Conto

Nem Uma Nem Outra

1873

Nem uma nem outra *

Capítulo primeiro

Numa tarde do mês de março de 1860, entrava no Hotel Ravot um velho mineiro, que, nesse mesmo dia, chegava do Mar de Espanha. Trazia um camarada consigo e alojou-se num dos aposentos do hotel, tendo o cuidado de restaurar as forças com um excelentejantar.

O velho representava ter cinquenta anos, e eu peço perdão aos homens que têm essa idade sem todavia estarem velhos. O viajante de quem se trata, posto viesse de um clima conservador, estava todavia alquebrado. Via-se pela cara que não era homem inteligente, mas tinha nos traços severos do rosto os sinais positivos de uma grande vontade. Era alto, um pouco magro, tinha os cabelos todos brancos. No entanto, era alegre, e desde que chegara à Corte divertia-se muito com os espantos do criado que pela primeira vez saía da sua província para vir ao Rio de Janeiro.

Quando acabaram de jantar, amo e criado entraram a conversar amigavelmente e com aquela boa franqueza mineira tão apreciada pelos que conhecem a província. Depois de rememorarem os incidentes da viagem, depois de comentarem o pouco que o criado conhecia do Rio de Janeiro, entraram ambos no principal assunto que trouxe o amo ao Rio de Janeiro.

- Amanhã, José - disse o amo -, precisamos ver se descobrimos meu sobrinho. Não vou daqui sem levá-lo comigo.

- Ora, Sr. capitão - respondia o criado -, eu acho bem difícil encontrar seu sobrinho numa cidade tamanha. Só se ficarmos aqui um ano inteiro.

- Qual, um ano! Basta anunciar no Jornal do Commercio, e se não for bastante vou à polícia, mas hei de achá-lo. Tu lembras-te dele?

- Não me lembro nada. Vi-o só uma vez e há tanto tempo.

- Mas não o achas um bonito rapaz?

- Naquele tempo era...

- Há de estar melhor.

O capitão sorriu depois de pronunciar estas palavras; mas o criado não lhe viu o sorriso, nem lho perceberia, que é justamente o que acontece aos leitores.

A conversa parou nisto.

No dia seguinte, a primeira cousa em que o capitão Ferreira cuidou, logo depois do almoço, foi em levar um anúncio ao Jornal do Commercio, concebido nos seguintes termos:

Deseja-se saber onde mora o senhor Vicente Ferreira para negócio do seu interesse.

Apenas deixou o anúncio, descansou o nosso capitão e ficou a esperar uma resposta.

Mas, contra a expectativa, não apareceu resposta nenhuma no dia seguinte, e o capitão foi obrigado a repetir o anúncio.

A mesma cousa.

O capitão fez repetir o anúncio durante oito dias, sem adiantar um passo; mandou pô-lo em grandes tipos; mas continuava o mesmo silêncio. Convenceu-se por fim que o sobrinho não estava no Rio de Janeiro.

- Fizemos a viagem inutilmente - disse o capitão ao criado -; voltemos para Mar de Espanha.

O criado alegrou-se com a ideia de voltar; mas o velho estava triste.

Para distrair-se de sua tristeza, saiu o capitão a dar um passeio depois do almoço, e dirigiu-se para os lados do Passeio Público.

Justamente na rua do Passeio pareceu ver entrar em uma casa um sujeito que de longe lhe pareceu o sobrinho.

O velho apressou o passo e chegou à porta do corredor por onde entrara o vulto, mas não achou ninguém. Quem quer que era tinha já subido a escada.

Que fazer?

Lembrou-se de ficar na porta à espera; mas podendo ser que se houvesse enganado, a espera seria, sobre fastidiosa, inútil. O capitão lembrou-se de bater palmas.

Com efeito, subiu o primeiro lanço da escada e bateu palmas. Pouco depois veio abrir-lhe a cancela um moço representando ter vinte e cinco anos de idade, a quem o capitão, apenas o viu, gritou com toda a força dos seus pulmões:

- Vicente!

- Quem é?

O capitão subiu os degraus sem responder e chegou ao patamar gritando:

- Pois não me conheces, sobrinho ingrato?

Dizer isto e atirar-se-lhe aos braços foi a mesma cousa. O rapaz abraçou ternamente o tio, não sem um pouco de acanhamento em que o capitão não reparou.

- Entre cá para a sala, meu tio - disse Vicente.

Entraram na sala, e se os olhos do tio fossem mais indiscretos teriam visto que, justamente no momento em que ele entrava na sala, saiu por um corredor interior um vestido de mulher.

Mas o capitão Ferreira ia tão embebido no sobrinho e tão contente por tê-lo finalmente encontrado, que não reparou em cousa nenhuma.

- Ora, graças a Deus que te encontro! - disse ele sentando-se numa cadeira que lhe oferecia o rapaz.

- Quando chegou?

- Há dez dias. Não sabendo onde moravas, anunciei no Jornal do Commercio todos os dias, e sempre em vão. Não leste o anúncio?

- Meu tio, eu não leio jornais.

- Tu não lês jornais?

- Não, senhor.

- Homem, fazes bem; mas ao menos agora seria conveniente que houvesses lido; mas para isso era preciso que eu te avisasse, e eu não sabia da casa...

- Já vê... - disse Vicente sorrindo.

- Pois, senhor, acho-te bem disposto. Estás muito melhor do que a última vez que lá foste à fazenda; creio que há já cinco anos.

- Pouco mais ou menos.

- Tudo por lá ficou bom, mas com saudades de ti. Por que diabo não apareces?

- Meu tio, ando tão ocupado...

- Sim, creio que estás aprendendo a tocar piano - disse o capitão olhando para o instrumento que via na sala.

- Eu? - disse o rapaz -; não, não sou eu, é um amigo.

- Que mora contigo?

- Justo.

- Vocês moram bem; e estou capaz de vir para aqui uns dias antes de voltar para Minas.

O rapaz empalideceu, e por muito pouca perspicácia que tenha o leitor há de compreender que esta palidez está ligada à fuga do vestido de que lhe falei acima.

Não respondeu cousa alguma à proposta do tio, e este foi o próprio a romper a dificuldade, dizendo:

- Mas para quê? Demoro-me tão pouco tempo que não vale a pena; e além disso, pode o teu amigo não gostar...

- Ele é um pouco esquisito.

- Ora aí está! E eu sou muito esquisito, e portanto, não podemos fazer conciliação. O que eu quero, Vicente, é falar-te sobre um importantíssimo negócio, único que me traz ao Rio de Janeiro.

- Um negócio?

- Sim; mas agora não temos tempo; adiemos para outra ocasião. Apareces no Ravot hoje?

- Lá irei.

- Olha, vai jantar comigo, sim?

- Vou, meu tio.

- Anda daí.

- Agora não me é possível; tenho de esperar o meu companheiro; mas pode ir que eu lá estarei para jantar.

- Ora, bem, não me faltes.

- Não, senhor.

O capitão abraçou outra vez o sobrinho e saiu radiante de alegria.

Apenas o tio chegou à porta da rua, Vicente, que tinha voltado à sala e estava à janela, sentiu que lhe tocavam por trás.

Voltou-se.

Uma moça - a do vestido - estava por trás dele, e lhe perguntava sorrindo:

- Donde te veio este tio?

- De Minas; não contava agora com ele; tenho de lá ir jantar.

- Ora...

- Desculpa; é um tio.

- Vá - disse ela sorrindo -, faço o sacrifício ao tio. Mas, olha, vê se mo envias depressa para Minas.

- Descansa; o mais depressa que me for possível.

II

Vicente foi exato na promessa.

O capitão Ferreira, que já estava impaciente, apesar de não ser tarde, andava da sala para a janela, olhando para todos os lados, a ver se descobria sinais do sobrinho. Ora, o sobrinho entrou justamente numa ocasião em que ele estava na sala; um criado do hotel levou-o ao aposento do capitão, aonde Vicente entrou justamente na ocasião em que o capitão ia para a janela, de maneira que foi uma grande surpresa para o tio ver o sobrinho repimpado numa cadeira quando menos o esperava.

- Por onde diabo entraste tu?

- Pela porta.

- É singular; não te senti entrar. Ora, ainda bem que vieste; são horas de jantar, e é bom que jantemos antes, a fim de termos tempo para conversarmos a respeito do negócio de que te falei.

Vicente estava alegre e ruidoso como era do seu natural. A entrada inesperada do tio na casa da rua do Passeio é que o tinha tornado acanhado e hesitante; agora, porém, que já não tinha motivos para hesitações nem acanhamentos, deu o rapaz largas ao seu gênio folgazão.

A surpresa foi agradável para o capitão Ferreira, que não tinha a insuportável mania de querer moços velhos, e aceitava o gênio de todas as idades e de todos os temperamentos.

Acabado o jantar, o capitão foi com o sobrinho para o seu aposento e aí começou a conversa importante que o trouxera à Corte.

- Primeiramente - disse o velho -, deixa-me puxar-te as orelhas pela tua prolongada ausência lá de casa, onde ias ao menos uma vez por ano. Que diabo andas fazendo aqui?

- Meu tio, ando muito ocupado.

- Graves negócios, não?

- Não graves, porém, maçantes.

- Sim? Imagino. Estás empregado?

- Numa casa comercial, onde ganho alguma cousa, e isso junto com o pouquinho que me ficou de minha mãe...

- Eram uns vinte contos, não pode ser muito, talvez não seja nada.

- Isso está intacto.

- Confesso - disse o velho - que não te supunha tão econômico. Mas por que razão não arranjaste uma licença para ires ver-me à fazenda?

- No comércio é difícil.

- Pois mandava-se o emprego ao diabo; lá em casa há um canto para um parente.

Vicente não respondeu; o velho continuou:

- E é justamente para isto que eu vim falar-te.

- Ah! - disse Vicente arregalando os olhos.

- Aposto que recusas?

- Recusar? Mas...

- Estás com pouca vontade, e eu no teu caso faria o mesmo; mas não se trata só de abandonar a Corte para ires encafuar-te numa fazenda. Para um rapaz a mudança há de ser difícil. A carne é dura de roer, mas eu trago-te o molho.

Dizendo isto, o capitão fitava os olhos no rapaz cuidando ver neles uma curiosidade misturada de alegria. Viu a curiosidade, mas não viu a alegria. Não se perturbou, e continuou:

- Teu pai, que era meu irmão, incumbiu-me de velar por ti, e fazer-te feliz. Até aqui tenho cumprido o que prometi, porque, sendo mais feliz na Corte, não te forcei a ir viver comigo na fazenda; e quando quiseste ter um emprego, esse que tens agora, hás de lembrar-te que alguém to ofereceu.

- É verdade.

- Pois bem, foi por iniciativa minha.

- Ah! Foi meu tio?

- Pois então? - disse o velho, batendo-lhe na perna a rir -. Cuidavas que eu ignorava o teu emprego? Se eu mesmo to dei; e mais, tenho indagado do teu comportamento na casa, e sei que é exemplar. Já por três vezes mandei dizer ao teu patrão que te desse licença por algum tempo, e ele mesmo, segundo me consta, falou-te nisso, mas tu recusaste.

- É verdade, meu tio - respondeu Vicente -; e eu não sei como lhe agradeça...

- O haveres recusado visitar-me?

- Confesso que...

- Compreendo o motivo; os prazeres da Corte - as delícias de Cápua, como diz o vigário Tosta - eis a causa.

Vicente caía das nuvens com todas estas notícias que lhe dava o capitão, ao passo que o capitão ia desenrolando-as sem intenção de afrontar nem censurar o rapaz... O capitão era um bom velho; compreendia a mocidade, e desculpava-lhe tudo.

- Ora bem - continuou ele -, quem fez tanto por ti entende que é chegado o momento de fazer-te feliz de outra maneira.

- Qual maneira? - perguntou Vicente curioso e ao mesmo tempo assustado com o gênero de felicidade que lhe anunciava o tio.

- De uma maneira tão velha como Adão e Eva, o casamento.

Vicente empalideceu; esperava tudo, menos o casamento. E que casamento seria? O velho não disse mais nada; Vicente gastou alguns minutos em formular uma resposta, que seria ao mesmo tempo une fin de non recevoir.

- Que achas? - respondeu finalmente o velho.

- Acho - respondeu resolutamente o rapaz - que meu tio é em extremo bondoso comigo em me propor o casamento para minha felicidade. Com efeito, parece que o casamento é o remate natural da vida, e por isso aceito com braços abertos a sua ideia.

O velho sorria de contentamento, e ia já abraçá-lo quando o sobrinho acabou o discurso.

- Mas - acrescenta Vicente -, a dificuldade está na esposa, e eu por enquanto não amo a ninguém.

- Não amas a ninguém? - disse o velho deitando-se -; mas então cuidas que eu vinha à Corte só para te propor um casamento? Trago duas propostas - a do casamento e a da mulher. Não amas a mulher? Hás de vir a amá-la porque ela já te ama.

Vicente estremeceu; a questão agora tornava-se mais complicada. Ao mesmo tempo a ideia de ser amado sem que ele soubesse nem tivesse feito nenhum esforço era uma cousa que lhe sorria à vaidade. Entre estes dois sentimentos contrários, o rapaz achou-se embaraçado para dar uma resposta qualquer.

- A mulher que te destino e que te ama é minha filha Delfina.

- Ah! A prima? Mas ela é criança...

- Era há cinco anos; agora está com dezessete anos e creio que a idade é própria para um consórcio. Aceitas, não?

- Meu tio - respondeu Vicente -, eu aceitaria com muito prazer a sua ideia; mas, posto que eu reconheça toda a vantagem desta união, contudo, não quero fazer uma moça infeliz, e é o que pode acontecer se eu não amar minha mulher.

- Dar-lhe-ás pancadas?

- Oh! Perdão! - disse Vicente, não sem esconder um sentimento de indignação que lhe provocava a pergunta do velho -. Mas, não amando a uma pessoa que me ama, é fazê-la infeliz.

- Histórias da vida! - disse o velho levantando-se e passeando pela sala -; isto de amor em casamento é uma burla; basta que se estimem e se respeitem; é o que eu exijo e nada mais. Vê lá; em troca disso, dou-te a minha fortuna toda; bem sei que isto é o menos para ti; mas ter mulher bonita (porque Delfina é uma jóia), meiga, dócil é uma fortuna que só um pateta pode recusar...

- Eu não digo que...

- Um pateta, ou um estouvado, como tu; um estouvado que abandonou a casa de comércio em que se achava por um capricho, uma simples desinteligência com o dono da casa... Olhas espantado para mim? É verdade, meu rico; soube de tudo isso; e é essa a razão de não saber de ti quando aqui cheguei. Creio ao menos que estarás empregado?

- Estou - balbuciou o moço.

O capitão estava já zangado com as recusas do sobrinho, e não se pôde conter; disse-lhe o que sabia. Vicente, que o cuidava iludido acerca da saída da casa em que estivera, recebeu a notícia como uma bala de 150.

O velho continuou a passear silencioso; Vicente deixou-se estar assentado sem dizer palavra.

No fim de alguns minutos, voltou o capitão à sua cadeira e acrescentou:

- Não me sejas palerma; atende que eu venho fazer a tua felicidade. Tua prima suspira por ti. Só o soube quando o filho do coronel Vieira foi lá pedi-la em casamento. Disse-me ela então que só se casaria contigo; e eu, que a estremeço, quero fazer-lhe a vontade. Vamos; não posso esperar; decide-te.

- Meu tio - disse Vicente depois de alguns instantes -, não posso dar-lhe uma resposta definitiva; mas afirmo que o que eu puder fazer estará feito.

- Boa confiança devo eu ter nas tuas palavras!

- Por quê?

- Queres saber por quê? É porque eu suponho que andarás por aí perdido, que sei eu? Como se perdem os rapazes de hoje.

- Oh! Quanto a isso, juro...

- Não quero juramentos, quero uma resposta.

O capitão Ferreira era um homem de vontade; não admitia recusas, nem sabia propor cousas daquelas, quando lhe não assistia direito legal. Vicente até então vivera independente do tio; era natural que nunca contasse com a fortuna dele. Querer impor-lhe o casamento por aquele modo era arriscar a negociação, afrontando o orgulho do moço. O velho não reparava nisso, ficou muito admirado quando o sobrinho respondeu secamente às últimas palavras dele:

- Pois bem, a minha resposta é simples; não me caso.

Seguiu-se a estas palavras um profundo silêncio; o velho ficou fulminado.

- Não te casas? - perguntou ele no fim de longos minutos.

O rapaz fez um sinal negativo.

- Reparaste bem na resposta que me deste?

- Reparei.

- Adeus.

E dizendo isto, o velho levantou-se e dirigiu-se para o quarto sem lhe dirigir um olhar sequer.

Vicente compreendeu que estava despedido e saiu.

Quando chegou a casa, achou a moça que já tivemos ocasião de ver no primeiro capítulo, a qual o recebeu com um abraço que era ao mesmo tempo um ponto de interrogação.

- Briguei com meu tio - disse o moço sentando-se.

- Ah!

- Adivinha o que ele queria?

- Mandar-te para fora daqui?

- Casar-me com a filha dele e fazer-me seu herdeiro.

- Recusaste?

- Recusei.

A moça ajoelhou-se diante de Vicente e beijou-lhe as mãos.

- Que é isto, Clara?

- Obrigada! - murmurou ela.

Vicente levantou-a e beijou-lhe por sua vez as mãos.

- Tolinha! Pois há nisto motivo para me agradeceres? E chorando! Clara, deixa-te de lágrimas! Eu não gosto de ver uma moça chorona... Vamos! Ri-te.

Clara sentou-se calada; via-se-lhe a alegria no rosto, mas uma alegria misturada de tristeza.

- Quem sabe? - disse ela no fim de algum tempo -. Quem sabe se fizeste bem recusando?

- Essa agora!

- Recusaste por minha causa, e eu...

- Já vejo que fiz mal em falar-te nisto. Ora, vamos... nada de tolices; anda passear.

Vicente Ferreira, desde que lhe morrera a mãe, deixara o interior da província de São Paulo, aonde vivera, e estabeleceu-se na Corte com o pouco que herdara; algum tempo empregou-se, e já sabemos que por influência do tio, que deveras o estimava. Era um rapaz um tanto orgulhoso, e imaginava que viver com o tio era mostrar-se adulador da fortuna dele, ideia esta de que fugia sempre. Quando estava em São Paulo visitara muitas vezes o tio; mas depois que viera para a Corte nunca mais o fez. Além dos sentimentos que já apontamos acima, não queria deixar a casa ainda que com licença do patrão, que aliás era o primeiro a oferecer-lha; e finalmente a Clara da rua do Passeio tinha grande parte na decisão do rapaz.

Por que essa influência e como começara ela?

Apressemo-nos a tirar do espírito do leitor uma ideia que porventura já lhe tenha surgido, e vem a ser a de que a nossa Clara é uma Margarida Gauthier lavando-se nas águas do amor das culpas passadas.

Clara tinha sido raptada de casa de seus pais por um amigo de Vicente, ou pelo menos sujeito que andava com ele - e abandonada no fim de um mês pelo tratante, que embarcou para Buenos Aires.

A moça achou-se só um dia de manhã, sem arrimo nenhum, nem esperança dele. A primeira ideia que teve foi matar-se; nessa resolução entrou por muito o amor que ainda tinha pelo rapaz. Mas o medo, a educação religiosa que lhe haviam dado depressa lhe arredaram do espírito semelhante ideia.

No meio da sua aflição lembrou-se de Vicente, que lá fora à casa dela uma vez em companhia do fugitivo Enéas. Mandou-o chamar e contou-lhe a sua situação. Vicente ainda não sabia da fuga do amigo, e ficou admirado que ele houvesse cometido semelhante ato de covardia. Mas, sabendo que pelo lado da justiça o raptor nada temia, admirou-se da fuga sem outro motivo aparente além da questão do rapto, motivo que não era motivo, porque um homem que furta uma moça tem sempre ânimo para conservá-la durante algum tempo, até que possa a fuga completar a obra do rapto: a audácia coroada pela covardia.

Ora, esse tempo nunca é simplesmente um mês.

Outra causa devia haver, e Vicente tratou de indagar nesse mesmo dia sem nada obter; no dia seguinte, porém, a gazetilha do Jornal do Commercio tirou todas as dúvidas: noticiava a fuga do homem com alguns contos de réis.

Para acabar já com a história deste sujeito, acrescentarei que, depois de longos trabalhos do mesmo gênero, em Buenos Aires, fugiu ele para o Chile, onde consta que é atualmente empregado em umas obras das estradas.

A moça contou a Vicente qual era a sua posição, e pediu-lhe por esmola o seu auxílio.

Vicente tinha bom coração; achou que naquele estado não devia fazer à moça um discurso inútil sobre o seu ato; cumpria-lhe socorrê-la. Tirou, portanto, um conto de réis do pecúlio que tinha e deu a Clara os primeiros auxílios necessários; alugou-lhe casa e uma criada; preparou-lhe uma mobília e despediu-se.

Clara recebeu agradecida e envergonhada os auxílios de Vicente; mas ao mesmo tempo não via nos atos do rapaz mais do que um sentimento de interesse.

No fim de quinze dias, Vicente foi à casa de Clara e disse-lhe que, não podendo adiantar-lhe tudo quanto ela precisasse e não devendo ela ficar exposta aos perigos da sua situação, era conveniente que procurasse trabalhar, e para isso escolhesse o que mais lhe conviesse.

Clara achou justas as observações de Vicente, e ficou assentado que a moça trabalharia de costureira em casa de alguma modista.

Daí a dias estava a moça empregada.

Entretanto, Vicente não voltou lá mais; de quando em quando recebia um recado de Clara, mas era sempre em assunto que lhe dispensava uma visita pessoal.

O procedimento do moço não deixou de influir na rapariga, que já se arrependia do seu primeiro juízo.

Um dia adoeceu Vicente, e Clara, apenas o soube, obteve licença da modista e foi tratar do enfermo com a dedicação e zelo de uma irmã. A doença de Vicente durou dez ou doze dias; durante esse tempo não se desmentiu a solicitude da moça.

- Obrigado - disse Vicente à rapariga, quando se levantou da cama.

- Por quê? Sou eu quem lhe deve.

- Já pagou de sobra.

- Oh! Nunca! - disse Clara -. O senhor livrou-me a vida, é verdade; mas não fez só isto, livrou-me de entrar numa carreira fatal... e mais...

- E mais nada - disse Vicente.

A moça voltou o rosto e enxugou uma lágrima.

- Por que chora? - perguntou Vicente.

Clara não respondeu, mas levantou os olhos para ele rasos d`água, e parece que nesse momento deviam eles ter uma expressão muito eloquente, porque o rapaz sorriu dizendo estas palavras:

- Ama-me, não?

A moça beijou-lhe a mão.

No dia seguinte Clara despedia-se da modista, e os dous ficaram morando na casa da rua do Passeio, onde já os vimos.

Pede a verdade que se diga que Vicente não amou desde logo a rapariga; mas o amor veio lentamente como um vento fresco da noite que começa mais débil que o hálito de um infante e acaba em forte viração.

Clara era bonita e tinha um excelente coração; o caráter de Vicente estava de perfeito acordo com o dela; ambos punham a felicidade na tranquilidade interior, na mútua afeição, no trabalho e na mediania. Tinham achado tudo isso; por que abandoná-lo?

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