Conto

Nem Uma Nem Outra

1873

III

O incidente do tio capitão foi passageira nuvem na vida de Vicente. Quinze dias depois estava inteiramente esquecido. A própria Clara, apesar da tristeza que lhe produzira a proposta do capitão, não se lembrava já dele. Tudo parecia ter voltado ao antigo tempo.

Assim foi com efeito durante três meses; mas, no fim de junho, Vicente recebeu uma carta do capitão pedindo-lhe que a saúde de Delfina exigia a presença dele na fazenda. A carta não tinha ar de ordem nem de súplica: era um simples pedido.

Vicente ficou impressionado com a carta do tio. Sentia-se com remorsos do que porventura tivesse acontecido; era-lhe necessário reprimir o mal, se mal havia. Tal foi, com efeito, a sua resolução.

Mas essa resolução não durou muito tempo; posto que o rapaz visse a gravidade do caso, não podia esquecer-se de que havia uma proposta em pé, talvez que a presença dele na fazenda não fizesse mais do que acelerar a realização de uma ideia que lhe era mortal.

Vicente desistiu de ir à fazenda.

Desta vez, porém, não comunicou a Clara o que havia, e tudo pareceu continuar no mesmo estado, até que muitos dias depois, entrando Vicente em casa, achou Clara triste e com vestígios de haver chorado.

- Que tens tu? - perguntou-lhe.

- O que tenho?

- Sim, pareces triste.

- Estou triste, sim; parece que já te não mereço confiança.

- Por quê?

- Recebeste uma carta de teu tio e não me disseste nada.

- É verdade; não queria mortificar-te. Como soubeste disso?

- Achei hoje a carta.

- Pois sim - continuou Vicente -, recebi a carta e para te não afligir não te participei cousa nenhuma. E vês que pouco me importou, visto que não parti.

- Fizeste mal.

- Fiz mal?

- Devias ter ido à fazenda.

Vicente franziu a testa.

- Clara - disse ele -, não me amas?

- Eu? Ah! Injusto que tu és! Amo-te, sim, e muito; mas que tem isso com o simples pedido de um pai que te pede a salvação de uma filha?

- A salvação? É romanesco demais.

- Incrédulo!

- Devo sê-lo, Clara, em não crer que uma moça, que eu vi menina pela última vez, tamanho amor criasse por mim que venha a morrer dele.

- O coração tem mistérios.

- Falemos de outra cousa.

- Não - disse Clara -, falemos disto. Tu vais a Minas.

Vicente fez um gesto de impaciência.

- Não te zangues - continuou a moça -; vais a Minas, e lá te demoras o tempo preciso para acalmar essa pobre moça; voltarás depois. Vais, sim?

Vicente fitou em Clara olhos desconfiados; através daquela insistência ia uma intenção oculta, e pela primeira vez sentiu ciúmes.

Parece que a moça o compreendera logo, porque levantou-se da cadeira em que se achava e lançou ao rapaz um olhar tão soberano e tão sincero, que ele sentiu-se envergonhado.

- Bem sei, Clara, qual é a tua ideia. Sentes que eu não vá por tua causa; não queres ter o remorso de haver feito sofrer ninguém.

- Quando assim fosse?... - perguntou a moça.

- Era bonito da tua parte.

Clara sorriu tristemente.

- Achas bonito? Eu acho que é simplesmente justo. Que direito tenho eu de fazer sangrar o coração de uma pobre menina?

- Clara, tu não me amas, porque o amor é menos filantropo.

- Não entendo; eu sou assim.

A conversa ficou nisto.

O jantar foi triste, ambos estavam preocupados.

A verdade é que as palavras da moça não deixaram de impressionar o rapaz; compreendia ele que não o haviam de casar à força ao passo que a presença dele na fazenda podia influir beneficamente no ânimo da prima.

De noite assentou que iria a Mar de Espanha.

Fixou a viagem para daí a dois dias.

Clara alegrou-se com a notícia.

- Que dor me tiras tu - disse ela -; vai, e eu prometo que rogarei a Deus por ti, por ela, e pela nossa felicidade.

No dia seguinte, Vicente entrou a fazer os preparativos de viagem; comprou a mala necessária, e já ia com ela atravessando a rua do Ouvidor para ir à casa, quando viu à porta do Hotel de Europa, na rua do Carmo um homem falando para dentro de um carro.

Era o capitão.

Vicente parou, e viu daí a instantes sair de dentro uma moça alta, mas débil e pálida, em quem reconheceu Delfina.

A moça entrou para o hotel acompanhada do pai. Vicente conservou-se alguns instantes parado, e depois seguiu viagem para a rua do Passeio acompanhado do preto que lhe levava a já inútil mala.

Contou o caso a Clara. A moça estremeceu desta vez como se visse o perigo perto e iminente. Contudo, disse-lhe:

- Pois melhor; em vez de ires ao Mar de Espanha; vais ao Hotel de Europa; é mais perto, e eu tenho o prazer de saber hoje em que param as cousas.

Era o alvitre mais natural; Vicente foi ao hotel.

Quando lá chegou, ainda Delfina repousava da viagem; mas o capitão recebeu-o tranquilo, senão alegre.

- Meu tio - disse Vicente -, eu ia partir amanhã, vinha com a mala, há pouco, quando o vi entrar aqui, e mais a prima.

- Há tanto tempo que te escrevi! - observou o velho tristemente.

- É verdade; mas eu não pude ir logo como queria. Cresceram-me os trabalhos, e só agora... Onde está a prima?

A pergunta relativa à prima era uma necessidade, visto que Vicente mentira por uma triste necessidade da sua situação. O velho achou natural a pergunta e respondeu:

- Está descansando.

- Vem doente? - perguntou Vicente depois de alguns instantes.

- Vem; quero consultar um médico.

A posição do rapaz tornava-se embaraçada; armara-se de argumentos para paliar os projetos do tio, e achava o velho a cem léguas do assunto, evitando tocar nele.

Depois de um silêncio que era de espinhos para Vicente, apareceu finalmente Delfina.

Estava pálida e desfeita; via-se nela os sinais de um sofrimento íntimo e longo. No entanto, via-se-lhe a beleza em todo o esplendor da virgindade; e a palidez como que lhe completava as graças, porque assim como as cores vivas são essenciais a certos tipos de mulher, outros há cujo realce provém do descorado do rosto.

Tinha uns belos olhos negros, agora um pouco empanados, mas ainda assim serenos e expressivos. Os cabelos, que eram da mesma cor, estavam penteados com graça, e emolduravam uma testa alta e inteligente.

Quando Delfina entrou na sala, Vicente fez um pequeno gesto de espanto, que era não somente produzido pelo aspecto doentio da prima, mas também pela beleza desenvolvida que ele jamais suspeitara na criança que vira havia cinco anos.

Quanto a Delfina, não pôde conter um grito. O pai correu para ela, e Vicente, que se tinha levantado, foi direito à prima e estendeu-lhe a mão. A moça apertou-lha com força e fitou nele os seus belíssimos olhos em que havia tudo, exprobração, agradecimento, amor.

Durou esta cena alguns segundos.

- Anda sentar-te - disse por fim o capitão à filha.

O autor de um romance tem obrigação de conhecer profundamente os seus personagens. Direi de Vicente, que, se ele tivesse o coração livre, ali mesmo diria:

- Prima, aqui estou; sou seu esposo.

Quanto a mim, esta declaração valeria mais que uma consulta do Valadão ou do Pertence.

Mas o rapaz não tinha o coração livre; para que tais palavras lhe pudessem sair da boca, era necessário que não tivesse dentro de si um pensamento absoluto e constante: o amor de Clara.

Delfina, porém, que, como todos os naufragados, atirava-se à primeira ponta de rochedo, encheu-se toda com a esperança de que finalmente o seu amor ia ter uma recompensa.

Vicente jantou lá nesse dia, entre o tio e a prima, alegre porque era mister consolar a enferma, mas preocupado com a situação que o acaso ou o destino lhe proporcionara.

O capitão, apesar de não crer nem esperar nada da parte do sobrinho, pensou por um instante que era possível salvar tudo.

"Se a dúvida do rapaz" (pensava ele) "é não amar a rapariga, estou que pode vir a amá-la, desde que a vir mais vezes e habituar-se a contemplá-la. Nem tudo está perdido."

Esta disposição de espírito tornou suportáveis as horas passadas entre os três. À noite, Vicente despediu-se, dizendo que voltaria no dia seguinte.

Ao sair encontrou um amigo íntimo, a quem confiava todos os fatos de sua vida, e que partilhava com Clara de sua inteira confiança.

- Estás agora gastando no Hotel de Europa? - perguntou-lhe o amigo.

- Não; vim ver meu tio e minha prima.

- Chegaram de Minas?

- Hoje mesmo.

Seguiram os dois de braço dado pela rua do Ouvidor, e, como Vicente parecesse triste, o amigo sacudiu-lhe o braço.

- Que diabo tens tu hoje? Parece que viste alguma bruxa?

- Correia - respondeu Vicente -, estou numa situação de espinhos.

Correia esticou o ouvido.

Vicente contou-lhe tudo. O amigo Correia ouviu a narração atentamente e concordou com Vicente que a situação era das mais graves que podem surgir na vida de um rapaz.

- Que me aconselhas tu?

- Diversas cousas; primeiramente o casamento...

- Isso não - atalhou Vicente.

- Nesse caso - continuou Correia -, nova recusa peremptória.

- Seria matá-la.

- Terceiro alvitre: não respondas nada, não afirmes nada, não prometas nada. Supõe que estás feito embaixador e que o teu governo te manda ordem de escrever uma resma de papel em notas diplomáticas que não digam cousa nenhuma. É o caso.

- Isso é o que é difícil.

- Confesso que sim; mas, se fosse fácil, tu não vinhas aconselhar-te comigo. Vai com isto, e dir-me-ás o resultado.

- Por outro lado - disse Vicente -, Clara está a insistir comigo em favor da prima.

- Quer que te cases?

- Não, mas interessa-se tanto pela sorte da outra, que eu tenho medo de contar-lhe a realidade.

- Não lhe contes nada, é muito melhor. Isto de mulheres deitam tudo a perder. É capaz de fazer alguma.

Os dois amigos chegaram à rua do Passeio, e, estando perto de casa, Correia foi tomar chá com Vicente. Clara indagou do estado de Delfina e do resultado da entrevista. Vicente teve o cuidado de dizer que a doença da prima parecia-lhe mais imaginária que real. Quanto aos sentimentos por ele, não acreditava que fossem o que supusera. Não passava de um capricho de moça.

Correia, como bom Cireneu, comentou a exposição do amigo com algumas pilhérias relativas ao desejo que as meninas têm de casar, e com isso acabou a noite e acabou o capítulo.

IV

O capitão Ferreira deixou o Hotel de Europa e foi morar na rua dos Inválidos. Ao mesmo tempo mandou chamar o médico para tratar da filha. Não posso, porém, ocultar que o capitão confiava mais que tudo na presença do sobrinho para o restabelecimento de Delfina; e ao mesmo tempo contava que a moça influísse no espírito do rapaz uma boa resolução, e deste modo tudo previa alcançado sem pau nem pedra.

Vicente não deixou de visitar frequentemente a família; lá se demorava horas inteiras, jantava muitas vezes e retirava-se para casa alta noite e, ao passo que deixava em casa do tio a alegria e a satisfação, ia encontrar igual satisfação e alegria na casa dele. Clara era primeira a insistir com ele para que não deixasse de visitar com frequência a casa do tio.

O desinteresse da moça, posto que magoasse o amor-próprio do rapaz, não deixava de lhe parecer heroico. Ora, justamente estas duas impressões contrárias constituíam da parte de Vicente a principal força para resistir aos encantos da prima, ao sentimento de piedade que o estado dela inspirava, e às solicitações do capitão. Clara contara com isso? É de crer que sim, porque a ideia de perder Vicente não a mortificava nunca, e parecia tão longe dela como um pólo está do outro pólo.

Uma noite, Vicente, por simples brincadeira, disse a Clara:

- Sabes, Clara? Vou casar com a prima.

A moça empalideceu, e como o rapaz lhe visse nos olhos duas lágrimas, prestes a cair, bebeu-as com dois beijos, e tudo acabou bem como nas comédias.

Correia, porém, nutria alguma desconfiança de que Vicente viesse a casar com a prima, e disse-lho francamente uma vez.

- Não - respondeu Vicente -, é cousa decidida, não me caso. E Clara... devia acaso abandonar essa pobre moça?

- É verdade que há essa dificuldade - respondeu Correia -, mas quem pode ter mão ao coração? Tua prima parece-me furiosamente bonita. Vi-a outro dia, quando lá passei por casa dela; a mesma doença dá-lhe um encanto novo. Sabes se podes vê-la sempre com esses olhos frios?

- Posso.

- Duvido. Não se resiste a uma moça bonita. Que olhar que tua prima tem!

Vicente opôs-se a todos os receios do amigo, e a sua ternura por Clara crescia à proporção que o Correia se mostrava receoso.

Não é que Vicente desconhecesse a influência da beleza de Delfina. Uma noite em que lá se demorara até onze horas, saiu dizendo consigo: "É pena que eu não esteja livre; Delfina seria uma excelente esposa. Que alma e que beleza! Que ternura e que graça!"

Estas mesmas expressões, usava o moço quando falava a Clara de sua prima; um dia, porém, ou porque quisesse mortificá-la, ou por qualquer outro motivo, Vicente deixou de falar nesse sentido, e daí a dias até deixou de tocar no nome de Delfina ou de cousa que lhe dissesse respeito.

Os leitores facilmente adivinham a verdade. A doente começava a influir alguma cousa no espírito do rapaz. Era natural; não se resiste ao influxo de uma beleza que nos ama e adoece por nós. A vaidade interessa-se primeiro; depois o coração.

Cumpre dizer, porém, em honra da lealdade do rapaz, que, apenas entrou a sentir essa diferença em si, resolveu cortar a intimidade com o capitão; para ele era uma questão de honra resistir aos encantos da amável prima.

Clara devia sentir a diferença de Vicente pela ternura demasiada e desusados carinhos com que ele lhe falava apenas voltava para casa. Parecia que cada vez que saía da casa da prima tinha um erro a expiar, e fazia-o com sinceridade, porque o seu amor ainda estava todo com a primeira mulher que soubera apoderar-se-lhe do coração.

Entretanto, Delfina ia melhorando a olhos vistos; no fim de um mês estava completamente restituída à saúde; e a alegria, que por tanto tempo se ausentara dela, voltou-lhe inteiramente e absoluta.

É que Delfina acreditava sinceramente na possibilidade de casar com o primo. As maneiras com que este a tratava não podiam deixar de confirmar aquela esperança, principalmente depois da certeza que o rapaz tinha de ser amado por ela.

Também acreditava assim o capitão, que até chegou a tocar nisso em presença da filha.

- Vicente, quando será o dia?

Delfina fitou os olhos no rapaz, e este, surpreso com a pergunta, receoso pelo efeito de uma recusa e, mais que tudo sem saber o que havia de dizer, respondeu:

- Talvez... breve...

A moça palpitou de alegria.

É inútil dizer que o rapaz não referiu esta cena a Clara, mas referiu-a a Correia, que sorriu maliciosamente.

- Por que sorris? - perguntou-lhe Vicente.

- Porque me anunciaste o teu casamento.

- Não creio nisso.

- Vê-lo-ás.

- Respondi aquilo por não saber o que havia de dizer; mas afianço que não posso casar com a prima.

- Queres tu que eu me case?

- Importa-me pouco - respondeu Vicente.

- Dizes isso com um ar...

- Ora, um ar!

- Não és capaz de apresentar-me lá?

- Hoje mesmo.

- Está dito?

- Está dito.

Nessa noite, Correia foi apresentado em casa do capitão, que o recebeu com extrema cordialidade. Delfina não simpatizou nada com ele, e teve a franqueza de dizê-lo ao primo.

Sejamos exatos: Vicente estimou muito a antipatia da moça.

Entretanto, achou que era comprometê-lo, se o dissesse ao amigo. Este, porém, que tinha uma admirável penetração, logo no dia seguinte, disse a Vicente:

- Tua prima antipatizou comigo.

- Não creias nisso!

- É o que te digo.

Vicente admirou a sagacidade do amigo, e ao mesmo tempo deu-se por feliz ao ver que ele lhe dava aquela notícia com a mais perfeita indiferença.

Com efeito, Correia parecia importar-se tanto com a antipatia de Delfina, como se importaria com a primeira camisa de Carlos Magno, dado que não fosse amante de curiosidades históricas.

Era um caráter singular o amigo de Vicente; parecia não ter alma, nem sentimento de espécie alguma; e, entretanto, o sobrinho do capitão tirou dele provas de verdadeira dedicação. Há muita gente assim; capaz de sacrificar-se por outrem, fria e indiferentemente, sem nenhuma dessas expansões que são o verdadeiro toque das grandes almas. O sentimento de afeição não é um castelão encerrado numa torre antiga; a sua primeira necessidade é abrir asas por esse espaço fora, comunicar-se a todo o mundo, e como os pássaros da floresta segredar a todos os ecos as alegrias do seu canto.

Correia parecia estimar igualmente a Clara, por causa do afeto que a prendia a Vicente, e todavia nunca este viu da parte dele a menor demonstração de semelhante estima.

Um dia teve a franqueza de dizer-lho.

Correia sorriu e respondeu:

- Estimo a vocês ambos; mas não sei que por isso seja necessário nem de bom gosto andar abraçados a cada instante.

V

O capitão sentia-se feliz.

Dia por dia, a moça ia melhorando, e a presença de Vicente já lhe não parecia totalmente indiferente.

- O bicho começa a morder o coração do rapaz - disse o velho.

A sua convicção era tal que chegou a marcar a época do casamento de Vicente com Delfina. Era contar muito com o futuro; e pela sua parte, Vicente jurava entre si que não casaria nunca com a prima. A verdade, porém, é que já sentia alguma tristeza quando não estava em casa do tio.

Delfina tinha a mesma confiança do pai. E os motivos de sua confiança eram outros e mais poderosos. Era bonita, e tinha a consciência da beleza; além disso, era completa mulher; sabia como se prende um homem a quem se ama - não porque lho houvessem ensinado, mas simplesmente por intuição.

Nas relações criadas na Corte, encontrou uma amiga, moça, solteira como ela, a quem comunicava todos os pensamentos.

Júlia era o nome da outra, e tinha um namorado também. A diferença é que com Júlia dava-se o contrário do que acontecia a Delfina. O doutor Castrioto amava Júlia e esta não se importava com ele, isto é, dizia que não se importava, o que é muito diferente.

É curioso transcrever aqui umas duas cartas de Júlia e Delfina, cheias dessa confiança que dá a situação de duas moças casadeiras.

A primeira carta é de Delfina e era assim:

Meu bem,

Sonhei esta noite com ele. Sonhei que nos casávamos, e confesso-te que tive um prazer enorme nisto. Infelizmente foi simples sonho.
Tanto eu, como papai, acreditamos que o resultado de tudo será o meu casamento com o primo. Ele vem cá todas as noites, e algumas vezes de dia também; conversamos muito, e sobre tudo falo pouco, porque gosto de ouvi-lo.
Ontem, aconteceu que, achando-nos sós, ficamos algum tempo calados. Por fim, Vicente suspirou.
- Onde vai esse suspiro? - perguntei eu.
- A parte nenhuma.
- Cuidei que ia a alguma parte.
- Eu nem sei se suspirei.
Vê tu que velhaco; suspirou e disse não saber se havia suspirado.
A conversa ficou nisto; mas eu suponho que o suspiro veio com direção a mim. Que dizes?

Tua

Delfina

A resposta de Júlia não se fez esperar.

Dizia assim:

Sempre és muito tola, Delfina. Pois que te importam lá os suspiros e os amores do primo? Faze como eu com o Castrioto, que tanto suspira por que eu o ame, quanto eu suspiro por ver-me livre dele.
Não há nada como ser solteira, minha amiga; é a liberdade. Estes senhores se pilhando casados fazem o diabo, e nós padecemos.
Tenho exemplos disto; e você diz: quem vê as barbas do vizinho arder põe as suas de molho.
Eu cá já as pus...
É verdade que se papai insistir em que eu case com o Dr. Castrioto, não terei remédio senão casar; mas com uma condição: é que ele não há de escrever uma linha sequer. Não sabes? O Castrioto é escritor; deu em romancista. Às vezes aparece cá em casa com uns rolos de papel e lê aquilo tudo na sala, que é um aborrecimento, exceto para o papai, que acha que ele é um grande talento.
Será bonito, acredito; mas por escrever... antes o Alexandre Dumas.
Vem jantar cá domingo. Dançaremos.

Tua

Júlia

A carta de Júlia está indicando na moça um desses espíritos galhofeiros, incapazes de tomar a vida a sério. O pobre Castrioto, se viesse a casar com ela, faria uma grande tolice... se é que não era ele mesmo um grande tolo, cousa que veremos pelo romance adiante.

O jantar de domingo reuniu em casa de Júlia a família do capitão Ferreira, Vicente e Correia. Este, porém, retirou-se logo depois do jantar, dizendo que se achava doente.

O pai de Júlia era um velho bem apessoado, lhano, expansivo, mas com pouca instrução e nenhum gosto, razão pela qual acreditava no talento de Castrioto.

No fim do jantar, foram todos para a sala, e conversou-se alegremente sobre os sucessos do dia. O capitão contava anedotas; Delfina conversava com Vicente; Castrioto suspirava a um canto. Júlia ia de um a outro grupo, alegre e descuidada, sem dar sequer pelo namorado.

De repente, Alvarenga (era o pai da amiga de Delfina) diz em voz alta a Castrioto:

- Doutor, vamos à obra.

Castrioto levantou-se.

- O Dr. Castrioto - continuou Alvarenga -, vai regalar-nos com a leitura de um romance. É um grande talento, capitão; os seus romances são magníficos.

- Que grande maçada! - disse Júlia aproximando-se de Delfina e Vicente.

- Olha que ele te ama! - observou Delfina.

- Importa-me pouco!

- É assim tão cruel? - perguntou Vicente.

- Com um maçante, sou.

- Não zombe, minha senhora - disse Vicente sorrindo.

No entanto, Castrioto meteu a mão na algibeira e tirou um rolo de papel. Júlia soltou um profundo suspiro; uma tia dela, que gostava imensamente dos romances do rapaz, abriu um sorriso de contentamento; Alvarenga sorveu uma pitada, e convidou Castrioto a sentar-se em posição de ser ouvido por todos.

Houve grande rumor de cadeiras, de vestidos e de sapatos. Júlia, com grande má vontade, não achava lugar capaz e agitava-se toda. Por fim sentou-se dizendo a Delfina:

- Deixa estar que eu o curo.

Acomodaram-se todos.

Castrioto desenrolou as tiras, fato este que produziu um calafrio em Vicente.

- Como se chama este novo romance? - perguntou Alvarenga.

- Chama-se: Os primeiros amores de um rapaz ou Os destinos escritos.

- Bonito! - disse Júlia com um sorriso de escárnio.

Castrioto não compreendeu a intenção e agradeceu com a cabeça.

Depois tossiu e leu o que se segue:

Aquele dia acordei cedo. Trouxe-me o moleque à cama uma cartinha delicadamente fechada e recendendo a baunilha. Pensaram que era de alguma dama? Não; era de meu amigo Oliveira: antes de conhecer-lhe a letra, tinha-lhe conhecido o perfume.

A carta dizia assim:

Estêvão,
Adiou-se a ceia de hoje; fica para quinta-feira. Mas não chores, temos compensação. Meu tio, o desembargador, dá hoje uma partida e quer por força que venhas passar a noite conosco. Tanto lhe falava em ti que o velho ficou com vontade de conhecer-te. Contamos contigo. Adeus.
Oliveira

Tinha eu então vinte anos. Nessa idade não se discute o prazer; aceita-se sob todas as formas. A partida compensava a ceia. Verdade é que a ceia tinha para mim um atrativo singular, o atrativo da curiosidade. Era a minha estreia nas terras de Corinto. Estreia, entenda-se como residência. Até então contentava-me eu em fazer pequenas excursões à famosa terra: aportava de manhã e fazia-me ao largo de tarde; outras vezes dava à navegação o sentido inverso. Mas que era isso para conhecer tamanho mundo e tão variada gente?

Afora esta curiosidade, toda infantil, a ceia não valia para mim mais do que a partida.

Preparei-me à noite e fui à casa do desembargador, que era na rua dos Inválidos.

Havia pouca gente; via-se que a assembleia tinha um caráter íntimo.

As moças orçavam por vinte, e eram todas elegantes e bonitas. Havia alguns rapazes e poucos velhos, todos mais ou menos aparentados com o desembargador.

Oliveira esperava por mim com ansiedade, posto não fosse tarde.

Vendo-me entrar risonho, exclama:

- Bravo! Cuidei que viesses triste.

- Por quê?

- Por causa da transferência.

- Ora!

Oliveira levou-me ao desembargador. Era um bom velho, uma dessas velhices que indicam ter havido tranquila mocidade. O desembargador apertou-me as mãos com efusão; disse-me que o sobrinho lhe falara de mim por modo que lhe espicaçara a curiosidade.

- Por quê? - perguntei eu sorrindo.

- Porque adivinho que o senhor é um moço.

Esta frase, que eu teria compreendido agora, confesso que não a compreendi então. Mas sempre me parece que o velho me fazia um elogio e agradeci inclinando a cabeça.

- Deixe-me apresentá-lo a estas moças.

O desembargador deu-me o braço e foi apresentar-me primeiramente às filhas, e depois a todas as outras damas. Depois de apresentar-me à última, voltou-se para o sobrinho, que se achava perto, e disse-lhe:

- Falta uma!

- Falta D. Helena - respondeu Oliveira -. Está tardando. Querem ver que não vem?

A Helena em questão chegou daí a meia hora pelo braço de um velho calvo e baixinho. O velho era o pai da moça. Soubemos então que a demora tinha tido por causa a ausência do pai, que era jurado e nesse dia entrara no conselho que julgara um crime de estelionato, processo célebre.

Como o desembargador me havia apresentado ao pai e à filha, deixei que o pai narrasse ao desembargador as peripécias do tribunal, e fui conversar com a filha e Oliveira, que nesse momento tinham passado a uma saleta, onde havia outras moças entretidas em mil importantíssimas inutilidades.

Oliveira, inebriante de baunilha, tinha-a nos cabelos, no lenço e nas mãos. Creio até que a tinha nas palavras. A conversa, quando eu cheguei, versava justamente sobre o perfume favorito de Oliveira. Afirmava este que o primeiro perfume da criação era a baunilha; uma prima dele optava pela violeta; eu manifestei francamente a minha preferência pelo sândalo.

Helena não dava opinião.

Como eu lhe perguntasse diretamente o que pensava daquele conflito, respondeu-me:

- Pela minha parte gosto de todos os perfumes; acho-os todos bons...

Estas palavras, disse-as ela sorrindo, e eu sorrindo as ouvi, ainda que me não agradasse a universalidade do seu gosto. Pareceu-me que ela desdenhava aquele gênero de conversa. A suspeita feriu-me os brios, e eu entrei com ardor na defesa da opinião que havia manifestado. O sândalo levou-me naturalmente a falar do Oriente, e creio que disse cousas bonitas, porque os ouvintes tiveram a bondade de interromper-me com demonstrações de agrado.

Quanto a Helena, ouviu-me silenciosamente, e como o piano, apenas eu acabara de falar, começava o prelúdio de uma quadrilha, a única manifestação de aplauso que ela me deu foi voltar-se para Oliveira e dizer-lhe:

- É a nossa.

Oliveira voltou-se para mim dizendo:

- És meu vis-à-vis.

Fui ver um par, e a quadrilha começou.

Nisto...

A leitura do romance foi interrompida. Júlia tivera um ataque de nervos que durou alguns minutos; quando veio a si, estava a moça pálida e mais interessante do que era.

Castrioto, que como autor que era não perdoaria a interrupção, perdoou-a à moça por ser quem era.

Quando Júlia ficou boa, todos se alegraram; e como Delfina fosse abraçá-la, ela disse-lhe ao ouvido:

- Isto não foi ataque; foi só para acabar com a tal leitura.

Vicente ouviu as palavras de Júlia.

- É muito cruel - disse-lhe ele -; não se paga assim a quem ama.

- Então, como é? - perguntou a filha de Alvarenga.

Vicente não respondeu, mas olhou para Delfina, que nesse momento olhou para ele.

Aquele olhar decidiu o destino.

A+
A-