Conto

Nem Uma Nem Outra

1873

V

O capitão sentia-se feliz.

Dia por dia, a moça ia melhorando, e a presença de Vicente já lhe não parecia totalmente indiferente.

- O bicho começa a morder o coração do rapaz - disse o velho.

A sua convicção era tal que chegou a marcar a época do casamento de Vicente com Delfina. Era contar muito com o futuro; e pela sua parte, Vicente jurava entre si que não casaria nunca com a prima. A verdade, porém, é que já sentia alguma tristeza quando não estava em casa do tio.

Delfina tinha a mesma confiança do pai. E os motivos de sua confiança eram outros e mais poderosos. Era bonita, e tinha a consciência da beleza; além disso, era completa mulher; sabia como se prende um homem a quem se ama - não porque lho houvessem ensinado, mas simplesmente por intuição.

Nas relações criadas na Corte, encontrou uma amiga, moça, solteira como ela, a quem comunicava todos os pensamentos.

Júlia era o nome da outra, e tinha um namorado também. A diferença é que com Júlia dava-se o contrário do que acontecia a Delfina. O doutor Castrioto amava Júlia e esta não se importava com ele, isto é, dizia que não se importava, o que é muito diferente.

É curioso transcrever aqui umas duas cartas de Júlia e Delfina, cheias dessa confiança que dá a situação de duas moças casadeiras.

A primeira carta é de Delfina e era assim:

Meu bem,

Sonhei esta noite com ele. Sonhei que nos casávamos, e confesso-te que tive um prazer enorme nisto. Infelizmente foi simples sonho.
Tanto eu, como papai, acreditamos que o resultado de tudo será o meu casamento com o primo. Ele vem cá todas as noites, e algumas vezes de dia também; conversamos muito, e sobre tudo falo pouco, porque gosto de ouvi-lo.
Ontem, aconteceu que, achando-nos sós, ficamos algum tempo calados. Por fim, Vicente suspirou.
- Onde vai esse suspiro? - perguntei eu.
- A parte nenhuma.
- Cuidei que ia a alguma parte.
- Eu nem sei se suspirei.
Vê tu que velhaco; suspirou e disse não saber se havia suspirado.
A conversa ficou nisto; mas eu suponho que o suspiro veio com direção a mim. Que dizes?

Tua

Delfina

A resposta de Júlia não se fez esperar.

Dizia assim:

Sempre és muito tola, Delfina. Pois que te importam lá os suspiros e os amores do primo? Faze como eu com o Castrioto, que tanto suspira por que eu o ame, quanto eu suspiro por ver-me livre dele.
Não há nada como ser solteira, minha amiga; é a liberdade. Estes senhores se pilhando casados fazem o diabo, e nós padecemos.
Tenho exemplos disto; e você diz: quem vê as barbas do vizinho arder põe as suas de molho.
Eu cá já as pus...
É verdade que se papai insistir em que eu case com o Dr. Castrioto, não terei remédio senão casar; mas com uma condição: é que ele não há de escrever uma linha sequer. Não sabes? O Castrioto é escritor; deu em romancista. Às vezes aparece cá em casa com uns rolos de papel e lê aquilo tudo na sala, que é um aborrecimento, exceto para o papai, que acha que ele é um grande talento.
Será bonito, acredito; mas por escrever... antes o Alexandre Dumas.
Vem jantar cá domingo. Dançaremos.

Tua

Júlia

A carta de Júlia está indicando na moça um desses espíritos galhofeiros, incapazes de tomar a vida a sério. O pobre Castrioto, se viesse a casar com ela, faria uma grande tolice... se é que não era ele mesmo um grande tolo, cousa que veremos pelo romance adiante.

O jantar de domingo reuniu em casa de Júlia a família do capitão Ferreira, Vicente e Correia. Este, porém, retirou-se logo depois do jantar, dizendo que se achava doente.

O pai de Júlia era um velho bem apessoado, lhano, expansivo, mas com pouca instrução e nenhum gosto, razão pela qual acreditava no talento de Castrioto.

No fim do jantar, foram todos para a sala, e conversou-se alegremente sobre os sucessos do dia. O capitão contava anedotas; Delfina conversava com Vicente; Castrioto suspirava a um canto. Júlia ia de um a outro grupo, alegre e descuidada, sem dar sequer pelo namorado.

De repente, Alvarenga (era o pai da amiga de Delfina) diz em voz alta a Castrioto:

- Doutor, vamos à obra.

Castrioto levantou-se.

- O Dr. Castrioto - continuou Alvarenga -, vai regalar-nos com a leitura de um romance. É um grande talento, capitão; os seus romances são magníficos.

- Que grande maçada! - disse Júlia aproximando-se de Delfina e Vicente.

- Olha que ele te ama! - observou Delfina.

- Importa-me pouco!

- É assim tão cruel? - perguntou Vicente.

- Com um maçante, sou.

- Não zombe, minha senhora - disse Vicente sorrindo.

No entanto, Castrioto meteu a mão na algibeira e tirou um rolo de papel. Júlia soltou um profundo suspiro; uma tia dela, que gostava imensamente dos romances do rapaz, abriu um sorriso de contentamento; Alvarenga sorveu uma pitada, e convidou Castrioto a sentar-se em posição de ser ouvido por todos.

Houve grande rumor de cadeiras, de vestidos e de sapatos. Júlia, com grande má vontade, não achava lugar capaz e agitava-se toda. Por fim sentou-se dizendo a Delfina:

- Deixa estar que eu o curo.

Acomodaram-se todos.

Castrioto desenrolou as tiras, fato este que produziu um calafrio em Vicente.

- Como se chama este novo romance? - perguntou Alvarenga.

- Chama-se: Os primeiros amores de um rapaz ou Os destinos escritos.

- Bonito! - disse Júlia com um sorriso de escárnio.

Castrioto não compreendeu a intenção e agradeceu com a cabeça.

Depois tossiu e leu o que se segue:

Aquele dia acordei cedo. Trouxe-me o moleque à cama uma cartinha delicadamente fechada e recendendo a baunilha. Pensaram que era de alguma dama? Não; era de meu amigo Oliveira: antes de conhecer-lhe a letra, tinha-lhe conhecido o perfume.

A carta dizia assim:

Estêvão,
Adiou-se a ceia de hoje; fica para quinta-feira. Mas não chores, temos compensação. Meu tio, o desembargador, dá hoje uma partida e quer por força que venhas passar a noite conosco. Tanto lhe falava em ti que o velho ficou com vontade de conhecer-te. Contamos contigo. Adeus.
Oliveira

Tinha eu então vinte anos. Nessa idade não se discute o prazer; aceita-se sob todas as formas. A partida compensava a ceia. Verdade é que a ceia tinha para mim um atrativo singular, o atrativo da curiosidade. Era a minha estreia nas terras de Corinto. Estreia, entenda-se como residência. Até então contentava-me eu em fazer pequenas excursões à famosa terra: aportava de manhã e fazia-me ao largo de tarde; outras vezes dava à navegação o sentido inverso. Mas que era isso para conhecer tamanho mundo e tão variada gente?

Afora esta curiosidade, toda infantil, a ceia não valia para mim mais do que a partida.

Preparei-me à noite e fui à casa do desembargador, que era na rua dos Inválidos.

Havia pouca gente; via-se que a assembleia tinha um caráter íntimo.

As moças orçavam por vinte, e eram todas elegantes e bonitas. Havia alguns rapazes e poucos velhos, todos mais ou menos aparentados com o desembargador.

Oliveira esperava por mim com ansiedade, posto não fosse tarde.

Vendo-me entrar risonho, exclama:

- Bravo! Cuidei que viesses triste.

- Por quê?

- Por causa da transferência.

- Ora!

Oliveira levou-me ao desembargador. Era um bom velho, uma dessas velhices que indicam ter havido tranquila mocidade. O desembargador apertou-me as mãos com efusão; disse-me que o sobrinho lhe falara de mim por modo que lhe espicaçara a curiosidade.

- Por quê? - perguntei eu sorrindo.

- Porque adivinho que o senhor é um moço.

Esta frase, que eu teria compreendido agora, confesso que não a compreendi então. Mas sempre me parece que o velho me fazia um elogio e agradeci inclinando a cabeça.

- Deixe-me apresentá-lo a estas moças.

O desembargador deu-me o braço e foi apresentar-me primeiramente às filhas, e depois a todas as outras damas. Depois de apresentar-me à última, voltou-se para o sobrinho, que se achava perto, e disse-lhe:

- Falta uma!

- Falta D. Helena - respondeu Oliveira -. Está tardando. Querem ver que não vem?

A Helena em questão chegou daí a meia hora pelo braço de um velho calvo e baixinho. O velho era o pai da moça. Soubemos então que a demora tinha tido por causa a ausência do pai, que era jurado e nesse dia entrara no conselho que julgara um crime de estelionato, processo célebre.

Como o desembargador me havia apresentado ao pai e à filha, deixei que o pai narrasse ao desembargador as peripécias do tribunal, e fui conversar com a filha e Oliveira, que nesse momento tinham passado a uma saleta, onde havia outras moças entretidas em mil importantíssimas inutilidades.

Oliveira, inebriante de baunilha, tinha-a nos cabelos, no lenço e nas mãos. Creio até que a tinha nas palavras. A conversa, quando eu cheguei, versava justamente sobre o perfume favorito de Oliveira. Afirmava este que o primeiro perfume da criação era a baunilha; uma prima dele optava pela violeta; eu manifestei francamente a minha preferência pelo sândalo.

Helena não dava opinião.

Como eu lhe perguntasse diretamente o que pensava daquele conflito, respondeu-me:

- Pela minha parte gosto de todos os perfumes; acho-os todos bons...

Estas palavras, disse-as ela sorrindo, e eu sorrindo as ouvi, ainda que me não agradasse a universalidade do seu gosto. Pareceu-me que ela desdenhava aquele gênero de conversa. A suspeita feriu-me os brios, e eu entrei com ardor na defesa da opinião que havia manifestado. O sândalo levou-me naturalmente a falar do Oriente, e creio que disse cousas bonitas, porque os ouvintes tiveram a bondade de interromper-me com demonstrações de agrado.

Quanto a Helena, ouviu-me silenciosamente, e como o piano, apenas eu acabara de falar, começava o prelúdio de uma quadrilha, a única manifestação de aplauso que ela me deu foi voltar-se para Oliveira e dizer-lhe:

- É a nossa.

Oliveira voltou-se para mim dizendo:

- És meu vis-à-vis.

Fui ver um par, e a quadrilha começou.

Nisto...

A leitura do romance foi interrompida. Júlia tivera um ataque de nervos que durou alguns minutos; quando veio a si, estava a moça pálida e mais interessante do que era.

Castrioto, que como autor que era não perdoaria a interrupção, perdoou-a à moça por ser quem era.

Quando Júlia ficou boa, todos se alegraram; e como Delfina fosse abraçá-la, ela disse-lhe ao ouvido:

- Isto não foi ataque; foi só para acabar com a tal leitura.

Vicente ouviu as palavras de Júlia.

- É muito cruel - disse-lhe ele -; não se paga assim a quem ama.

- Então, como é? - perguntou a filha de Alvarenga.

Vicente não respondeu, mas olhou para Delfina, que nesse momento olhou para ele.

Aquele olhar decidiu o destino.

VI

Vicente comunicara a Clara todos os incidentes de sua vida; entretanto, a pouco e pouco já não lhe contava mais o que se passava em casa do tio.

A moça não reparou nisso ao princípio; mas o prolongado silêncio fez-lhe entrar a suspeita no coração.

Quando ela perguntava ainda pelos amores de Vicente com a prima, Vicente respondia que não pensasse em semelhante cousa, mas não acrescentava mais nada.

Clara cada vez suspeitava mais.

E tinha razão.

As carícias de Vicente já não eram as mesmas; as suas ausências eram cada vez mais frequentes. Algumas vezes saía de manhã às sete horas e só voltava à uma da noite.

No espírito de Clara ia-se formando a convicção de que o amor de Vicente por ela estava acabado.

A convicção completou-se numa noite em que lá apareceu Correia.

- Já sei que o Vicente não está cá - disse ele entrando.

- É verdade - respondeu Clara folheando o livro em que lia quando Correia apareceu na sala.

- Há de estar em casa do tio.

E sentou-se. Houve um silêncio. Foi Clara que o rompeu:

- Tenho pena da prima de Vicente - disse ela.

- Por quê? - perguntou Correia.

- Aquele amor...

- Há de ter bom pago.

- Não zombe dela - disse Clara.

- Pelo contrário, não zombo; digo que há de ter bom pago, porque há de vencer. O Vicente mais tarde ou mais cedo está casado.

- Com ela?

- Salvo se for comigo.

Clara empalideceu.

- Mas que espera, você, de tudo isto, Clara? - perguntou Correia -. Era natural; ser amado por uma rapariga bonita, e vê-la todos os dias é cousa a que se resista?

- Mas por que não me disse ele isso? - perguntou Clara com lágrimas na voz.

- Coitado! - exclamou Correia -. Sabe Deus o que lhe custará a ele.

Correia continuou as suas confidências deste modo, concluindo como todos os intrigantes:

- Não diga que eu lhe falei nisto.

- Não - respondeu Clara.

Com efeito, Clara nada disse a Vicente; apenas quando ele chegou achou-a um pouco mudada; e digo achou-a, porque esse era o estado dela, não que ele reparasse nisso.

A indiferença do rapaz foi o pior de todos os golpes.

No espírito de Clara o seu romance tinha chegado ao último capítulo.

Ao começar um novo amor, Vicente nem sentia os remorsos de ter esquecido aquela que lhe enchera os primeiros dias de mocidade.

Egoísmo do coração humano!

A lei é fatal; o amor é isto: um sentimento exclusivo, que nada reconhece diante de si, capaz de grandes dedicações, mas também capaz de grandes ingratidões.

Clara reconhecia-o agora.

Cuidava que a sua felicidade seria eterna, e via finalmente que nada é eterno nas cousas humanas.

Cumpre dizer que estes primeiros desencantos se passaram antes da cena em casa de Júlia e do olhar trocado entre Vicente e Delfina. Aquele olhar foi a data verdadeira do amor entre os dous primos.

Quando se deu esta cena, Clara parecia reconciliada com o destino. De triste que andara fizera-se alegre como antigamente.

Vicente, que não havia reparado na tristeza, reparou na alegria. Explique quem quiser o fenômeno; o certo é que foi ao voltar a alegria da moça que ele reparou que ela andava melancólica.

Por que a súbita tristeza? Por que a súbita alegria?

A tristeza, essa explicava-a Vicente; era naturalmente o fruto de suas prolongadas ausências. Mas a alegria súbita, sem que ele houvesse mudado o seu procedimento, e pelo contrário, quando começava a amar verdadeiramente a outra? Que causa teria isto?

Vicente interrogou a moça.

Interrogou não é o termo.

Sondou o terreno.

- Andas muito alegre, Clara - disse ele um dia de manhã, indo almoçar.

- Por que não?

- Tens algum motivo?

- Que pergunta! Não tenho motivo para estar triste, é natural que esteja alegre. É o meu estado habitual.

A resposta não satisfez o rapaz. Imaginou que algum motivo haveria estranho à casa. Qual?

Conquanto amasse já a prima, Vicente sentira-se mordido pelo ciúme. Mas como era um espírito fraco, incapaz de resolver por si, consultou o amigo Correia, o qual lhe respondeu simplesmente:

- Se tens alguma suspeita, não percas a rapariga de vista. Não te deixes enganar. Mas para isso é mister não andares por fora, e isso...

- É impossível!

- Quando te casas?

Vicente sorriu e não respondeu palavra.

Nessa noite, o capitão disse ao sobrinho que era necessário separar-se de Clara, no caso de amar Delfina, o que lhe parecia cousa certa e definitiva.

O sobrinho corou, mas não contestou.

Separar-se de Clara! Vicente não pensara nesta condição, aliás naturalíssima. Nesse momento travou-se-lhe no espirito uma grande luta. Começou a reparar que não se quebram facilmente laços tão longamente formados.

- Devo fazê-lo - dizia ele consigo -; mas terei forças para tanto? E ela! Coitadinha!

Pensando nisto, voltou para casa mais cedo; e querendo causar uma surpresa à rapariga entrou pé ante pé na sala de visitas.

Clara estava lendo uma carta aberta sobre as páginas de um livro.

Apenas o viu soltou um pequeno grito, e fechou o livro com a carta dentro.

Vicente empalideceu.

Mas ela o recebeu tão amavelmente, pareceu tão isenta de culpa, que o rapaz julgou dever mostrar-se sem nenhuma suspeita, e rir como se nada houvesse.

Riu alegremente.

Mas nem os olhos dele nem os dela perdiam de vista o livro fechado sobre a mesa.

Vicente quis tentar uma experiência e pôs a mão sobre o livro olhando fixamente para Clara.

Esta empalideceu.

Não havia dúvida.

- Que tens? - perguntou Vicente.

- Nada; uma dor repentina. Vai buscar-me um pouco de água de Colônia lá no toucador.

Vicente levantou-se, e sem deixar o livro foi ao toucador buscar a água de Colônia.

A presumida dor de Clara passou pouco depois e Vicente, posto não houvesse necessidade, quis ir levar o frasco da água para o toucador.

Quando lá chegou abriu o livro, tirou a carta e voltou para a sala, pondo o livro em cima da mesa.

A moça respirou.

Mas quando ela abriu o livro, não achou cousa nenhuma.

- Vicente - disse ela -, tu guardaste um papel que estava aqui?

A audácia desarmara o rapaz.

- Guardei - disse ele, tirando a carta da algibeira -, e confesso que o fiz por ter curiosidade de ver o que estavas lendo com tanta atenção.

Abriu a carta e leu; era uma declaração, mas em letra visivelmente disfarçada.

- Que te parece? - perguntou Clara.

- De quem é esta carta?

- Não sei. Mandaram-me há pouco. Não achas engraçado este sujeito, quem quer que é?

Vicente não respondeu nada; mas a suspeita lá lhe ficou como dantes.

Quem explicará todas estas inconsequências do coração humano? Vicente, quase noivo de Delfina, teve ciúmes de Clara; o amor passou ao segundo plano; agora, tratava-se de uma ofensa que ele supunha aviltante.

De maneira que não só cuidou na inevitável separação para o seu casamento, como até começou a rarear as suas visitas à casa do tio.

Debalde o capitão perguntava a Correia os motivos da ausência do sobrinho e das curtas visitas que lhe fazia.

Correia respondia que ignorava tudo.

Às vezes a sua resposta era simplesmente abanar a cabeça.

Delfina também recorria ao amigo de Vicente para indagar dele, e Correia com a discrição própria dos indiscretos respondia com um sorriso ou um monossílabo.

Mas quando a filha do capitão o incumbia de alguma missão delicada, como a de ir buscar o moço, dissuadi-lo de ideias contrárias ao casamento que porventura ele tivesse, etc., Correia desempenhava-se sempre por modo que conquistara a gratidão da moça.

De maneira que, um belo dia, o antipático Correia era simplesmente o homem mais simpático do Rio de Janeiro.

Era com ele que Delfina conversava mais vezes, por ser o amigo íntimo de Vicente. Além dele só Júlia recebia as íntimas confidências do coração. Quanto ao pai, não as recebia todas.

Júlia, que era um verdadeiro diabrete, teve um dia a desastrada ideia de dizer a Delfina:

- Admira-me esse amor por teu primo!

- Por quê? - perguntou a moça.

- Aparece tão poucas vezes!

- Sim, há dias. Naturalmente tem que fazer; mas que tem isso? Eu sei que ele me ama.

- Não creio.

- Por quê?

- Porque se te amasse não deixaria de estar ao pé de ti, adivinhar os teus desejos, obedecer-te em tudo como, por exemplo, o Correia...

- O Correia?

- Viste algum rapaz mais atencioso que ele? Quem não soubesse, pensaria que o noivo era ele e não esse fugitivo Vicente... Por que te não casas com o Correia?

- Credo! - exclamou Delfina.

- Por que não? É repugnante?

- Pelo contrário, é um belo rapaz... mas...

- Mas...

- Eu amo ao outro.

- Isso de amar o outro, quando o outro não se importa contigo... é tolice.

Quando nessa noite Correia apareceu em casa do capitão, as primeiras palavras que proferiu foram que Vicente não podia vir.

Delfina ficou triste.

Mas Correia tratou-a com todas as atenções, procurou distraí-la com tanta delicadeza que a rapariga reparou então no que Júlia lhe havia dito.

Havia com efeito nas maneiras e na assiduidade de Correia alguma cousa que contrastava com a ausência e o proceder incompreensível de Vicente.

"Quem sabe", pensou Delfina, "se ele não me ama?"

Era preciso que a moça estivesse muito absorvida no amor por Vicente para não reparar nisso caso fosse exato o amor de Correia.

Mas parece que era, ou parecia sê-lo, visto que ela assim se convenceu depois de um exame de dois dias.

É impossível que uma mulher nas condições de Delfina tenha ódio a um homem só pelo crime de amá-la.

É crime que se perdoa.

Delfina perdoou ao rapaz.

- Mas não basta o perdão - disse-lhe Júlia quando ela lhe falou a respeito de Correia.

- Então que mais? - perguntou Delfina.

- É preciso amá-lo.

- Estás tola!

Vicente continuava a ir à casa do tio, mas sempre triste e preocupado; em casa dele sentia-se o mesmo. De Roma chorava Tibur; de Tibur chorava Roma.

A preocupação do rapaz, as suas frequentes distrações, as prolongadas ausências, tudo isso foram outras tantas causas de esfriamento entre ele e Delfina. A moça sonhara de longe outro primo; aquele saíra-lhe um tanto fantástico, já desvelado, já esquecido, sem estabilidade nenhuma.

Ao lado dele, Correia, sempre pressuroso e delicado, pronto sempre para adivinhar-lhe os pensamentos. A comparação não podia deixar de ser contrária ao primo.

Em suma, no fim de dois meses estava entabulado o mais formidável namoro entre Correia e Delfina.

Aqui o leitor há de ficar admirado de ver uma moça que quase morre de amores por um rapaz apaixonar-se rapidamente por outro.

Que quer? A cousa passou-se assim; eu estou contando a história de pessoas que conheço, não acrescento nem suprimo nada.

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