Conto

Nem Uma Nem Outra

1873
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em agosto, setembro e outubro de 1873, assinado por J.J. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

II

Vicente foi exato na promessa.

O capitão Ferreira, que já estava impaciente, apesar de não ser tarde, andava da sala para a janela, olhando para todos os lados, a ver se descobria sinais do sobrinho. Ora, o sobrinho entrou justamente numa ocasião em que ele estava na sala; um criado do hotel levou-o ao aposento do capitão, aonde Vicente entrou justamente na ocasião em que o capitão ia para a janela, de maneira que foi uma grande surpresa para o tio ver o sobrinho repimpado numa cadeira quando menos o esperava.

- Por onde diabo entraste tu?

- Pela porta.

- É singular; não te senti entrar. Ora, ainda bem que vieste; são horas de jantar, e é bom que jantemos antes, a fim de termos tempo para conversarmos a respeito do negócio de que te falei.

Vicente estava alegre e ruidoso como era do seu natural. A entrada inesperada do tio na casa da rua do Passeio é que o tinha tornado acanhado e hesitante; agora, porém, que já não tinha motivos para hesitações nem acanhamentos, deu o rapaz largas ao seu gênio folgazão.

A surpresa foi agradável para o capitão Ferreira, que não tinha a insuportável mania de querer moços velhos, e aceitava o gênio de todas as idades e de todos os temperamentos.

Acabado o jantar, o capitão foi com o sobrinho para o seu aposento e aí começou a conversa importante que o trouxera à Corte.

- Primeiramente - disse o velho -, deixa-me puxar-te as orelhas pela tua prolongada ausência lá de casa, onde ias ao menos uma vez por ano. Que diabo andas fazendo aqui?

- Meu tio, ando muito ocupado.

- Graves negócios, não?

- Não graves, porém, maçantes.

- Sim? Imagino. Estás empregado?

- Numa casa comercial, onde ganho alguma cousa, e isso junto com o pouquinho que me ficou de minha mãe...

- Eram uns vinte contos, não pode ser muito, talvez não seja nada.

- Isso está intacto.

- Confesso - disse o velho - que não te supunha tão econômico. Mas por que razão não arranjaste uma licença para ires ver-me à fazenda?

- No comércio é difícil.

- Pois mandava-se o emprego ao diabo; lá em casa há um canto para um parente.

Vicente não respondeu; o velho continuou:

- E é justamente para isto que eu vim falar-te.

- Ah! - disse Vicente arregalando os olhos.

- Aposto que recusas?

- Recusar? Mas...

- Estás com pouca vontade, e eu no teu caso faria o mesmo; mas não se trata só de abandonar a Corte para ires encafuar-te numa fazenda. Para um rapaz a mudança há de ser difícil. A carne é dura de roer, mas eu trago-te o molho.

Dizendo isto, o capitão fitava os olhos no rapaz cuidando ver neles uma curiosidade misturada de alegria. Viu a curiosidade, mas não viu a alegria. Não se perturbou, e continuou:

- Teu pai, que era meu irmão, incumbiu-me de velar por ti, e fazer-te feliz. Até aqui tenho cumprido o que prometi, porque, sendo mais feliz na Corte, não te forcei a ir viver comigo na fazenda; e quando quiseste ter um emprego, esse que tens agora, hás de lembrar-te que alguém to ofereceu.

- É verdade.

- Pois bem, foi por iniciativa minha.

- Ah! Foi meu tio?

- Pois então? - disse o velho, batendo-lhe na perna a rir -. Cuidavas que eu ignorava o teu emprego? Se eu mesmo to dei; e mais, tenho indagado do teu comportamento na casa, e sei que é exemplar. Já por três vezes mandei dizer ao teu patrão que te desse licença por algum tempo, e ele mesmo, segundo me consta, falou-te nisso, mas tu recusaste.

- É verdade, meu tio - respondeu Vicente -; e eu não sei como lhe agradeça...

- O haveres recusado visitar-me?

- Confesso que...

- Compreendo o motivo; os prazeres da Corte - as delícias de Cápua, como diz o vigário Tosta - eis a causa.

Vicente caía das nuvens com todas estas notícias que lhe dava o capitão, ao passo que o capitão ia desenrolando-as sem intenção de afrontar nem censurar o rapaz... O capitão era um bom velho; compreendia a mocidade, e desculpava-lhe tudo.

- Ora bem - continuou ele -, quem fez tanto por ti entende que é chegado o momento de fazer-te feliz de outra maneira.

- Qual maneira? - perguntou Vicente curioso e ao mesmo tempo assustado com o gênero de felicidade que lhe anunciava o tio.

- De uma maneira tão velha como Adão e Eva, o casamento.

Vicente empalideceu; esperava tudo, menos o casamento. E que casamento seria? O velho não disse mais nada; Vicente gastou alguns minutos em formular uma resposta, que seria ao mesmo tempo une fin de non recevoir.

- Que achas? - respondeu finalmente o velho.

- Acho - respondeu resolutamente o rapaz - que meu tio é em extremo bondoso comigo em me propor o casamento para minha felicidade. Com efeito, parece que o casamento é o remate natural da vida, e por isso aceito com braços abertos a sua ideia.

O velho sorria de contentamento, e ia já abraçá-lo quando o sobrinho acabou o discurso.

- Mas - acrescenta Vicente -, a dificuldade está na esposa, e eu por enquanto não amo a ninguém.

- Não amas a ninguém? - disse o velho deitando-se -; mas então cuidas que eu vinha à Corte só para te propor um casamento? Trago duas propostas - a do casamento e a da mulher. Não amas a mulher? Hás de vir a amá-la porque ela já te ama.

Vicente estremeceu; a questão agora tornava-se mais complicada. Ao mesmo tempo a ideia de ser amado sem que ele soubesse nem tivesse feito nenhum esforço era uma cousa que lhe sorria à vaidade. Entre estes dois sentimentos contrários, o rapaz achou-se embaraçado para dar uma resposta qualquer.

- A mulher que te destino e que te ama é minha filha Delfina.

- Ah! A prima? Mas ela é criança...

- Era há cinco anos; agora está com dezessete anos e creio que a idade é própria para um consórcio. Aceitas, não?

- Meu tio - respondeu Vicente -, eu aceitaria com muito prazer a sua ideia; mas, posto que eu reconheça toda a vantagem desta união, contudo, não quero fazer uma moça infeliz, e é o que pode acontecer se eu não amar minha mulher.

- Dar-lhe-ás pancadas?

- Oh! Perdão! - disse Vicente, não sem esconder um sentimento de indignação que lhe provocava a pergunta do velho -. Mas, não amando a uma pessoa que me ama, é fazê-la infeliz.

- Histórias da vida! - disse o velho levantando-se e passeando pela sala -; isto de amor em casamento é uma burla; basta que se estimem e se respeitem; é o que eu exijo e nada mais. Vê lá; em troca disso, dou-te a minha fortuna toda; bem sei que isto é o menos para ti; mas ter mulher bonita (porque Delfina é uma jóia), meiga, dócil é uma fortuna que só um pateta pode recusar...

- Eu não digo que...

- Um pateta, ou um estouvado, como tu; um estouvado que abandonou a casa de comércio em que se achava por um capricho, uma simples desinteligência com o dono da casa... Olhas espantado para mim? É verdade, meu rico; soube de tudo isso; e é essa a razão de não saber de ti quando aqui cheguei. Creio ao menos que estarás empregado?

- Estou - balbuciou o moço.

O capitão estava já zangado com as recusas do sobrinho, e não se pôde conter; disse-lhe o que sabia. Vicente, que o cuidava iludido acerca da saída da casa em que estivera, recebeu a notícia como uma bala de 150.

O velho continuou a passear silencioso; Vicente deixou-se estar assentado sem dizer palavra.

No fim de alguns minutos, voltou o capitão à sua cadeira e acrescentou:

- Não me sejas palerma; atende que eu venho fazer a tua felicidade. Tua prima suspira por ti. Só o soube quando o filho do coronel Vieira foi lá pedi-la em casamento. Disse-me ela então que só se casaria contigo; e eu, que a estremeço, quero fazer-lhe a vontade. Vamos; não posso esperar; decide-te.

- Meu tio - disse Vicente depois de alguns instantes -, não posso dar-lhe uma resposta definitiva; mas afirmo que o que eu puder fazer estará feito.

- Boa confiança devo eu ter nas tuas palavras!

- Por quê?

- Queres saber por quê? É porque eu suponho que andarás por aí perdido, que sei eu? Como se perdem os rapazes de hoje.

- Oh! Quanto a isso, juro...

- Não quero juramentos, quero uma resposta.

O capitão Ferreira era um homem de vontade; não admitia recusas, nem sabia propor cousas daquelas, quando lhe não assistia direito legal. Vicente até então vivera independente do tio; era natural que nunca contasse com a fortuna dele. Querer impor-lhe o casamento por aquele modo era arriscar a negociação, afrontando o orgulho do moço. O velho não reparava nisso, ficou muito admirado quando o sobrinho respondeu secamente às últimas palavras dele:

- Pois bem, a minha resposta é simples; não me caso.

Seguiu-se a estas palavras um profundo silêncio; o velho ficou fulminado.

- Não te casas? - perguntou ele no fim de longos minutos.

O rapaz fez um sinal negativo.

- Reparaste bem na resposta que me deste?

- Reparei.

- Adeus.

E dizendo isto, o velho levantou-se e dirigiu-se para o quarto sem lhe dirigir um olhar sequer.

Vicente compreendeu que estava despedido e saiu.

Quando chegou a casa, achou a moça que já tivemos ocasião de ver no primeiro capítulo, a qual o recebeu com um abraço que era ao mesmo tempo um ponto de interrogação.

- Briguei com meu tio - disse o moço sentando-se.

- Ah!

- Adivinha o que ele queria?

- Mandar-te para fora daqui?

- Casar-me com a filha dele e fazer-me seu herdeiro.

- Recusaste?

- Recusei.

A moça ajoelhou-se diante de Vicente e beijou-lhe as mãos.

- Que é isto, Clara?

- Obrigada! - murmurou ela.

Vicente levantou-a e beijou-lhe por sua vez as mãos.

- Tolinha! Pois há nisto motivo para me agradeceres? E chorando! Clara, deixa-te de lágrimas! Eu não gosto de ver uma moça chorona... Vamos! Ri-te.

Clara sentou-se calada; via-se-lhe a alegria no rosto, mas uma alegria misturada de tristeza.

- Quem sabe? - disse ela no fim de algum tempo -. Quem sabe se fizeste bem recusando?

- Essa agora!

- Recusaste por minha causa, e eu...

- Já vejo que fiz mal em falar-te nisto. Ora, vamos... nada de tolices; anda passear.

Vicente Ferreira, desde que lhe morrera a mãe, deixara o interior da província de São Paulo, aonde vivera, e estabeleceu-se na Corte com o pouco que herdara; algum tempo empregou-se, e já sabemos que por influência do tio, que deveras o estimava. Era um rapaz um tanto orgulhoso, e imaginava que viver com o tio era mostrar-se adulador da fortuna dele, ideia esta de que fugia sempre. Quando estava em São Paulo visitara muitas vezes o tio; mas depois que viera para a Corte nunca mais o fez. Além dos sentimentos que já apontamos acima, não queria deixar a casa ainda que com licença do patrão, que aliás era o primeiro a oferecer-lha; e finalmente a Clara da rua do Passeio tinha grande parte na decisão do rapaz.

Por que essa influência e como começara ela?

Apressemo-nos a tirar do espírito do leitor uma ideia que porventura já lhe tenha surgido, e vem a ser a de que a nossa Clara é uma Margarida Gauthier lavando-se nas águas do amor das culpas passadas.

Clara tinha sido raptada de casa de seus pais por um amigo de Vicente, ou pelo menos sujeito que andava com ele - e abandonada no fim de um mês pelo tratante, que embarcou para Buenos Aires.

A moça achou-se só um dia de manhã, sem arrimo nenhum, nem esperança dele. A primeira ideia que teve foi matar-se; nessa resolução entrou por muito o amor que ainda tinha pelo rapaz. Mas o medo, a educação religiosa que lhe haviam dado depressa lhe arredaram do espírito semelhante ideia.

No meio da sua aflição lembrou-se de Vicente, que lá fora à casa dela uma vez em companhia do fugitivo Enéas. Mandou-o chamar e contou-lhe a sua situação. Vicente ainda não sabia da fuga do amigo, e ficou admirado que ele houvesse cometido semelhante ato de covardia. Mas, sabendo que pelo lado da justiça o raptor nada temia, admirou-se da fuga sem outro motivo aparente além da questão do rapto, motivo que não era motivo, porque um homem que furta uma moça tem sempre ânimo para conservá-la durante algum tempo, até que possa a fuga completar a obra do rapto: a audácia coroada pela covardia.

Ora, esse tempo nunca é simplesmente um mês.

Outra causa devia haver, e Vicente tratou de indagar nesse mesmo dia sem nada obter; no dia seguinte, porém, a gazetilha do Jornal do Commercio tirou todas as dúvidas: noticiava a fuga do homem com alguns contos de réis.

Para acabar já com a história deste sujeito, acrescentarei que, depois de longos trabalhos do mesmo gênero, em Buenos Aires, fugiu ele para o Chile, onde consta que é atualmente empregado em umas obras das estradas.

A moça contou a Vicente qual era a sua posição, e pediu-lhe por esmola o seu auxílio.

Vicente tinha bom coração; achou que naquele estado não devia fazer à moça um discurso inútil sobre o seu ato; cumpria-lhe socorrê-la. Tirou, portanto, um conto de réis do pecúlio que tinha e deu a Clara os primeiros auxílios necessários; alugou-lhe casa e uma criada; preparou-lhe uma mobília e despediu-se.

Clara recebeu agradecida e envergonhada os auxílios de Vicente; mas ao mesmo tempo não via nos atos do rapaz mais do que um sentimento de interesse.

No fim de quinze dias, Vicente foi à casa de Clara e disse-lhe que, não podendo adiantar-lhe tudo quanto ela precisasse e não devendo ela ficar exposta aos perigos da sua situação, era conveniente que procurasse trabalhar, e para isso escolhesse o que mais lhe conviesse.

Clara achou justas as observações de Vicente, e ficou assentado que a moça trabalharia de costureira em casa de alguma modista.

Daí a dias estava a moça empregada.

Entretanto, Vicente não voltou lá mais; de quando em quando recebia um recado de Clara, mas era sempre em assunto que lhe dispensava uma visita pessoal.

O procedimento do moço não deixou de influir na rapariga, que já se arrependia do seu primeiro juízo.

Um dia adoeceu Vicente, e Clara, apenas o soube, obteve licença da modista e foi tratar do enfermo com a dedicação e zelo de uma irmã. A doença de Vicente durou dez ou doze dias; durante esse tempo não se desmentiu a solicitude da moça.

- Obrigado - disse Vicente à rapariga, quando se levantou da cama.

- Por quê? Sou eu quem lhe deve.

- Já pagou de sobra.

- Oh! Nunca! - disse Clara -. O senhor livrou-me a vida, é verdade; mas não fez só isto, livrou-me de entrar numa carreira fatal... e mais...

- E mais nada - disse Vicente.

A moça voltou o rosto e enxugou uma lágrima.

- Por que chora? - perguntou Vicente.

Clara não respondeu, mas levantou os olhos para ele rasos d'água, e parece que nesse momento deviam eles ter uma expressão muito eloquente, porque o rapaz sorriu dizendo estas palavras:

- Ama-me, não?

A moça beijou-lhe a mão.

No dia seguinte Clara despedia-se da modista, e os dous ficaram morando na casa da rua do Passeio, onde já os vimos.

Pede a verdade que se diga que Vicente não amou desde logo a rapariga; mas o amor veio lentamente como um vento fresco da noite que começa mais débil que o hálito de um infante e acaba em forte viração.

Clara era bonita e tinha um excelente coração; o caráter de Vicente estava de perfeito acordo com o dela; ambos punham a felicidade na tranquilidade interior, na mútua afeição, no trabalho e na mediania. Tinham achado tudo isso; por que abandoná-lo?

III

O incidente do tio capitão foi passageira nuvem na vida de Vicente. Quinze dias depois estava inteiramente esquecido. A própria Clara, apesar da tristeza que lhe produzira a proposta do capitão, não se lembrava já dele. Tudo parecia ter voltado ao antigo tempo.

Assim foi com efeito durante três meses; mas, no fim de junho, Vicente recebeu uma carta do capitão pedindo-lhe que a saúde de Delfina exigia a presença dele na fazenda. A carta não tinha ar de ordem nem de súplica: era um simples pedido.

Vicente ficou impressionado com a carta do tio. Sentia-se com remorsos do que porventura tivesse acontecido; era-lhe necessário reprimir o mal, se mal havia. Tal foi, com efeito, a sua resolução.

Mas essa resolução não durou muito tempo; posto que o rapaz visse a gravidade do caso, não podia esquecer-se de que havia uma proposta em pé, talvez que a presença dele na fazenda não fizesse mais do que acelerar a realização de uma ideia que lhe era mortal.

Vicente desistiu de ir à fazenda.

Desta vez, porém, não comunicou a Clara o que havia, e tudo pareceu continuar no mesmo estado, até que muitos dias depois, entrando Vicente em casa, achou Clara triste e com vestígios de haver chorado.

- Que tens tu? - perguntou-lhe.

- O que tenho?

- Sim, pareces triste.

- Estou triste, sim; parece que já te não mereço confiança.

- Por quê?

- Recebeste uma carta de teu tio e não me disseste nada.

- É verdade; não queria mortificar-te. Como soubeste disso?

- Achei hoje a carta.

- Pois sim - continuou Vicente -, recebi a carta e para te não afligir não te participei cousa nenhuma. E vês que pouco me importou, visto que não parti.

- Fizeste mal.

- Fiz mal?

- Devias ter ido à fazenda.

Vicente franziu a testa.

- Clara - disse ele -, não me amas?

- Eu? Ah! Injusto que tu és! Amo-te, sim, e muito; mas que tem isso com o simples pedido de um pai que te pede a salvação de uma filha?

- A salvação? É romanesco demais.

- Incrédulo!

- Devo sê-lo, Clara, em não crer que uma moça, que eu vi menina pela última vez, tamanho amor criasse por mim que venha a morrer dele.

- O coração tem mistérios.

- Falemos de outra cousa.

- Não - disse Clara -, falemos disto. Tu vais a Minas.

Vicente fez um gesto de impaciência.

- Não te zangues - continuou a moça -; vais a Minas, e lá te demoras o tempo preciso para acalmar essa pobre moça; voltarás depois. Vais, sim?

Vicente fitou em Clara olhos desconfiados; através daquela insistência ia uma intenção oculta, e pela primeira vez sentiu ciúmes.

Parece que a moça o compreendera logo, porque levantou-se da cadeira em que se achava e lançou ao rapaz um olhar tão soberano e tão sincero, que ele sentiu-se envergonhado.

- Bem sei, Clara, qual é a tua ideia. Sentes que eu não vá por tua causa; não queres ter o remorso de haver feito sofrer ninguém.

- Quando assim fosse?... - perguntou a moça.

- Era bonito da tua parte.

Clara sorriu tristemente.

- Achas bonito? Eu acho que é simplesmente justo. Que direito tenho eu de fazer sangrar o coração de uma pobre menina?

- Clara, tu não me amas, porque o amor é menos filantropo.

- Não entendo; eu sou assim.

A conversa ficou nisto.

O jantar foi triste, ambos estavam preocupados.

A verdade é que as palavras da moça não deixaram de impressionar o rapaz; compreendia ele que não o haviam de casar à força ao passo que a presença dele na fazenda podia influir beneficamente no ânimo da prima.

De noite assentou que iria a Mar de Espanha.

Fixou a viagem para daí a dois dias.

Clara alegrou-se com a notícia.

- Que dor me tiras tu - disse ela -; vai, e eu prometo que rogarei a Deus por ti, por ela, e pela nossa felicidade.

No dia seguinte, Vicente entrou a fazer os preparativos de viagem; comprou a mala necessária, e já ia com ela atravessando a rua do Ouvidor para ir à casa, quando viu à porta do Hotel de Europa, na rua do Carmo um homem falando para dentro de um carro.

Era o capitão.

Vicente parou, e viu daí a instantes sair de dentro uma moça alta, mas débil e pálida, em quem reconheceu Delfina.

A moça entrou para o hotel acompanhada do pai. Vicente conservou-se alguns instantes parado, e depois seguiu viagem para a rua do Passeio acompanhado do preto que lhe levava a já inútil mala.

Contou o caso a Clara. A moça estremeceu desta vez como se visse o perigo perto e iminente. Contudo, disse-lhe:

- Pois melhor; em vez de ires ao Mar de Espanha; vais ao Hotel de Europa; é mais perto, e eu tenho o prazer de saber hoje em que param as cousas.

Era o alvitre mais natural; Vicente foi ao hotel.

Quando lá chegou, ainda Delfina repousava da viagem; mas o capitão recebeu-o tranquilo, senão alegre.

- Meu tio - disse Vicente -, eu ia partir amanhã, vinha com a mala, há pouco, quando o vi entrar aqui, e mais a prima.

- Há tanto tempo que te escrevi! - observou o velho tristemente.

- É verdade; mas eu não pude ir logo como queria. Cresceram-me os trabalhos, e só agora... Onde está a prima?

A pergunta relativa à prima era uma necessidade, visto que Vicente mentira por uma triste necessidade da sua situação. O velho achou natural a pergunta e respondeu:

- Está descansando.

- Vem doente? - perguntou Vicente depois de alguns instantes.

- Vem; quero consultar um médico.

A posição do rapaz tornava-se embaraçada; armara-se de argumentos para paliar os projetos do tio, e achava o velho a cem léguas do assunto, evitando tocar nele.

Depois de um silêncio que era de espinhos para Vicente, apareceu finalmente Delfina.

Estava pálida e desfeita; via-se nela os sinais de um sofrimento íntimo e longo. No entanto, via-se-lhe a beleza em todo o esplendor da virgindade; e a palidez como que lhe completava as graças, porque assim como as cores vivas são essenciais a certos tipos de mulher, outros há cujo realce provém do descorado do rosto.

Tinha uns belos olhos negros, agora um pouco empanados, mas ainda assim serenos e expressivos. Os cabelos, que eram da mesma cor, estavam penteados com graça, e emolduravam uma testa alta e inteligente.

Quando Delfina entrou na sala, Vicente fez um pequeno gesto de espanto, que era não somente produzido pelo aspecto doentio da prima, mas também pela beleza desenvolvida que ele jamais suspeitara na criança que vira havia cinco anos.

Quanto a Delfina, não pôde conter um grito. O pai correu para ela, e Vicente, que se tinha levantado, foi direito à prima e estendeu-lhe a mão. A moça apertou-lha com força e fitou nele os seus belíssimos olhos em que havia tudo, exprobração, agradecimento, amor.

Durou esta cena alguns segundos.

- Anda sentar-te - disse por fim o capitão à filha.

O autor de um romance tem obrigação de conhecer profundamente os seus personagens. Direi de Vicente, que, se ele tivesse o coração livre, ali mesmo diria:

- Prima, aqui estou; sou seu esposo.

Quanto a mim, esta declaração valeria mais que uma consulta do Valadão ou do Pertence.

Mas o rapaz não tinha o coração livre; para que tais palavras lhe pudessem sair da boca, era necessário que não tivesse dentro de si um pensamento absoluto e constante: o amor de Clara.

Delfina, porém, que, como todos os naufragados, atirava-se à primeira ponta de rochedo, encheu-se toda com a esperança de que finalmente o seu amor ia ter uma recompensa.

Vicente jantou lá nesse dia, entre o tio e a prima, alegre porque era mister consolar a enferma, mas preocupado com a situação que o acaso ou o destino lhe proporcionara.

O capitão, apesar de não crer nem esperar nada da parte do sobrinho, pensou por um instante que era possível salvar tudo.

"Se a dúvida do rapaz" (pensava ele) "é não amar a rapariga, estou que pode vir a amá-la, desde que a vir mais vezes e habituar-se a contemplá-la. Nem tudo está perdido."

Esta disposição de espírito tornou suportáveis as horas passadas entre os três. À noite, Vicente despediu-se, dizendo que voltaria no dia seguinte.

Ao sair encontrou um amigo íntimo, a quem confiava todos os fatos de sua vida, e que partilhava com Clara de sua inteira confiança.

- Estás agora gastando no Hotel de Europa? - perguntou-lhe o amigo.

- Não; vim ver meu tio e minha prima.

- Chegaram de Minas?

- Hoje mesmo.

Seguiram os dois de braço dado pela rua do Ouvidor, e, como Vicente parecesse triste, o amigo sacudiu-lhe o braço.

- Que diabo tens tu hoje? Parece que viste alguma bruxa?

- Correia - respondeu Vicente -, estou numa situação de espinhos.

Correia esticou o ouvido.

Vicente contou-lhe tudo. O amigo Correia ouviu a narração atentamente e concordou com Vicente que a situação era das mais graves que podem surgir na vida de um rapaz.

- Que me aconselhas tu?

- Diversas cousas; primeiramente o casamento...

- Isso não - atalhou Vicente.

- Nesse caso - continuou Correia -, nova recusa peremptória.

- Seria matá-la.

- Terceiro alvitre: não respondas nada, não afirmes nada, não prometas nada. Supõe que estás feito embaixador e que o teu governo te manda ordem de escrever uma resma de papel em notas diplomáticas que não digam cousa nenhuma. É o caso.

- Isso é o que é difícil.

- Confesso que sim; mas, se fosse fácil, tu não vinhas aconselhar-te comigo. Vai com isto, e dir-me-ás o resultado.

- Por outro lado - disse Vicente -, Clara está a insistir comigo em favor da prima.

- Quer que te cases?

- Não, mas interessa-se tanto pela sorte da outra, que eu tenho medo de contar-lhe a realidade.

- Não lhe contes nada, é muito melhor. Isto de mulheres deitam tudo a perder. É capaz de fazer alguma.

Os dois amigos chegaram à rua do Passeio, e, estando perto de casa, Correia foi tomar chá com Vicente. Clara indagou do estado de Delfina e do resultado da entrevista. Vicente teve o cuidado de dizer que a doença da prima parecia-lhe mais imaginária que real. Quanto aos sentimentos por ele, não acreditava que fossem o que supusera. Não passava de um capricho de moça.

Correia, como bom Cireneu, comentou a exposição do amigo com algumas pilhérias relativas ao desejo que as meninas têm de casar, e com isso acabou a noite e acabou o capítulo.

IV

O capitão Ferreira deixou o Hotel de Europa e foi morar na rua dos Inválidos. Ao mesmo tempo mandou chamar o médico para tratar da filha. Não posso, porém, ocultar que o capitão confiava mais que tudo na presença do sobrinho para o restabelecimento de Delfina; e ao mesmo tempo contava que a moça influísse no espírito do rapaz uma boa resolução, e deste modo tudo previa alcançado sem pau nem pedra.

Vicente não deixou de visitar frequentemente a família; lá se demorava horas inteiras, jantava muitas vezes e retirava-se para casa alta noite e, ao passo que deixava em casa do tio a alegria e a satisfação, ia encontrar igual satisfação e alegria na casa dele. Clara era primeira a insistir com ele para que não deixasse de visitar com frequência a casa do tio.

O desinteresse da moça, posto que magoasse o amor-próprio do rapaz, não deixava de lhe parecer heroico. Ora, justamente estas duas impressões contrárias constituíam da parte de Vicente a principal força para resistir aos encantos da prima, ao sentimento de piedade que o estado dela inspirava, e às solicitações do capitão. Clara contara com isso? É de crer que sim, porque a ideia de perder Vicente não a mortificava nunca, e parecia tão longe dela como um pólo está do outro pólo.

Uma noite, Vicente, por simples brincadeira, disse a Clara:

- Sabes, Clara? Vou casar com a prima.

A moça empalideceu, e como o rapaz lhe visse nos olhos duas lágrimas, prestes a cair, bebeu-as com dois beijos, e tudo acabou bem como nas comédias.

Correia, porém, nutria alguma desconfiança de que Vicente viesse a casar com a prima, e disse-lho francamente uma vez.

- Não - respondeu Vicente -, é cousa decidida, não me caso. E Clara... devia acaso abandonar essa pobre moça?

- É verdade que há essa dificuldade - respondeu Correia -, mas quem pode ter mão ao coração? Tua prima parece-me furiosamente bonita. Vi-a outro dia, quando lá passei por casa dela; a mesma doença dá-lhe um encanto novo. Sabes se podes vê-la sempre com esses olhos frios?

- Posso.

- Duvido. Não se resiste a uma moça bonita. Que olhar que tua prima tem!

Vicente opôs-se a todos os receios do amigo, e a sua ternura por Clara crescia à proporção que o Correia se mostrava receoso.

Não é que Vicente desconhecesse a influência da beleza de Delfina. Uma noite em que lá se demorara até onze horas, saiu dizendo consigo: "É pena que eu não esteja livre; Delfina seria uma excelente esposa. Que alma e que beleza! Que ternura e que graça!"

Estas mesmas expressões, usava o moço quando falava a Clara de sua prima; um dia, porém, ou porque quisesse mortificá-la, ou por qualquer outro motivo, Vicente deixou de falar nesse sentido, e daí a dias até deixou de tocar no nome de Delfina ou de cousa que lhe dissesse respeito.

Os leitores facilmente adivinham a verdade. A doente começava a influir alguma cousa no espírito do rapaz. Era natural; não se resiste ao influxo de uma beleza que nos ama e adoece por nós. A vaidade interessa-se primeiro; depois o coração.

Cumpre dizer, porém, em honra da lealdade do rapaz, que, apenas entrou a sentir essa diferença em si, resolveu cortar a intimidade com o capitão; para ele era uma questão de honra resistir aos encantos da amável prima.

Clara devia sentir a diferença de Vicente pela ternura demasiada e desusados carinhos com que ele lhe falava apenas voltava para casa. Parecia que cada vez que saía da casa da prima tinha um erro a expiar, e fazia-o com sinceridade, porque o seu amor ainda estava todo com a primeira mulher que soubera apoderar-se-lhe do coração.

Entretanto, Delfina ia melhorando a olhos vistos; no fim de um mês estava completamente restituída à saúde; e a alegria, que por tanto tempo se ausentara dela, voltou-lhe inteiramente e absoluta.

É que Delfina acreditava sinceramente na possibilidade de casar com o primo. As maneiras com que este a tratava não podiam deixar de confirmar aquela esperança, principalmente depois da certeza que o rapaz tinha de ser amado por ela.

Também acreditava assim o capitão, que até chegou a tocar nisso em presença da filha.

- Vicente, quando será o dia?

Delfina fitou os olhos no rapaz, e este, surpreso com a pergunta, receoso pelo efeito de uma recusa e, mais que tudo sem saber o que havia de dizer, respondeu:

- Talvez... breve...

A moça palpitou de alegria.

É inútil dizer que o rapaz não referiu esta cena a Clara, mas referiu-a a Correia, que sorriu maliciosamente.

- Por que sorris? - perguntou-lhe Vicente.

- Porque me anunciaste o teu casamento.

- Não creio nisso.

- Vê-lo-ás.

- Respondi aquilo por não saber o que havia de dizer; mas afianço que não posso casar com a prima.

- Queres tu que eu me case?

- Importa-me pouco - respondeu Vicente.

- Dizes isso com um ar...

- Ora, um ar!

- Não és capaz de apresentar-me lá?

- Hoje mesmo.

- Está dito?

- Está dito.

Nessa noite, Correia foi apresentado em casa do capitão, que o recebeu com extrema cordialidade. Delfina não simpatizou nada com ele, e teve a franqueza de dizê-lo ao primo.

Sejamos exatos: Vicente estimou muito a antipatia da moça.

Entretanto, achou que era comprometê-lo, se o dissesse ao amigo. Este, porém, que tinha uma admirável penetração, logo no dia seguinte, disse a Vicente:

- Tua prima antipatizou comigo.

- Não creias nisso!

- É o que te digo.

Vicente admirou a sagacidade do amigo, e ao mesmo tempo deu-se por feliz ao ver que ele lhe dava aquela notícia com a mais perfeita indiferença.

Com efeito, Correia parecia importar-se tanto com a antipatia de Delfina, como se importaria com a primeira camisa de Carlos Magno, dado que não fosse amante de curiosidades históricas.

Era um caráter singular o amigo de Vicente; parecia não ter alma, nem sentimento de espécie alguma; e, entretanto, o sobrinho do capitão tirou dele provas de verdadeira dedicação. Há muita gente assim; capaz de sacrificar-se por outrem, fria e indiferentemente, sem nenhuma dessas expansões que são o verdadeiro toque das grandes almas. O sentimento de afeição não é um castelão encerrado numa torre antiga; a sua primeira necessidade é abrir asas por esse espaço fora, comunicar-se a todo o mundo, e como os pássaros da floresta segredar a todos os ecos as alegrias do seu canto.

Correia parecia estimar igualmente a Clara, por causa do afeto que a prendia a Vicente, e todavia nunca este viu da parte dele a menor demonstração de semelhante estima.

Um dia teve a franqueza de dizer-lho.

Correia sorriu e respondeu:

- Estimo a vocês ambos; mas não sei que por isso seja necessário nem de bom gosto andar abraçados a cada instante.

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