante algum tempo como se contemplasse alguma cousa invisível aos olhos do rapaz. Depois, abaixando outra vez os olhos, continuou:

- A sua objeção não vale nada.

- Tenho outra; é justo que aqui dentro não exista a mesma ordem de ideias que há lá fora; mas é natural que os que são lá de fora não partilhem as mesmas ideias cá de dentro. Por outros termos, eu não desejaria casar com uma moça sem amá-la.

- Aceito a objeção; estou certo que apenas a vir ficará morrendo por ela.

- É possível.

- É certo. Ora, pois, vá para o seu quarto; à hora do jantar mandá-lo-ei chamar; jantaremos os três.

O velho levantou-se e foi a um canto da sala puxar pelo cordão de uma campainha. O Dr. Antero teve ocasião de ver então a estatura do major, que era alta e até certo ponto majestosa.

Acudiu o criado e o major deu-lhe ordem de conduzir o doutor para o quarto.

V

Quando o doutor se achou só no quarto entrou a meditar na situação conforme se lhe desenhara ela depois da conversa com o major. O velho parecia-lhe singularmente extravagante, mas falava-lhe do pai, mostrava-se afável, e afinal de contas oferecia a filha e uma riqueza. O espírito do moço estava mais um pouco tranquilo.

É verdade que ele opusera objeções à proposta do velho, e parecera agarrar-se a todas as dificuldades, por menores que fossem. Mas eu não posso ocultar que a resistência do rapaz era talvez menos sincera do que ele próprio pensava. A perspectiva da riqueza disfarçou por algum tempo a singularidade da situação.

A questão agora era ver a moça; se fosse bonita; se tivesse uma fortuna, que mal havia em se casar ele com ela? O doutor aguardou a hora do jantar com uma impaciência a que já não eram estranhos os cálculos da ambição.

O criado tinha-lhe posto à disposição um guarda-roupa, e meia hora depois serviu-lhe um banho. Satisfeitas essas necessidades de asseio, o doutor deitou-se na cama e tirou à vontade um dos livros que se achavam sobre a mesa. Era um romance de Walter Scott. O rapaz, educado com o estilo de telegrama dos livros de Ponson du Terrail, adormeceu logo à segunda página.

Quando acordou era tarde; recorreu ao relógio, e achou-o parado; esquecera-se de lhe dar corda.

Receava que o criado o tivesse vindo chamar, e se retirasse por encontrá-lo a dormir. Era estrear mal a sua vida na casa de um homem que talvez fizesse dele aquilo de que já nem tinha esperanças.

Imagine-se, pois, a ansiedade com que ele esperou as horas.

Valia-lhe, porém, que, apesar dos receios, a sua imaginação trabalhava sempre; e era de ver o quadro que ela desenhava no futuro, os castelos que construía no ar: credores pagos, casas magníficas, salões, bailes, carros, cavalos, viagens, mulheres enfim, porque nos sonhos do Dr. Antero havia sempre uma ou duas mulheres.

O criado veio enfim chamá-lo.

A sala do jantar era pequena, mas ornada com muito gosto e simplicidade.

Quando o doutor entrou não havia ninguém; mas pouco depois entrou o major, já vestido com uma sobrecasaca preta abotoada até o pescoço e contrastando com a cor branca dos seus cabelos e bigodes e a tez pálida do rosto.

O major sentou-se à cabeceira da mesa, e o doutor, à esquerda; a cadeira da direita estava reservada para a filha do major.

Mas onde estava a moça? O doutor quis fazer a pergunta ao velho; mas reparou a tempo que a pergunta seria indiscreta.

E sobre indiscreta, seria inútil, porque alguns minutos depois abriu-se uma porta que ficava fronteira ao lugar em que o doutor estava sentado, e apareceu uma criada anunciando a chegada de Celestina.

O velho e o doutor levantaram-se.

A moça apareceu.

Era uma figura delgada e franzina, nem alta nem baixa, mas extremamente airosa. Não andou, deslizou da porta à mesa; seus pés deviam ser asas de pomba.

O doutor ficou profundamente surpreendido com a aparição; até certo ponto contava com uma rapariga nem bonita nem feia, uma espécie de fardo que só podia ser carregado aos ombros de uma fortuna.

Pelo contrário, tinha diante de si uma verdadeira beleza.

Era, com efeito, um rosto angélico; transluzia-lhe no semblante a virgindade do coração. Os olhos serenos e doces pareciam feitos para a contemplação; os cabelos louros e caídos em cachos naturais assemelhavam-se a uma auréola. A tez era alva e finíssima; todas as feições eram de uma harmonia e correção admiráveis. Rafael podia copiar dali uma das suas virgens.

Vestia de branco; uma fita azul, presa à cintura, delineava-lhe o talhe elegante e gracioso.

Celestina dirigiu-se ao pai e beijou-lhe a mão; depois cumprimentou sorrindo ao Dr. Antero, e sentou-se na cadeira que lhe estava destinada.

O doutor não tirava os olhos dela. No espírito superficial daquele homem entrava a descobrir-se uma profundidade.

Pouco depois de sentar-se, a moça voltou-se para o pai e perguntou-lhe:

- Este senhor é o que vai ser meu marido?

- É - respondeu o major.

- É bonito - disse ela sorrindo para o rapaz.

Havia tanta candura e simplicidade na pergunta e na observação da moça, que o doutor voltou instintivamente a cabeça para o major, com ímpetos de perguntar-lhe se devia acreditar nos seus ouvidos.

O velho compreendeu o espanto do rapaz, e sorriu maliciosamente. O doutor olhou outra vez para Celestina, que o contemplava com uma admiração tão natural e tão sincera, que o rapaz chegou... a corar.

Começaram a jantar.

A conversa começou tolhida e esquerda, por causa do doutor, que caminhava de espanto em espanto; mas dentro de pouco tornou-se expansiva e franca.

Celestina era a mesma afabilidade do pai, realçada pelas graças da juventude, e mais ainda por uma singeleza tão agreste, tão nova, que o doutor se julgava transportado a uma civilização desconhecida.

Quando acabaram o jantar passaram à sala da sesta. Chamava-se assim uma espécie de galeria de onde se descortinavam os arredores da casa. Celestina deu o braço ao doutor sem que este lho oferecesse e seguiram os dous adiante do major, que ia resmungando uns salmos de Davi.

Na sala da sesta sentaram-se os três; era a hora do crepúsculo; as montanhas e o céu começavam a despir os véus da tarde para vestir os da noite. A hora era propícia aos enlevos; o Dr. Antero, posto que educado em outra ordem de sensações, sentia-se arrebatado docemente nas asas da fantasia.

A conversa versou sobre mil cousas de nada; a moça disse ao doutor que tinha dezessete anos, e perguntou a idade dele. Depois, contou por menor todos os hábitos da sua vida, as suas prendas e o seu gosto pelas flores, o seu amor às estrelas, tudo isso com uma graça que tirava um pouco da juventude e um pouco da infância.

Voltou-se ao assunto do casamento, e Celestina perguntou se o rapaz tinha dúvida em casar com ela.

- Nenhuma - disse ele -; pelo contrário, tenho sumo prazer... é uma felicidade para mim.

- Que lhe disse eu? - perguntou o pai de Celestina -. Eu já sabia que bastava vê-la para ficá-la amando.

- Então posso contar que seja meu marido, não?

- Sem dúvida - disse o doutor sorrindo.

- Mas o que é marido? - perguntou Celestina, depois de alguns instantes.

A esta pergunta inesperada, o rapaz não pôde reprimir um movimento de surpresa. Olhou para o velho major; mas este, encostado na larga poltrona em que se achava sentado, começava a adormecer.

A moça repetia com os olhos a pergunta feita com os lábios. O doutor envolveu-a com um olhar de amor, talvez o primeiro que teve em sua vida; depois pegou docemente na mão de Celestina e levou-a aos lábios.

Celestina estremeceu toda e soltou um pequeno grito, que fez acordar sobressaltado o major.

- Que é? - disse este.

- Foi meu marido - respondeu a moça - que tocou com a boca dele na minha mão.

O major levantou-se, olhou severamente para o rapaz, e disse à filha:

- Está bem, vai para o teu quarto.

A moça ficou um pouco surpreendida com a ordem do pai, mas obedeceu imediatamente, despedindo-se do rapaz com a mesma descuidosa simplicidade com que lhe falara pela primeira vez.

Quando os dous ficaram sós, o major pegou no braço do doutor, e disse-lhe:

- Meu caro senhor, respeite as pessoas do céu; quero um genro, não quero um tratante. Ora, cuidado!

E saiu.

O Dr. Antero ficou atônito com as palavras do major; era a terceira vez que lhe falava em pessoas ou enviados do céu. Que queria dizer com aquilo?

Pouco depois veio o criado com ordem de acompanhá-lo até o quarto; o doutor obedeceu sem fazer objeção.

VI

A noite foi má para o Dr. Antero; acabara de assistir a cenas tão estranhas, ouvira palavras tão misteriosas, que o pobre moço perguntou a si mesmo se não era vítima de um sonho.

Infelizmente não era.

Aonde iria dar aquilo tudo? Qual o resultado da cena da tarde? O rapaz temia, mas já não ousava pensar na fuga; a ideia da moça começava a ser um vínculo.

Dormiu tarde e mal; foram-lhe agitados os sonhos.

No dia seguinte levantou-se cedo, e recebeu do criado as folhas do dia. Enquanto não vinha a hora do almoço, quis ler as notícias do mundo, do qual parecia estar separado por um abismo.

Ora, eis aqui o que encontrou no Jornal do Commercio:

Suicídio. Anteontem, à noite, o Dr. Antero da Silva, depois de dizer ao seu criado que saísse e só voltasse de madrugada, encerrou-se no quarto da casa que ocupava à rua da Misericórdia, e escreveu a carta que os leitores encontrarão adiante.
Como se vê dessa carta, o Dr. Antero da Silva declarava a sua intenção de matar-se; mas a singularidade do caso é que, voltando o criado para casa de madrugada, encontrou a carta, mas não encontrou o amo.
O criado deu imediatamente parte à polícia, que empregou todas as diligências a ver se obtinha notícia do jovem doutor.
Com efeito, depois de bem combinadas providências, encontrou-se na praia de Santa Luzia um cadáver que se reconheceu ser o do infeliz moço. Parece que, apesar da declaração de que empregaria a pistola, o desgraçado procurou outro meio menos violento de morte.
Supõe-se que uma paixão amorosa o levou a cometer este ato; outros querem que fosse por fugir aos credores. A carta entretanto reza de outros motivos. Ei-la.

Aqui seguia a carta que vimos no primeiro capítulo.

A leitura da notícia produziu no Dr. Antero uma impressão singular; estaria ele morto deveras? Teria já saído do mundo da realidade para o mundo dos eternos sonhos? Era tão extravagante tudo o que lhe acontecia desde a antevéspera, que o pobre rapaz sentiu por um instante vacilar-lhe a razão.

Mas pouco a pouco voltou à realidade das cousas; interrogou a si e a tudo o que o rodeava; releu atentamente a notícia; a identidade reconhecida pela polícia, que ao princípio o impressionara, fê-lo sorrir depois; e não menos o fez sorrir um dos motivos que se dava ao suicídio, o motivo de paixão amorosa.

Quando o criado voltou, pediu-lhe o doutor notícia circunstanciada do major e de sua filha. A moça estava boa; quanto ao major, disse o criado que lhe ouvira de noite alguns soluços, e que de manhã se levantara abatido.

- Admira-me isto - acrescentou o criado -, porque não sei que tivesse motivo para chorar, e além disso o amo é um velho alegre.

O doutor não respondeu; sem saber por quê, atribuía-se a causa daqueles soluços do velho; foi a ocasião do seu primeiro remorso.

O criado disse-lhe que o almoço o esperava; o doutor dirigiu-se para a sala de jantar, onde achou o major realmente um pouco abatido. Foi direito a ele.

O velho não se mostrou ressentido; falou-lhe com a mesma bondade da véspera. Pouco depois chegou Celestina, bela, descuidosa, inocente como da primeira vez; beijou a testa do pai, apertou a mão ao doutor e sentou-se no seu lugar. O almoço correu sem incidente; a conversa nada teve de notável. O major propôs que na tarde desse dia Celestina executasse ao piano alguma composição bonita, para que o doutor pudesse apreciar os seus talentos.

Entretanto a moça quis mostrar ao rapaz as suas flores, e o pai deu-lhe licença para isso; a um olhar do velho a criada de Celestina acompanhou os dous futuros noivos.

As flores de Celestina estavam todas em meia dúzia de vasos, postos sobre uma janela do seu gabinete de leitura e trabalho. Chamava ela aquilo o seu jardim. Bem pequeno era ele, e pouco tempo exigia para o exame; ainda assim, o doutor tratou de prolongá-lo o mais que pôde.

- Que me diz a estas violetas? - perguntou a moça.

- São lindíssimas! - respondeu o doutor.

Celestina arranja as folhas com sua mãozinha delicada; o doutor adiantou a sua mão para tocar nas folhas também; os dedos de ambos se encontraram; a moça estremeceu, e baixou os olhos; um leve rubor coloriu-lhe as faces.

O rapaz receou que daquele involuntário encontro pudesse nascer algum motivo de remorso para ele, e tratou de retirar-se. A moça despediu-se, dizendo:

- Até logo, sim?

- Até logo.

O doutor saiu do gabinete de Celestina, e já entrava a pensar como daria com o caminho para o seu quarto, quando encontrou à porta o criado, que se preparou para acompanhá-lo.

- Tu pareces a minha sombra - disse-lhe o doutor sorrindo.

- Sou apenas um criado do senhor.

Entrando no quarto ia o rapaz cheio de vivas impressões; a pouco e pouco sentia-se transformado pela moça; até os receios se lhe dissipavam; parecia-lhe que ao pé dela não devia recear cousa nenhuma.

Os jornais estavam ainda em cima da mesa; perguntou ao criado se seu amo costumava a lê-los. O criado respondeu que não, que ninguém os lia em casa, e tinham sido assinados só por causa dele.

- Só por minha causa?

- Só.

A+
A-