Conto

Nem Uma Nem Outra

1873
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em agosto, setembro e outubro de 1873, assinado por J.J. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

VIII

O leitor já há de ter notado o procedimento ambíguo e obscuro de Correia. Ora animava o namoro de Delfina e Vicente; ora aconselhava ao amigo que não perdesse Clara de vista.

Quando estava com Clara, lançava-lhe no espírito o germe da suspeita.

Finalmente, por vontade ou não, fizera com que Delfina se apaixonasse por ele; e um belo dia resolvera ir pedi-la ao pai.

Eu podia dispensar-me de dar as razões deste procedimento do rapaz. Não era ele amigo de Vicente? A utilidade de um amigo, em geral, não é outra. Entretanto, convém dar dois motivos capitais.

O primeiro era a riqueza de Delfina, herdeira única do capitão Ferreira; a outra era uma ofensa praticada por Vicente contra a pessoa de Correia.

Ofensa grave, questão de honra? Não; uma simples ofensa de amor-próprio. Correia nunca lha perdoou. O momento era azado para vingar-se.

Quando Correia pediu ao capitão a mão de Delfina, este não se mostrou surpreso; adivinhara o amor dos dois, e, visto que a filha se dispunha a casar com o outro, abandonou a causa do sobrinho, que aliás não o interessava.

- Ela gosta do senhor - disse o capitão.

- Não sei.

- Gosta que eu sei. Pela minha parte não me oponho; casem-se e sejam felizes.

Unicamente para aceder à fórmula, mandou chamar a filha e declarou-lhe o pedido que Correia lhe fizera. A menina baixou os olhos; é do programa; e murmurou um sim tão sumido que parecia não vir de dentro d`alma quando não vinha doutra parte.

- Meu caro genro - disse o capitão sentenciosamente -, guardado está o bocado para quem o há de comer. Vim à corte para que Delfina casasse com Vicente, e vou para a roça com o genro que não esperava nem conhecia. Digo isto porque eu volto para a roça e não posso separar-me de Delfina.

- Acompanhá-lo-ei - respondeu Correia.

O capitão achou conveniente participar a Vicente o casamento da filha, mas desde logo viu o que havia de delicado naquilo, não porque cuidasse ferir-lhe o coração, já livre de uma momentânea impressão, mas porque sempre lhe seria ferir o amor-próprio.

Havia três dias que Vicente não aparecia.

- Ia escrever-te - disse o capitão.

- Por quê?

- Dar-te uma notícia de que te vais admirar.

- Qual?

- Delfina casa-se.

- A prima?

- Sim.

Houve um pequeno silêncio; a notícia abalou o rapaz, que ainda gostava da moça, apesar da diversão dos ciúmes por Clara.

O velho esperou alguma observação por parte de Vicente, e, vendo que ela não aparecia, continuou:

- É verdade, casa-se daqui a dois meses.

- Com quem? - perguntou Vicente.

- Com o Correia.

Quando Vicente perguntou pelo noivo de Delfina, já o desconfiara, por se lembrar de que uma noite reparara em certos olhares trocados entre os dois.

Mas a declaração do tio não deixou de o abalar profundamente; um pouco de amor e um pouco de despeito causaram essa impressão.

A conversa ficou neste ponto; Vicente saiu.

Compreende-se a situação do rapaz.

Quando saiu da casa do tio mil ideias lhe tumultuavam na cabeça. Queria ir brigar com o rival, reclamar de Delfina a promessa tácita que lhe fizera, mil projetos, todos mais extravagantes uns que outros.

Na posição em que se achava, o silêncio era a melhor solução. Tudo mais era ridículo.

Mas o despeito é um mau conselheiro.

Agitado por esses sentimentos, entrou Vicente em casa, onde não encontrava ao menos o amor de Clara.

A moça com efeito estava cada vez mais fria e indiferente ao amor de Vicente. Não se alegrava com as suas alegrias, nem se entristecia com as suas tristezas.

Vicente passou uma noite de desespero.

Preparava-se, entretanto, o casamento.

Vicente achou que não devia voltar à casa do tio, nem procurar o feliz rival. Mas oito dias depois de saber oficialmente do casamento de Delfina, recebeu ele de Correia a seguinte carta:

Meu Vicente,

Tenho hesitado em participar-te uma notícia de que aliás já estás inteirado: caso-me com tua prima. Eu nunca teria pensado em semelhante cousa, se não visse que tu depois de um ligeiro namoro ficaste indiferente ao destino da moça.
É claro que já te não importas com ela.
O fato de não a amares abriu a porta ao meu coração, que desde muito se sentia impressionado.
Amamo-nos ambos, e o casamento será daqui a cinquenta dias.
Espero que o aproves.
Já era teu amigo; agora fico sendo teu parente.
Não precisava isto para apertar os laços de amizade que nos unem.

Teu

Correia

Vicente leu pasmado esta carta, em que a audácia da hipocrisia não podia ir mais longe.

Não respondeu.

"Deste modo", pensou Vicente, "ele compreenderá que o desprezo e virá talvez pedir-me uma explicação."

Nisto enganou-se o rapaz.

Correia não pedira explicações, nem esperava resposta à carta. A carta era mais um ato de insolência que de hipocrisia. O rapaz queria machucar completamente o amigo.

Vicente esperou debalde uma visita de Correia.

A indiferença exasperou-o ainda mais.

Acrescenta-se a isto a situação dele em relação de Clara, que era cada vez pior. Dos arrufos tinham passado às grandes rixas, e a última fora revestida de graves circunstâncias.

Chegou finalmente o dia do casamento de Delfina.

Júlia escolheu também esse dia para casar-se.

Os dois casamentos se fizeram na mesma igreja.

Estas circunstâncias, além de outras, aproximaram Correia de Castrioto. Os dois noivos trataram juntos dos preparativos da festa dupla em que eles eram heróis.

Na véspera do casamento, Castrioto foi dormir em casa de Correia.

- Conversemos das nossas noivas - disse Correia ao romancista.

- Apoiado - respondeu este.

Com efeito, lá se apresentou às dez horas, depois de sair da casa de Alvarenga, onde se despedira da namorada pela última vez, para cumprimentá-la no dia seguinte como noiva.

- Com que então amanhã - disse Correia - estamos casados.

- É verdade - respondeu Castrioto.

- Ainda me parece um sonho.

- E a mim! Pois há seis meses que namoro esta moça sem esperança de conseguir nada. O senhor é que andou depressa. Tão feliz não fui eu, apesar dos meus esforços.

- É verdade; amamo-nos depressa; e muito. Quer que lhe diga? É um pouco esquisito isto de dormir solteiro e acordar noivo. Que lhe parece?

- É verdade - respondeu Castrioto, em voz surda.

- Que tem, amigo? Parece que itso lhe traz ideias sombrias... Vejo-o pensativo... Que tem?

Depois de algum silêncio Castrioto respondeu:

- Eu lhe digo. Minha noiva casa-se comigo mediante uma condição.

- Uma condição?

- Dolorosa.

- Meu Deus! Que será?

- A de não escrever mais romances.

- Oh! Mas parece que a noiva vale a condição - disse Correia sustando uma gargalhada.

- Vale - respondeu Castrioto -, e por isso aceitei-a.

- E depois lá para diante...

- Não; aceitei a condição, hei de cumpri-la. E é por isso que eu, nesta hora solene em que me despeço da vida de solteiro, quero ler-lhe o meu último romance.

Dizendo isto, Castrioto tirou do bolso um formidável rolo de papel, cujo aspecto fez empalidecer o hóspede.

Batiam onze horas.

A leitura do rolo não levava menos de duas horas.

Correia achou-se num destes momentos supremos em que toda a coragem é necessária ao homem.

Mas de que valia a maior coragem deste mundo contra um mau escritor que está disposto a ler uma obra?

Castrioto desenrolou o romance, dizendo:

- O título deste é: Os perigos do amor ou a casa misteriosa.

Correia não podia escapar ao perigo da leitura.

Entretanto, para servi-lo, pediu licença a Castrioto para pôr-se à fresca e deitar-se no sofá.

Feito isto, deu sinal a Castrioto para começar.

O romancista tossiu e entrou a ler o romance.

Quando acabou o primeiro capítulo, voltou-se para Correia e perguntou-lhe:

- Que lhe parece este capítulo?

- Excelente - respondeu Correia.

Começou o segundo capítulo com entusiasmo.

- Que lhe parece este capítulo?

Nenhuma resposta.

Castrioto aproximou-se do hóspede; dormia a sono solto.

- Miserável! - disse o romancista, indo deitar-se na cama de Correia.

IX

O dia seguinte era o grande dia.

Para os noivos levantou-se o sol como nunca; para Vicente jamais a luz do sol lhe pareceu tão irônica e zombeteira.

A felicidade de Correia aumentava o despeito do rapaz e dava maiores proporções ao desdém com que o rival o tratava.

Por compensação, aliás fraca em tais circunstâncias, Clara mostrava-se nesse dia mais solícita e amável que nunca. Acordou cantando e rindo. Com o humor da rapariga diminuiu um pouco o aborrecimento de Vicente.

Vicente resolveu não sair nesse dia, e entregar-se todo à companhia de Clara. Mas de repente pareceu-lhe que a alegria da moça era um insulto ao seu despeito, imaginou que ela zombara dele.

Disse-lho.

Clara ouviu a censura com altivez e silêncio.

Depois sorrindo desdenhosamente:

- És um extravagante...

Vicente arrependeu-se; quis pedir perdão à moça da suspeita, mas isso seria complicar o ridículo da situação.

Preferiu calar-se.

- Afinal de contas - disse ele -, que me importa a mim o casamento? Não casei porque não quis...

E atirou-se a um livro para ler.

Não leu; folheou páginas conduzindo os olhos maquinalmente.

Fechou o livro.

Acendeu dois charutos e apagou-os logo.

Pegou em outro livro e acendeu outro charuto, e repetiria a cena se não viesse o almoço dar-lhe uma distração.

Ao almoço mostrou-se alegre.

- Sabes que estou com grande apetite? - disse ele a Clara.

- Sim?

- É verdade!

- Por quê?

- Eu sei lá! É porque estou feliz.

- Ah!

- Feliz - continuou Vicente -, porque depois de tantos trabalhos estou ao pé de ti, e só a ti pertenço.

A moça sorriu.

- Duvidas? - perguntou ele.

- Não duvido.

Vicente continuou:

- Confesso-te que durante algum tempo estive quase obedecendo ao tio, tais eram as insistências dele para que eu me casasse com a delambida da prima. Felizmente ela namorou-se do outro; estou livre.

- Olha que rompes o guardanapo...

Vicente com efeito dera grande puxão no guardanapo...

A tranquilidade de Clara contrastava com a agitação de Vicente, e era essa tranquilidade um pouco cômica que o despeitava ainda mais.

O dia passou-se do mesmo modo.

Depois de jantar Vicente dispôs-se a dormir.

- Dormir! - exclamou Clara -. Há de fazer-te mal.

- Qual!

- Olha, vai dar um passeio; é melhor...

- Queres ver-me pelas costas?

- Se cuidas que é isso, fica.

- Estou brincando.

Vicente estava morto por sair.

Ao chegar à rua fez mil projetos. O primeiro foi ir à casa do tio; mas arrependeu-se logo, antevendo o ridículo da cena.

Achou melhor ir a Botafogo.

Já ia entrar num tilbury, quando o projeto lhe pareceu insuficiente.

- Nada; é melhor ir à igreja; assistirei ao casamento, e ameaçarei o Correia; porque aquele patife há de pagar-me!

Encaminhou-se para a freguesia de Santo Antônio, mas parou no caminho.

- Que irei lá fazer?

Nestas alternativas escoou-se a hora.

À noite encaminhou-se para a rua dos Inválidos, onde morava o tio, e logo de longe viu a casa iluminada.

Vicente teve um movimento de furor; levantou o punho fechado e atirou à rua o chapéu de um sujeito que passava.

- Maluco!

Vicente, que estava desesperado por descarregar em alguém a raiva que tinha dentro de si, voltou-se para o sujeito e perguntou-lhe a quem dirigia aquele epíteto.

- Ao senhor! - respondeu o indivíduo.

Vicente agarrou-lhe a gola da casaca, e já fervia o soco quando algumas pessoas intervieram e os separaram.

Apaziguado o conflito e dadas as explicações, seguiu Vicente pela rua adiante e deu acordo de si diante da casa de tio.

A casa estava cheia.

De longe viu sentados em uma cadeira Correia e Delfina. A moça estava radiante de beleza.

Vicente mordeu o lábio até deitar sangue.

Contemplou aquela cena durante alguns instantes e seguiu adiante absorto em suas meditações.

Justamente na ocasião em que principiou ele a andar, bateu-lhe em cheio a luz de um lampião, e Correia disse baixinho à noiva:

- O primo passou agora ali.

- Deveras? - perguntou ela.

- Veio ver-nos.

- Vê um par feliz - disse a moça.

- Felicíssimo! - exclamou Correia.

A festa do casamento foi esplêndida; durou até alta noite.

Vicente não quis saber mais nada; dirigiu-se para casa.

Ia triste, abatido, envergonhado. O pior mal era não poder atirar a culpa para cima de ninguém; o culpado era ele.

Entrou em casa pelas dez horas da noite.

Contra o costume, Clara não o esperava na sala, posto houvesse luz. Vicente vinha morto por cair-lhe aos pés e dizer-lhe:

- Sou teu eternamente, porque tu és a única mulher que me tiveste amor!

Não a encontrando na sala, foi à alcova e não a viu. Chamou e ninguém lhe apareceu.

Andou a casa toda e não viu ninguém.

Voltou à sala de visitas e achou um bilhete, assim concebido:

"Meu caro, não sirvo para irmã de caridade de corações aflitos. Viva!"

Deixo ao espírito do leitor o cuidado de imaginar o furor de Vicente; de um só lance perdera tudo.

Um ano depois as situações dos personagens deste romance eram as seguintes:

Correia, a mulher e o sogro estavam na fazenda; todos felizes. O capitão, por ver a filha casada; a filha, por amar o marido; e Correia porque, tendo alcançado a desejada fortuna, pagara-a com ser bom marido.

Júlia e Castrioto também eram felizes; neste casal o marido era governado pela mulher, que se tornara uma rainha em casa. O único desafogo que o marido tinha era escrever furtivamente alguns romances e colaborar num jornalzinho literário que se chamava: O Girassol.

Quanto a Vicente, julgando a regra pelas exceções e lançando à conta de todos as culpas suas, não queria mais amigos nem amores. Escrevia numa casa comercial, e vivia como um anacoreta. Ultimamente consta que tenciona casar com uma velha... de duzentos contos.

Um amigo que o encontrou interrogou-o a esse respeito.

- É verdade - respondeu ele -, creio que se efetua o casamento.

- Mas uma velha...

- É melhor; é a hipótese de ser feliz, porque as velhas têm uma fidelidade incomparável e sem exemplo.

- Qual?

- A fidelidade da ruína.

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