Conto

Não É O Mel Para A Boca do Asno

1868

Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias, em janeiro de 1868, assinado por Victor de Paula. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

O título do conto é um velho provérbio da tradição ocidental, havendo dele versões em várias línguas. O sentido é que não devemos nos dar o trabalho de servir algo a uma pessoa que não saberá apreciá-lo. Este provérbio é semelhante a “Não se deve dar pérolas a porcos”.

VIII

É inútil dizer que Meneses fizera em Hortênsia, depois da volta desta à casa, a mesma impressão que antes.

A moça compreendeu que era amada por ele, em silêncio, respeitosa, resignada, desesperançadamente...

Compreendeu mais.

Meneses ia poucas vezes à casa de Azevedo; não era como antes, que lá ia todas as noites.

A moça compreendeu a delicadeza de Meneses; viu que era amada, mas que, diante da sua dor, o rapaz procurava esconder o mais que pudesse a sua pessoa.

Hortênsia, que era capaz de delicadeza igual, apreciou aquela no seu justo valor.

Que havia de mais natural que uma aproximação de duas almas tão nobres, tão capazes de sacrifícios, tão feitas para se compreenderem?

Uma noite Hortênsia disse a Meneses que as suas visitas eram raras, que ele não ia lá como antes, o que entristecia a família.

Meneses desculpou-se; disse que os seus trabalhos eram muitos.

Mas as visitas tornaram-se menos raras.

O advogado chegou a conceber a esperança de que ainda podia ser feliz, e procurou abraçar o fantasma da sua imaginação.

"Contudo", pensou ele, "é cedo demais para que ela o esqueça."

Tê-lo-á esquecido?

Nem de propósito sucedeu que nessa mesma noite em que Meneses fazia esta reflexão, uma das pessoas que frequentavam a casa de Azevedo soltou imprudentemente o nome de Marques.

Hortênsia empalideceu; Meneses olhou para ela; viu-lhe os olhos úmidos.

- Ainda o ama - disse ele.

Nessa noite Meneses não dormiu. Vira desfeita, num instante, a esperança que chegara a manter no seu espírito. Era inútil a luta.

Não escapou à moça a impressão que causara em Meneses a sua tristeza ao ouvir falar em Marques; e, vendo que ele outra vez rareava as suas visitas, compreendeu que o moço estava disposto a sacrificar-se.

O que ela já sentia por ele era estima e simpatia; nada disso, nem isso tudo forma o amor. Mas Hortênsia tinha um coração delicado e uma inteligência esclarecida; compreendia Meneses; podia vir a amá-lo.

Com efeito, à proporção que os dias se passavam, sentia ela que um novo sentimento a impelia para Meneses. Os olhos começaram a falar, as ausências já lhe eram dolorosas; estava no caminho do amor.

Uma noite achavam-se os dous na sala, um pouco isolados dos mais, e com os olhos fixos um no outro, esqueciam-se de si.

Caiu o lenço da moça; ela ia apanhá-lo, Meneses apressou-se também; os dedos de ambos encontraram-se, e como se fossem duas pilhas elétricas, aquele contato fê-los estremecer.

Não disseram nada; mas tinham-se entendido.

Na seguinte noite Meneses declarou a Hortênsia que a amava, e perguntou-lhe se queria ser sua mulher.

A moça respondeu afirmativamente.

- Há muito tempo - disse ele - que eu a trago no meu coração; tenho-a amado em silêncio, como entendo que se devem adorar as santas...

- Sei - murmurou ela.

E acrescentou:

- O que eu lhe peço é que me faça feliz.

- Juro-lhe!

No dia seguinte Meneses pediu a mão de Hortênsia, e um mês depois eram casados, indo gozar a lua de mel em Petrópolis.

Dous meses depois do casamento desembarcava do rio da Prata o jovem Marques, sem a Sofia, que lá ficara depenando os outros Marques de lá.

IX

O velho Azevedo agradeceu ao céu o ter achado um genro como ele sonhara, um genro que fosse homem de bem, inteligente, esclarecido e amado por Hortênsia.

- Agora - dizia ele no dia do casamento - só me resta concluir o meu tempo de serviço público, pedir a minha aposentadoria, e ir passar com vocês o resto da minha vida. Digo que só espero isto, porque Luisinha, é natural que se case breve.

Marques, apenas chegou à Corte, lembrou-se de ir à casa de Azevedo; não o fez por achar-se fatigado.

Tendo rematado o romance da mulher que o levou ao rio da Prata, o jovem fluminense, em cujo espírito sucediam-se os projetos com espantosa facilidade, lembrou-se de que deixara em meio um casamento, e voltou-se logo para essas primeiras ideias.

Entretanto, como a antiga casa de Meneses era no centro da cidade, e ficava-lhe portanto mais perto, Marques resolveu ir lá.

Encontrou um moleque que lhe respondeu simplesmente:

- Nhonhô está em Petrópolis.

- Fazendo o quê?

- Não sei, não senhor.

Eram quatro horas da tarde. Marques foi jantar projetando ir à noite à casa de Azevedo.

No hotel encontrou um amigo que, depois de abraçá-lo, despejou um alforje de notícias.

Entre elas veio a do casamento de Meneses.

- Ah! Casou-se o Meneses? - disse Marques espantado -. Com quem?

- Com uma filha do Azevedo.

- A Luísa?

- A Hortênsia.

- A Hortênsia!

- É verdade; há dous meses. Estão em Petrópolis.

Marques enfiou.

Realmente ele não amava a filha de Azevedo; e o direito que poderia ter à mão dela, tinha-o destruído com a viagem misteriosa ao rio da Prata e a carta que dirigira a Meneses; tudo isto era assim; porém Marques era essencialmente vaidoso, e aquele casamento feito em sua ausência, quando ele pensava vir achar Hortênsia lavada em lágrimas e semiviúva, feriu-lhe profundamente o amor-próprio.

Por felicidade do estômago dele só a vaidade estava ofendida, de modo que a natureza animal readquiriu logo a sua supremacia à vista de uma sopa de ervilhas e de uma mayonnaise de peixe, fabricadas por mão de mestre.

Marques comeu como um homem que vem de bordo, onde não enjoou, e depois de comer tratou de ir fazer algumas visitas mais íntimas.

Deveria, porém, ir à casa de Azevedo? Como deveria falar ali? Que teria havido em sua ausência?

Estas e outras perguntas surgiam do espírito de Marques, que não sabia como decidir-se. Entretanto o moço refletiu que não lhe convinha mostrar-se sabedor de nada, a fim de adquirir o direito de censura, e que em todo caso era conveniente ir à casa de Azevedo.

Chamou um tilbury e foi.

Mas aí a resposta que teve foi:

- O senhor não recebe ninguém.

Marques voltou sem saber até que ponto aquela resposta era ou deixava de ser um insulto para ele.

"Em todo caso", pensou, "o melhor é não voltar lá; além de quê, eu venho de fora, tenho o direito à visita."

Mas os dias passaram-se sem que lhe aparecesse ninguém.

Marques magoava-se com isso; mas o que sobretudo lhe doía mais era ver que a mulher se lhe escapara das mãos, e tanto mais se enraivecia quanto que a cousa era toda por culpa dele.

"Mas que papel faz Meneses em tudo isto?" dizia ele consigo. "Sabendo do meu projetado casamento foi traição aceitá-la por esposa."

De pergunta em pergunta, de consideração em consideração, Marques chegou a conceber um plano de vingança contra Meneses, e com satisfação igual à de um general que tem meditado um ataque enérgico e seguro, o jovem dandy esperou tranquilamente a volta do casal Meneses.

X

O casal voltou com efeito daí a alguns dias.

Hortênsia vinha bela como nunca; tinha na fronte o esplendor da esposa; a esposa tinha completado a donzela.

Meneses era um homem feliz. Amava e era amado. Estava no começo da vida, e ia fundar uma família. Sentia-se cheio de força e disposto a ser completamente feliz.

Poucos dias depois de chegarem à Corte, Marques apareceu repentinamente no escritório de Meneses.

O primeiro encontro compreende-se que devia ser um tanto estranho. Meneses, que estava na plena consciência dos seus atos, recebeu Marques com um sorriso. Este procurou afetar uma alegria desmedida.

- Cheguei, meu caro Meneses, há quinze dias; e tive ímpetos de ir a Petrópolis; mas não pude. É inútil dizer que ia a Petrópolis para dar-te os meus sinceros parabéns.

- Senta-te - disse Meneses.

- Estás casado - disse Marques sentando-se -, e casado com a minha noiva. Se eu fosse outro zangar-me-ia; mas, graças a Deus, tenho algum juízo. Acho que fizeste muito bem.

- Creio que sim - respondeu Meneses.

- Bem pesadas as cousas eu não amava a minha noiva como convinha que ela fosse amada. Não poderia fazê-la feliz, nem o seria eu próprio. Contigo é outra cousa.

- Então recebes assim alegremente...

- Pois então! Não há entre nós uma rivalidade; nenhuma competência nos separou. Foi apenas um episódio na minha vida que eu estimo ver que tivesse este desenlace. Em suma, tu vales mais do que eu; és mais digno dela...

- Fizeste boa viagem? - atalhou Meneses.

- Magnífica.

E Marques entrou na exposição minuciosa da viagem, até que um abençoado procurador de causas veio interrompê-lo.

Meneses apertou a mão ao amigo, oferecendo-lhe a casa.

- Lá irei, lá irei, mas peço que convenças a tua mulher de que não me há de receber acanhadamente. O que passou, passou; eu é que não valho nada.

- Adeus!

- Adeus!

XI

Não tardou muito que Marques fosse à casa de Meneses, onde Hortênsia lhe preparava uma recepção fria.

Contudo uma cousa era planear, outra era executar.

Depois de ter amado tão ardentemente o rapaz, a moça não podia deixar de sentir um primeiro abalo.

Sentiu, mas dominou-se.

Pela sua parte, o preterido moço, que realmente nada sentia, pôde representar tranquilamente o seu papel.

O que ele queria (por que não dizê-lo?) era reconquistar no coração da moça o terreno perdido.

Mas como?

Apenas chegado de fora do país, vendo a sua noiva casada com outro, Marques não recebe impressão alguma, e longe de fugir àquela mulher que lhe lembrava uma felicidade perdida, entra friamente por aquela casa que não é dele, e fala tranquilamente à noiva que já lhe não pertence.

Tais eram as reflexões de Hortênsia.

Entretanto, Marques persistia no seu plano, e empregava na execução dele uma habilidade que ninguém lhe supunha.

Um dia em que se achou só com Hortênsia, ou antes em que lá foi à casa dela na certeza que Meneses estava fora, Marques dirigiu a conversa para os tempos dos antigos amores.

Hortênsia não o acompanhou nesse terreno; mas ele insistiu, e como ela lhe declarasse que tudo aquilo estava morto, Marques prorrompeu nestas palavras:

- Morto! Para a senhora, é possível; mas não para mim; para mim que nunca a esqueci, e se por uma fatalidade, que eu ainda hoje não posso revelar, fui obrigado a partir para fora, nem por isso a esqueci. Cuidei que houvesse feito o mesmo, e desembarquei com a doce esperança de ser seu esposo. Por que motivo não esperou por mim?

Hortênsia não respondeu; não fez o menor gesto, não disse uma palavra.

Levantou-se daí a alguns segundos, e encaminhou-se altivamente para a porta do interior.

Marques ficou na sala até que apareceu um moleque dizendo-lhe que tinha ordem de fazê-lo retirar.

A humilhação era grande. Nunca houve mais triste Sadowa nas guerras de el-rei Cupido.

- Fui um asno! - disse Marques no outro dia quando a cena lhe voltou à lembrança -. Eu devia esperar dous anos.

Quanto a Hortênsia, logo depois da saída de Marques entrou no quarto, e verteu duas lágrimas, duas apenas, as últimas que lhe restavam para chorar aquele amor tão grande e tão mal posto.

As primeiras lágrimas foram-lhe arrancadas pela dor; estas duas exprimiam a vergonha.

Hortênsia já se envergonhava de ter amado aquele homem.

De todas as derrotas do amor, esta é decerto a pior. O ódio é cruel, mas a vergonha é aviltante.

Quando Meneses voltou para casa achou Hortênsia alegre e ansiosa por vê-lo; sem nada contar-lhe, Hortênsia disse-lhe que tinha necessidade de apertá-lo ao seio, e que mais uma vez agradecia a Deus a circunstância que os levou ao casamento.

Estas palavras, e a ausência de Marques durante oito dias, fez compreender ao feliz marido que alguma cousa houvera.

Mas nada perguntou.

Naquele casal aliava-se tudo o que é nobre: o amor e a confiança. É este o segredo dos casamentos felizes.

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