Conto

Nem Uma Nem Outra

1873
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em agosto, setembro e outubro de 1873, assinado por J.J. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

VI

Vicente comunicara a Clara todos os incidentes de sua vida; entretanto, a pouco e pouco já não lhe contava mais o que se passava em casa do tio.

A moça não reparou nisso ao princípio; mas o prolongado silêncio fez-lhe entrar a suspeita no coração.

Quando ela perguntava ainda pelos amores de Vicente com a prima, Vicente respondia que não pensasse em semelhante cousa, mas não acrescentava mais nada.

Clara cada vez suspeitava mais.

E tinha razão.

As carícias de Vicente já não eram as mesmas; as suas ausências eram cada vez mais frequentes. Algumas vezes saía de manhã às sete horas e só voltava à uma da noite.

No espírito de Clara ia-se formando a convicção de que o amor de Vicente por ela estava acabado.

A convicção completou-se numa noite em que lá apareceu Correia.

- Já sei que o Vicente não está cá - disse ele entrando.

- É verdade - respondeu Clara folheando o livro em que lia quando Correia apareceu na sala.

- Há de estar em casa do tio.

E sentou-se. Houve um silêncio. Foi Clara que o rompeu:

- Tenho pena da prima de Vicente - disse ela.

- Por quê? - perguntou Correia.

- Aquele amor...

- Há de ter bom pago.

- Não zombe dela - disse Clara.

- Pelo contrário, não zombo; digo que há de ter bom pago, porque há de vencer. O Vicente mais tarde ou mais cedo está casado.

- Com ela?

- Salvo se for comigo.

Clara empalideceu.

- Mas que espera, você, de tudo isto, Clara? - perguntou Correia -. Era natural; ser amado por uma rapariga bonita, e vê-la todos os dias é cousa a que se resista?

- Mas por que não me disse ele isso? - perguntou Clara com lágrimas na voz.

- Coitado! - exclamou Correia -. Sabe Deus o que lhe custará a ele.

Correia continuou as suas confidências deste modo, concluindo como todos os intrigantes:

- Não diga que eu lhe falei nisto.

- Não - respondeu Clara.

Com efeito, Clara nada disse a Vicente; apenas quando ele chegou achou-a um pouco mudada; e digo achou-a, porque esse era o estado dela, não que ele reparasse nisso.

A indiferença do rapaz foi o pior de todos os golpes.

No espírito de Clara o seu romance tinha chegado ao último capítulo.

Ao começar um novo amor, Vicente nem sentia os remorsos de ter esquecido aquela que lhe enchera os primeiros dias de mocidade.

Egoísmo do coração humano!

A lei é fatal; o amor é isto: um sentimento exclusivo, que nada reconhece diante de si, capaz de grandes dedicações, mas também capaz de grandes ingratidões.

Clara reconhecia-o agora.

Cuidava que a sua felicidade seria eterna, e via finalmente que nada é eterno nas cousas humanas.

Cumpre dizer que estes primeiros desencantos se passaram antes da cena em casa de Júlia e do olhar trocado entre Vicente e Delfina. Aquele olhar foi a data verdadeira do amor entre os dous primos.

Quando se deu esta cena, Clara parecia reconciliada com o destino. De triste que andara fizera-se alegre como antigamente.

Vicente, que não havia reparado na tristeza, reparou na alegria. Explique quem quiser o fenômeno; o certo é que foi ao voltar a alegria da moça que ele reparou que ela andava melancólica.

Por que a súbita tristeza? Por que a súbita alegria?

A tristeza, essa explicava-a Vicente; era naturalmente o fruto de suas prolongadas ausências. Mas a alegria súbita, sem que ele houvesse mudado o seu procedimento, e pelo contrário, quando começava a amar verdadeiramente a outra? Que causa teria isto?

Vicente interrogou a moça.

Interrogou não é o termo.

Sondou o terreno.

- Andas muito alegre, Clara - disse ele um dia de manhã, indo almoçar.

- Por que não?

- Tens algum motivo?

- Que pergunta! Não tenho motivo para estar triste, é natural que esteja alegre. É o meu estado habitual.

A resposta não satisfez o rapaz. Imaginou que algum motivo haveria estranho à casa. Qual?

Conquanto amasse já a prima, Vicente sentira-se mordido pelo ciúme. Mas como era um espírito fraco, incapaz de resolver por si, consultou o amigo Correia, o qual lhe respondeu simplesmente:

- Se tens alguma suspeita, não percas a rapariga de vista. Não te deixes enganar. Mas para isso é mister não andares por fora, e isso...

- É impossível!

- Quando te casas?

Vicente sorriu e não respondeu palavra.

Nessa noite, o capitão disse ao sobrinho que era necessário separar-se de Clara, no caso de amar Delfina, o que lhe parecia cousa certa e definitiva.

O sobrinho corou, mas não contestou.

Separar-se de Clara! Vicente não pensara nesta condição, aliás naturalíssima. Nesse momento travou-se-lhe no espirito uma grande luta. Começou a reparar que não se quebram facilmente laços tão longamente formados.

- Devo fazê-lo - dizia ele consigo -; mas terei forças para tanto? E ela! Coitadinha!

Pensando nisto, voltou para casa mais cedo; e querendo causar uma surpresa à rapariga entrou pé ante pé na sala de visitas.

Clara estava lendo uma carta aberta sobre as páginas de um livro.

Apenas o viu soltou um pequeno grito, e fechou o livro com a carta dentro.

Vicente empalideceu.

Mas ela o recebeu tão amavelmente, pareceu tão isenta de culpa, que o rapaz julgou dever mostrar-se sem nenhuma suspeita, e rir como se nada houvesse.

Riu alegremente.

Mas nem os olhos dele nem os dela perdiam de vista o livro fechado sobre a mesa.

Vicente quis tentar uma experiência e pôs a mão sobre o livro olhando fixamente para Clara.

Esta empalideceu.

Não havia dúvida.

- Que tens? - perguntou Vicente.

- Nada; uma dor repentina. Vai buscar-me um pouco de água de Colônia lá no toucador.

Vicente levantou-se, e sem deixar o livro foi ao toucador buscar a água de Colônia.

A presumida dor de Clara passou pouco depois e Vicente, posto não houvesse necessidade, quis ir levar o frasco da água para o toucador.

Quando lá chegou abriu o livro, tirou a carta e voltou para a sala, pondo o livro em cima da mesa.

A moça respirou.

Mas quando ela abriu o livro, não achou cousa nenhuma.

- Vicente - disse ela -, tu guardaste um papel que estava aqui?

A audácia desarmara o rapaz.

- Guardei - disse ele, tirando a carta da algibeira -, e confesso que o fiz por ter curiosidade de ver o que estavas lendo com tanta atenção.

Abriu a carta e leu; era uma declaração, mas em letra visivelmente disfarçada.

- Que te parece? - perguntou Clara.

- De quem é esta carta?

- Não sei. Mandaram-me há pouco. Não achas engraçado este sujeito, quem quer que é?

Vicente não respondeu nada; mas a suspeita lá lhe ficou como dantes.

Quem explicará todas estas inconsequências do coração humano? Vicente, quase noivo de Delfina, teve ciúmes de Clara; o amor passou ao segundo plano; agora, tratava-se de uma ofensa que ele supunha aviltante.

De maneira que não só cuidou na inevitável separação para o seu casamento, como até começou a rarear as suas visitas à casa do tio.

Debalde o capitão perguntava a Correia os motivos da ausência do sobrinho e das curtas visitas que lhe fazia.

Correia respondia que ignorava tudo.

Às vezes a sua resposta era simplesmente abanar a cabeça.

Delfina também recorria ao amigo de Vicente para indagar dele, e Correia com a discrição própria dos indiscretos respondia com um sorriso ou um monossílabo.

Mas quando a filha do capitão o incumbia de alguma missão delicada, como a de ir buscar o moço, dissuadi-lo de ideias contrárias ao casamento que porventura ele tivesse, etc., Correia desempenhava-se sempre por modo que conquistara a gratidão da moça.

De maneira que, um belo dia, o antipático Correia era simplesmente o homem mais simpático do Rio de Janeiro.

Era com ele que Delfina conversava mais vezes, por ser o amigo íntimo de Vicente. Além dele só Júlia recebia as íntimas confidências do coração. Quanto ao pai, não as recebia todas.

Júlia, que era um verdadeiro diabrete, teve um dia a desastrada ideia de dizer a Delfina:

- Admira-me esse amor por teu primo!

- Por quê? - perguntou a moça.

- Aparece tão poucas vezes!

- Sim, há dias. Naturalmente tem que fazer; mas que tem isso? Eu sei que ele me ama.

- Não creio.

- Por quê?

- Porque se te amasse não deixaria de estar ao pé de ti, adivinhar os teus desejos, obedecer-te em tudo como, por exemplo, o Correia...

- O Correia?

- Viste algum rapaz mais atencioso que ele? Quem não soubesse, pensaria que o noivo era ele e não esse fugitivo Vicente... Por que te não casas com o Correia?

- Credo! - exclamou Delfina.

- Por que não? É repugnante?

- Pelo contrário, é um belo rapaz... mas...

- Mas...

- Eu amo ao outro.

- Isso de amar o outro, quando o outro não se importa contigo... é tolice.

Quando nessa noite Correia apareceu em casa do capitão, as primeiras palavras que proferiu foram que Vicente não podia vir.

Delfina ficou triste.

Mas Correia tratou-a com todas as atenções, procurou distraí-la com tanta delicadeza que a rapariga reparou então no que Júlia lhe havia dito.

Havia com efeito nas maneiras e na assiduidade de Correia alguma cousa que contrastava com a ausência e o proceder incompreensível de Vicente.

"Quem sabe", pensou Delfina, "se ele não me ama?"

Era preciso que a moça estivesse muito absorvida no amor por Vicente para não reparar nisso caso fosse exato o amor de Correia.

Mas parece que era, ou parecia sê-lo, visto que ela assim se convenceu depois de um exame de dois dias.

É impossível que uma mulher nas condições de Delfina tenha ódio a um homem só pelo crime de amá-la.

É crime que se perdoa.

Delfina perdoou ao rapaz.

- Mas não basta o perdão - disse-lhe Júlia quando ela lhe falou a respeito de Correia.

- Então que mais? - perguntou Delfina.

- É preciso amá-lo.

- Estás tola!

Vicente continuava a ir à casa do tio, mas sempre triste e preocupado; em casa dele sentia-se o mesmo. De Roma chorava Tibur; de Tibur chorava Roma.

A preocupação do rapaz, as suas frequentes distrações, as prolongadas ausências, tudo isso foram outras tantas causas de esfriamento entre ele e Delfina. A moça sonhara de longe outro primo; aquele saíra-lhe um tanto fantástico, já desvelado, já esquecido, sem estabilidade nenhuma.

Ao lado dele, Correia, sempre pressuroso e delicado, pronto sempre para adivinhar-lhe os pensamentos. A comparação não podia deixar de ser contrária ao primo.

Em suma, no fim de dois meses estava entabulado o mais formidável namoro entre Correia e Delfina.

Aqui o leitor há de ficar admirado de ver uma moça que quase morre de amores por um rapaz apaixonar-se rapidamente por outro.

Que quer? A cousa passou-se assim; eu estou contando a história de pessoas que conheço, não acrescento nem suprimo nada.

VII

O que se terá passado entre Vicente e Clara?

As suspeitas de Vicente não tiveram para alimentar-se nenhum acontecimento positivo; mas a verdade é que continuavam a existir no espírito dele, e as reiteradas carícias da moça, longe de dissuadi-lo, mais o confirmavam.

Quando se encontrava com Correia, este sempre lhe perguntava:

- E Clara?

- Está boa.

- Estão bem vocês?

- Assim, assim.

- Continuam as tuas suspeitas...

- Infelizmente.

Correia suspirava e respondia:

- Isto de mulheres!...

Apertava a mão de Vicente com ar de homem que dá pêsames e retirava-se.

Vicente, dedicado, terno, meigo no amor, era brutal no ciúme. Clara sentia-o agora. Longe de receber as suas carícias com boa cara, Vicente maltratava a rapariga com palavras duras e inconvenientes.

O menor gesto de Clara era para ele objeto de suspeita; um sorriso à janela, um recado a alguma amiga, um papel que lesse, tudo enfim lhe parecia sintoma de outro amor estranho ao seu.

A pouco e pouco este procedimento de Vicente foi tornando o coração de Clara mais indiferente ao amor dele.

Mas a verdade é que os ciúmes de Vicente teriam causado profunda alegria na alma de Clara porque eram prova cabal de ter cessado o amor pela prima, se não fosse uma circunstância importante do romance, a saber, que a carta, a célebre carta que a moça estava lendo na noite em que Vicente entrou repentinamente em casa, essa carta era justamente uma declaração de amor.

A pessoa que a escrevera tinha escrito outras mais que chegaram às mãos de Clara, a despeito da extrema vigilância de Vicente.

Clara sentia-se presa a outro pelos mesmos laços que a prenderam a Vicente.

Este tinha apenas o amigo Correia com quem desabafar as suas mágoas. Ora, Correia à noite era sempre encontrado em casa do capitão, de maneira que muitas vezes Vicente lá ia com o único fim de ver Correia.

E tanto não o dissimulava que algumas noites a sua visita limitava-se a conversar uma larga meia hora com Correia e sair pouco depois.

O conselho de Correia era que convinha redobrar de vigilância.

O capitão Ferreira não só notou as ausências prolongadas e as curtas visitas de Vicente, mas também reparou nas visitas multiplicadas e longas de Correia.

O velho estimava muito o sobrinho e quisera favorecê-lo, cedendo aos desejos da filha; mas, desde que reparou no namoro de Delfina, entendeu que convinha auxiliá-lo, a fim de concluir depressa um casamento que, entre outras felicidades, tinha a de fazê-lo voltar à fazenda.

Por sua parte Júlia intercedia em favor dos namorados, e o velho capitão, que gostava da moça, prometia-lhe tudo quanto esta lhe pedia.

Os amores de Correia e Delfina eram definitivos. Correia uma noite perguntou positivamente a Delfina se podia ir pedi-la ao pai.

Ela respondeu que sim.

Quando Júlia soube disso bateu palmas de contente.

- Mas por que estás contente agora, e não estavas quando se tratava de casar-me com o Vicente?

- Porque este implorou o teu amor; e eras tu quem imploravas o do outro.

- Só por isso?

- Só.

- Criança.

- E a prova é que eu estou disposta a consentir que o Castrioto peça a minha mão. Já implorou bastante.

Júlia assim o fez, e eu deixo à imaginação dos leitores calcular a alegria do fecundo romancista.

- Ah! - disse ele -. Isto vai dar-me assunto para umas bonitas páginas!

- Menos isso - disse Júlia -. Casará comigo se não escrever romances.

- Mas se é uma vocação - replicou Castrioto.

- Ah! - disse Júlia -. O senhor ama perfeitamente bem, mas escreve perfeitamente mal!

Assentado esse ponto, Castrioto pediu a mão de Júlia, que lhe foi concedida imediatamente.

Nesse dia o nosso romancista não jantou.

VIII

O leitor já há de ter notado o procedimento ambíguo e obscuro de Correia. Ora animava o namoro de Delfina e Vicente; ora aconselhava ao amigo que não perdesse Clara de vista.

Quando estava com Clara, lançava-lhe no espírito o germe da suspeita.

Finalmente, por vontade ou não, fizera com que Delfina se apaixonasse por ele; e um belo dia resolvera ir pedi-la ao pai.

Eu podia dispensar-me de dar as razões deste procedimento do rapaz. Não era ele amigo de Vicente? A utilidade de um amigo, em geral, não é outra. Entretanto, convém dar dois motivos capitais.

O primeiro era a riqueza de Delfina, herdeira única do capitão Ferreira; a outra era uma ofensa praticada por Vicente contra a pessoa de Correia.

Ofensa grave, questão de honra? Não; uma simples ofensa de amor-próprio. Correia nunca lha perdoou. O momento era azado para vingar-se.

Quando Correia pediu ao capitão a mão de Delfina, este não se mostrou surpreso; adivinhara o amor dos dois, e, visto que a filha se dispunha a casar com o outro, abandonou a causa do sobrinho, que aliás não o interessava.

- Ela gosta do senhor - disse o capitão.

- Não sei.

- Gosta que eu sei. Pela minha parte não me oponho; casem-se e sejam felizes.

Unicamente para aceder à fórmula, mandou chamar a filha e declarou-lhe o pedido que Correia lhe fizera. A menina baixou os olhos; é do programa; e murmurou um sim tão sumido que parecia não vir de dentro d`alma quando não vinha doutra parte.

- Meu caro genro - disse o capitão sentenciosamente -, guardado está o bocado para quem o há de comer. Vim à corte para que Delfina casasse com Vicente, e vou para a roça com o genro que não esperava nem conhecia. Digo isto porque eu volto para a roça e não posso separar-me de Delfina.

- Acompanhá-lo-ei - respondeu Correia.

O capitão achou conveniente participar a Vicente o casamento da filha, mas desde logo viu o que havia de delicado naquilo, não porque cuidasse ferir-lhe o coração, já livre de uma momentânea impressão, mas porque sempre lhe seria ferir o amor-próprio.

Havia três dias que Vicente não aparecia.

- Ia escrever-te - disse o capitão.

- Por quê?

- Dar-te uma notícia de que te vais admirar.

- Qual?

- Delfina casa-se.

- A prima?

- Sim.

Houve um pequeno silêncio; a notícia abalou o rapaz, que ainda gostava da moça, apesar da diversão dos ciúmes por Clara.

O velho esperou alguma observação por parte de Vicente, e, vendo que ela não aparecia, continuou:

- É verdade, casa-se daqui a dois meses.

- Com quem? - perguntou Vicente.

- Com o Correia.

Quando Vicente perguntou pelo noivo de Delfina, já o desconfiara, por se lembrar de que uma noite reparara em certos olhares trocados entre os dois.

Mas a declaração do tio não deixou de o abalar profundamente; um pouco de amor e um pouco de despeito causaram essa impressão.

A conversa ficou neste ponto; Vicente saiu.

Compreende-se a situação do rapaz.

Quando saiu da casa do tio mil ideias lhe tumultuavam na cabeça. Queria ir brigar com o rival, reclamar de Delfina a promessa tácita que lhe fizera, mil projetos, todos mais extravagantes uns que outros.

Na posição em que se achava, o silêncio era a melhor solução. Tudo mais era ridículo.

Mas o despeito é um mau conselheiro.

Agitado por esses sentimentos, entrou Vicente em casa, onde não encontrava ao menos o amor de Clara.

A moça com efeito estava cada vez mais fria e indiferente ao amor de Vicente. Não se alegrava com as suas alegrias, nem se entristecia com as suas tristezas.

Vicente passou uma noite de desespero.

Preparava-se, entretanto, o casamento.

Vicente achou que não devia voltar à casa do tio, nem procurar o feliz rival. Mas oito dias depois de saber oficialmente do casamento de Delfina, recebeu ele de Correia a seguinte carta:

Meu Vicente,

Tenho hesitado em participar-te uma notícia de que aliás já estás inteirado: caso-me com tua prima. Eu nunca teria pensado em semelhante cousa, se não visse que tu depois de um ligeiro namoro ficaste indiferente ao destino da moça.
É claro que já te não importas com ela.
O fato de não a amares abriu a porta ao meu coração, que desde muito se sentia impressionado.
Amamo-nos ambos, e o casamento será daqui a cinquenta dias.
Espero que o aproves.
Já era teu amigo; agora fico sendo teu parente.
Não precisava isto para apertar os laços de amizade que nos unem.

Teu

Correia

Vicente leu pasmado esta carta, em que a audácia da hipocrisia não podia ir mais longe.

Não respondeu.

"Deste modo", pensou Vicente, "ele compreenderá que o desprezo e virá talvez pedir-me uma explicação."

Nisto enganou-se o rapaz.

Correia não pedira explicações, nem esperava resposta à carta. A carta era mais um ato de insolência que de hipocrisia. O rapaz queria machucar completamente o amigo.

Vicente esperou debalde uma visita de Correia.

A indiferença exasperou-o ainda mais.

Acrescenta-se a isto a situação dele em relação de Clara, que era cada vez pior. Dos arrufos tinham passado às grandes rixas, e a última fora revestida de graves circunstâncias.

Chegou finalmente o dia do casamento de Delfina.

Júlia escolheu também esse dia para casar-se.

Os dois casamentos se fizeram na mesma igreja.

Estas circunstâncias, além de outras, aproximaram Correia de Castrioto. Os dois noivos trataram juntos dos preparativos da festa dupla em que eles eram heróis.

Na véspera do casamento, Castrioto foi dormir em casa de Correia.

- Conversemos das nossas noivas - disse Correia ao romancista.

- Apoiado - respondeu este.

Com efeito, lá se apresentou às dez horas, depois de sair da casa de Alvarenga, onde se despedira da namorada pela última vez, para cumprimentá-la no dia seguinte como noiva.

- Com que então amanhã - disse Correia - estamos casados.

- É verdade - respondeu Castrioto.

- Ainda me parece um sonho.

- E a mim! Pois há seis meses que namoro esta moça sem esperança de conseguir nada. O senhor é que andou depressa. Tão feliz não fui eu, apesar dos meus esforços.

- É verdade; amamo-nos depressa; e muito. Quer que lhe diga? É um pouco esquisito isto de dormir solteiro e acordar noivo. Que lhe parece?

- É verdade - respondeu Castrioto, em voz surda.

- Que tem, amigo? Parece que itso lhe traz ideias sombrias... Vejo-o pensativo... Que tem?

Depois de algum silêncio Castrioto respondeu:

- Eu lhe digo. Minha noiva casa-se comigo mediante uma condição.

- Uma condição?

- Dolorosa.

- Meu Deus! Que será?

- A de não escrever mais romances.

- Oh! Mas parece que a noiva vale a condição - disse Correia sustando uma gargalhada.

- Vale - respondeu Castrioto -, e por isso aceitei-a.

- E depois lá para diante...

- Não; aceitei a condição, hei de cumpri-la. E é por isso que eu, nesta hora solene em que me despeço da vida de solteiro, quero ler-lhe o meu último romance.

Dizendo isto, Castrioto tirou do bolso um formidável rolo de papel, cujo aspecto fez empalidecer o hóspede.

Batiam onze horas.

A leitura do rolo não levava menos de duas horas.

Correia achou-se num destes momentos supremos em que toda a coragem é necessária ao homem.

Mas de que valia a maior coragem deste mundo contra um mau escritor que está disposto a ler uma obra?

Castrioto desenrolou o romance, dizendo:

- O título deste é: Os perigos do amor ou a casa misteriosa.

Correia não podia escapar ao perigo da leitura.

Entretanto, para servi-lo, pediu licença a Castrioto para pôr-se à fresca e deitar-se no sofá.

Feito isto, deu sinal a Castrioto para começar.

O romancista tossiu e entrou a ler o romance.

Quando acabou o primeiro capítulo, voltou-se para Correia e perguntou-lhe:

- Que lhe parece este capítulo?

- Excelente - respondeu Correia.

Começou o segundo capítulo com entusiasmo.

- Que lhe parece este capítulo?

Nenhuma resposta.

Castrioto aproximou-se do hóspede; dormia a sono solto.

- Miserável! - disse o romancista, indo deitar-se na cama de Correia.

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A-