Conto

Não É O Mel Para A Boca do Asno

1868

Não é o mel para a boca do asno *

Capítulo primeiro

Era um dia de procissão de Corpus Christi, que a igreja do Sacramento preparara com certo luxo.

A rua do Sacramento, a do Hospício, o largo do Rossio estavam mais ou menos cheios de povo que aguardava o préstito religioso.

Na janela de uma casa do Rossio, atulhada de gente como todas as janelas daquela rua, havia três moças, duas das quais pareciam irmãs, não só pela semelhança das feições, mas ainda pela identidade dos vestidos.

A diferença é que uma era morena, e possuía belíssimos cabelos negros, ao passo que a outra tinha a tez clara e os cabelos castanhos.

Essa era a diferença que se podia enxergar cá debaixo, porque se as examinássemos de perto veríamos no rosto de cada uma delas os traços distintivos que separavam aquelas duas almas.

Para sabermos os seus nomes não é preciso subir à casa; basta aproximarmo-nos de dous rapazes que da esquina da rua do Conde olham para a casa, que ficava do lado da rua do Espírito Santo.

- Vês? - diz um deles ao outro levantando um pouco a bengala na direção da casa.

- Vejo; são as Azevedos. Quem é a outra?

- É uma prima delas.

- Não é feia.

- Mas é uma cabeça de vento. Queres ir lá?

- Não; vou passear.

- Passear, Meneses! Não sou tão tolo que o acredite.

- Por quê?

- Porque eu sei onde vais.

Meneses sorriu, e olhou para o interlocutor perguntando:

- É uma novidade que eu tinha vontade de saber.

- Vais para casa da tua Vênus.

- Não conheço!

- Nem eu; mas é natural...

- Ah! É natural! Adeus, Marques.

- Adeus, Meneses.

E os dous rapazes separaram-se; Marques dirigiu-se para a casa onde estavam as três moças, e Meneses seguiu caminho pelo lado da Petalógica.

Se Marques olhasse para trás, veria que Meneses, apenas chegou à esquina da rua dos Ciganos, parou de novo e lançou um último olhar para a janela em questão; no fim de alguns segundos seguiu viagem.

Marques subiu pela escada acima. As raparigas, que o tinham visto entrar, foram recebê-lo alegremente.

- Não era o Dr. Meneses quem estava com o senhor? - perguntou uma das Azevedos.

- Era - respondeu Marques -; convidei-o a subir, mas ele não quis... Talvez fizesse mal - continuou Marques -, a casa não é minha, não acha, D. Margarida?

Dona Margarida era uma senhora que estava assentada na sala; era a dona da casa, tia das Azevedos, e mãe da terceira moça, que, com estas, estava à janela.

- Ora, ande lá - disse D. Margarida -, faça agora cerimônias comigo. Bem sabe que esta casa é sua e dos seus amigos. A procissão já saiu?

- Para lhe falar a verdade, não sei; eu venho do lado do Campo.

- Passou lá por casa? - perguntou uma das Azevedos, a morena.

- Passei, D. Luisinha; estava fechada.

- É natural; papai anda passeando e nós estamos aqui.

Marques sentou-se; Luisinha foi para o piano, com a prima, e começou a tocar não sei que variações sobre motivos da Martha.

Quanto à irmã de Luisinha, essa foi encostar-se à janela, em posição tal que os seus dous belos olhos castanhos observavam quanto se passava na sala; o corpo estava meio voltado para a rua, mas a cabeça estava meio voltada para dentro.

Quando digo que ela observava quanto se passava na sala, uso de uma expressão mal cabida, porque os olhos da moça fitavam-se nos de Marques, que achava meio de atender à conversa de D. Margarida e às olhadelas da jovem Hortênsia.

Era nem mais nem menos um namoro.

Hortênsia merecia bem que um rapaz se apaixonasse por ela. Não era alta, mas era esbelta, e sobretudo vestia com elegância suprema. Tinha duas cousas admiráveis: os olhos, que eram rasgados e profundos, e as mãos, que pareciam ter sido cortadas a alguma obra-prima da estatuária.

Comparado com ela, e atendendo-se apenas ao exterior, Marques era uma bela escolha para o coração de Hortênsia. Era bonito, mas a sua beleza não era nem efeminada, nem máscula; apenas um meio-termo; tinha cousas de uma e cousas de outra: uma fronte de deus Marte e um olhar de Ganimedes.

Era um amor já esboçado que havia entre aquelas duas criaturas. Marques, se compreendesse Hortênsia, como aquele olhar estava pedindo, seria um homem feliz. Compreendia?

II

Imaginamos que a leitora já está curiosa por saber o que queriam dizer os repetidos olhares de Meneses atravessando a praça da Constituição, olhares que não estão de acordo com a recusa de não ir ver as moças.

Para satisfazer a curiosidade da leitora, convidamo-la a entrar conosco em casa de Pascoal Azevedo, pai de Luísa e Hortênsia, dous dias depois da cena que narramos no capítulo anterior.

Pascoal Azevedo era chefe de seção em uma secretaria de Estado, e com esse ordenado e mais os juros de algumas apólices sustentava a família, que se compunha de uma irmã velha e das duas filhas.

Era um homem folgazão, amigo da convivência, mas modesto no trato e na linguagem. Não dava banquetes nem bailes; mas gostava que a sala e a sua mesa, despretensiosas ambas, estivessem sempre ornadas de alguns amigos.

Entre as pessoas que lá iam notava-se Meneses e Marques.

Marques logo no fim de dous meses conseguiu fazer-se objeto de um amor grande e sincero. Hortênsia queria doudamente ao rapaz. Pede a fidelidade histórica que se mencione uma circunstância, e vem a ser que Marques já era amado antes que amasse.

Uma noite reparou ele que era objeto da preferência de Hortênsia, e desta circunstância, que lhe lisonjeou o amor-próprio, começou-lhe o amor.

Marques era, então, e continuou a ser, amigo de Meneses, com quem não tinha segredos, um pouco por confiança, um pouco por estouvamento.

Uma noite, pois, ao saírem de casa de Azevedo, Marques disparou estas palavras à cara de Meneses:

- Sabes de uma cousa?

- O que é?

- Estou apaixonado pela Hortênsia.

- Ah!

- É verdade.

- E ela?

- Igualmente; morre por mim. Sabes que eu conheço as mulheres, e não me engano. Que dizes?

- Que hei de dizer? Digo que fazes bem.

- Tenho até ideias sérias; quero casar-me.

- Já!

- Pois então! Eu sou homem de resoluções rápidas; nada de esfriar. Somente, não quero dar um passo destes sem que um amigo, como tu, o aprove.

- Oh! Eu - disse Meneses.

- Aprovas, não?

- Decerto.

Nisto ficou a conversa entre os dous amigos.

Marques foi para casa na firme intenção de envergar a casaca no outro dia, e ir pedir a moça em casamento.

Mas como no intervalo meteu-se o sono, Marques acordou com a ideia de adiar o pedido até alguns dias depois.

- Por que motivo precipitarei um ato destes? Reflitamos.

E entre esse dia e o dia em que o vimos entrar na casa do Rossio, havia o espaço de um mês.

Dous dias depois, amiga leitora, encontramos os dous amigos em casa de Azevedo.

Meneses é de um natural taciturno. Enquanto todos conversam animadamente, ele apenas solta de quando em quando um monossílabo, ou responde com um sorriso a qualquer dito chistoso. A prima das Azevedos chamava-o tolo; Luisinha apenas lhe supunha desmedido orgulho; Hortênsia, mais inteligente que as duas e menos estouvada, dizia que ele era um espírito severo.

Esquecia-nos dizer que Meneses tivera algum tempo o sestro de escrever versos para os jornais, o que lhe arredou a estima de alguns homens sérios.

Na noite em questão, acontecia uma vez achar-se Meneses com Hortênsia à janela, enquanto Marques conversava, com o velho Azevedo, sobre não sei que assunto do dia.

Meneses já estava à janela, com as costas para a rua, quando Hortênsia chegou-se a ele.

- Não tem medo do sereno? - disse-lhe ela.

- Não tenho - disse Meneses.

- Olhe; sempre o conheci taciturno; mas agora reparo que é mais do que costumava a ser. Algum motivo há. Há quem suponha que a mana Luisinha...

Este simples gracejo de Hortênsia, feito sem a menor intenção oculta, fez com que Meneses franzisse levemente as sobrancelhas. Houve entre os dous um momento de silêncio.

- Será? - perguntou Hortênsia.

- Não é - respondeu Meneses -. Mas quem é que supõe isso?

- Quem? Imagine que sou eu...

- Mas por que supôs?...

- Por nada... supus. Bem sabe que entre moças, quando um rapaz está calado e triste, é que está apaixonado.

- Sou exceção da regra, e não sou eu só.

- Por quê?

- Porque eu conheço outros que estão apaixonados e andam alegres.

Desta vez foi Hortênsia quem franziu as sobrancelhas.

- É que para isto de amores, D. Hortênsia - continuou Meneses -, não há regra estabelecida. Depende dos temperamentos, do grau de paixão, e mais que tudo da aceitação ou da recusa de um amor.

- Então, confessa quê?... - disse Hortênsia vivamente.

- Eu não confesso nada - respondeu Meneses.

Serviu-se neste momento o chá.

Quando Hortênsia, saindo da janela, atravessava a sala, olhou maquinalmente para um espelho que ficava em frente a Meneses, e viu o longo, o profundo, o doloroso olhar que este prendera nela, vendo-a afastar-se.

Insensivelmente olhou para trás.

Meneses mal teve tempo de voltar para o lado da rua.

Mas a verdade estava descoberta.

Hortênsia tinha convicção de duas cousas:

Primeiramente, que Meneses amava.

Depois, que o objeto do amor do rapaz era ela.

Hortênsia tinha um coração excelente. Apenas conheceu que era amada por Meneses, arrependeu-se das palavras que dissera, aparentemente palavras de remoque.

Quis reparar o mal redobrando de atenções com o moço; mas de que valiam elas, quando Meneses surpreendia de quando em quando os belos olhos de Hortênsia pousarem um amoroso olhar em Marques, que andava e falava radiante e ruidoso, como um homem que não tem uma só cousa que exprobrar à fortuna?

III

Uma noite Marques anunciou em casa de Azevedo que Meneses estava doente, e por isso não ia lá.

O velho Azevedo e Hortênsia sentiram a doença do moço. Luisinha recebeu a notícia com indiferença.

Indagaram da doença; mas o próprio Marques não sabia o que era.

A doença era uma febre que cedeu no fim de quinze dias à ação da medicina. No fim de vinte dias Meneses apresentou-se em casa de Azevedo, ainda pálido e magro.

Hortênsia doeu-se de o ver assim. Compreendeu que aquele amor não correspondido entrava por muito na doença de Meneses. Sem que lhe coubesse culpa por isso, Hortênsia teve remorsos de lho ter inspirado.

Era o mesmo que se a flor tivesse culpa do perfume que exala, ou a estrela, do fulgor que despede de si.

Nessa mesma noite Marques disse a Hortênsia que ia pedi-la em casamento no dia seguinte.

- Autoriza-me? - perguntou ele.

- Com uma condição.

- Qual?

- É que o fará secretamente, e que nada divulgará até o dia do casamento, que deve ser daqui a alguns meses.

- Por que esta condição?

- Já me nega o direito de fazer uma condição?

Marques calou-se, sem compreender.

Era fácil entretanto entrar no pensamento íntimo de Hortênsia.

A moça não queria com a publicidade imediata do casamento amargurar fatalmente a existência de Meneses.

Contava ela que, pouco depois do pedido e do ajuste, alcançaria licença do pai para ir passar fora dous ou três meses.

"É quanto basta", pensava ela, "para que o outro me esqueça e não sofra."

Esta delicadeza de sentimento, que revelava em Hortênsia uma rara elevação de espírito e uma alma perfeita, se Marques pudesse compreendê-la e adivinhá-la, talvez condenasse a moça.

Entretanto, Hortênsia obrava de boa-fé. Queria ser feliz, mas teria remorsos se, para sê-lo, houvesse de fazer padecer alguém.

Marques, conforme a promessa, foi no dia seguinte à casa de Azevedo, e na forma tradicional pediu a mão de Hortênsia.

O pai da moça não tinha objeção alguma; e apenas pro formula impôs a condição da aquiescência da filha, que não tardou em dá-la.

Resolveu-se que o casamento seria dali a seis meses; e logo daí a dous dias Hortênsia pediu ao pai para ir visitar o tio, que residia em Valença.

Azevedo consentiu.

Marques, apenas recebeu a resposta afirmativa de Azevedo em relação ao casamento, repetiu a declaração de que até o dia aprazado o casamento seria um inviolável segredo.

"Mas", pensou ele consigo, "para Meneses eu não tenho segredos, e este devo dizer-lho, sob pena de mostrar-me mau amigo."

O moço estava ansioso por comunicar a alguém a sua felicidade. Foi dali para a casa em que Meneses advogava.

- Grande notícia - disse ele ao entrar.

- Que é?

- Vou casar-me.

- Com a Hortênsia?

- Com a Hortênsia.

Meneses empalideceu, e sentiu que o coração batia-lhe com força. Ele esperava por aquilo mesmo; mas ouvir a declaração do fato, naturalmente próximo; adquirir a certeza de que a amada de seu coração já era de outro, não só pelo amor, como pelos laços de uma próxima e assentada aliança, era uma tortura a que ele não podia fugir nem dissimular.

A sua comoção foi tão visível, que Marques perguntou-lhe:

- Que tens?

- Nada; restos daquela moléstia. Ando muito doente. Não é nada. Então, vais casar-te? Dou-te os meus parabéns.

- Obrigado, meu amigo.

- Quando é o casamento?

- Daqui a seis meses.

- Tão tarde!

- É vontade dela. Seja como for, é cousa assentada. Ora, não sei que sinto com isto; é uma impressão nova. Custa-me a crer que eu vá casar deveras...

- Por quê?

- Eu sei lá! Também, se não fosse ela, não casava. É bonita a minha noiva, não?

- É.

- E ama-me!... Queres ver a última carta dela?

Meneses dispensava bem a leitura da carta; mas como?

Marques tirou a carta do bolso e começou a lê-la; Meneses fazia esforços para não prestar atenção ao que ouvia.

Mas era debalde.

Ouvia tudo; e cada uma daquelas palavras, cada um daqueles protestos era uma punhalada que o pobre moço recebia no coração.

Quando Marques saiu, Meneses retirou-se para casa, aturdido como se o houvessem deitado ao fundo de um grande abismo, ou como se acabasse de ouvir a sua sentença de morte.

Amava perdidamente a uma mulher que o não amava, que amava a outro, e que ia casar. O fato é comum; os que o tiverem conhecido por experiência própria avaliarão a dor do pobre moço.

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