VII
Dona Mariana Lima era uma senhora agradável na conversa, mas única e simplesmente na conversa. O coração era esquisito; é o menos que se pode dizer. O espírito era caprichoso, voluntarioso e ambicioso. Ambicionava um casamento mais elevado para o filho. Os amores de Henrique e o seu imediato casamento foram um desastre para os planos de futuro.
Quer isto dizer que D. Mariana desde o primeiro dia começou a odiar a nora. Escondeu-o o mais que pôde, e só pôde esconder durante os primeiros meses. Afinal o ódio fez explosão. Foi impossível no fim de certo tempo viverem juntas. Henrique foi morar em casa sua.
Não bastava à senhora D. Mariana odiar a nora e aborrecer o filho.
Era-lhe preciso mais.
Soube e viu a parte que teve o padre Flávio no casamento do filho, e não só o padre Flávio como de algum modo o padre Vilela.
Naturalmente criou-lhes ódio.
Não o manifestou entretanto logo. Ela era profundamente dissimulada; tratou de disfarçar o mais que pôde. Seu fim era expeli-los de casa.
Eu disse que D. Mariana era agradável na conversa. Era-o também na fisionomia. Ninguém diria que aquele rosto amável escondia um coração de ferro. Via-se que tinha sido formosa; ela mesma falava da sua beleza passada com um resto de orgulho. A primeira vez que o padre Flávio a ouviu falar assim, teve má impressão. Notou-lhe D. Mariana e não se conteve que lhe não dissesse:
- Reprova-me?
O padre Flávio conciliou seu amor à verdade com a consideração que devia à esposa do amigo.
- Minha senhora - murmurou ele -, eu não tenho direito para tanto...
- Tanto vale dizer que me reprova.
Flávio calou-se.
- Cuido, entretanto - continuou a esposa de João Lima -, que não me gabo de nenhum crime; ter sido bonita não é coisa que ofenda a Deus.
- Não é - disse gravemente o padre Flávio -; mas a austeridade cristã pede que não façamos caso nem tenhamos orgulho das nossas graças físicas. As próprias virtudes não nos devem ensoberbecer...
Flávio estacou. Reparou que estava presente João Lima e não quis continuar a conversa por extremo desagradável. Mas o marido de D. Mariana nadava em contentamento. Interveio na conversa.
- Continue, padre - disse ele -; isso não ofende e é justo. A minha santa Eva gosta de recordar o tempo da sua beleza; já lhe tenho dito que é melhor deixar o louvor aos outros; e ainda assim fechar os ouvidos.
Dona Mariana não quis ouvir o resto; retirou-se da sala.
João Lima deitou a rir.
- Assim, padre! Nunca as mãos lhe doam.
Flávio estava profundamente incomodado com o que se passara. Não queria de nenhum modo contribuir para um desaguisado de família. Demais, já percebera que a mãe de Henrique não gostava dele, mas não podia atinar com a causa. Fosse qual fosse, julgou prudente afastar-se da casa, e assim o disse ao padre Vilela.
- Não creio que tenhas razão - disse este.
- E eu creio que tenho - retorquiu o padre Flávio -; em todo caso nada perdemos em afastarmo-nos por algum tempo.
- Não, não me parece razoável - disse Vilela -; que culpa tem João Lima nisto? Como explicar a nossa ausência?
- Mas...
- Demos tempo ao tempo, e se as cousas continuarem do mesmo modo...
Flávio aceitou o alvitre do seu velho amigo.
Costumavam eles passar quase todas as tardes em casa de João Lima, onde tomavam café e onde conversavam das cousas públicas ou praticavam de assuntos pessoais. Às vezes dava-lhe João Lima para ouvir filosofia, e nessas ocasiões era o padre Flávio quem falava exclusivamente.
Dona Mariana, desde a conversa que acima deixo referida, mostrara-se cada vez mais fria com os dois padres. Sobretudo com Flávio, as suas demonstrações eram mais positivas e solenes.
João Lima não reparava em nada. Era um bom homem, que não podia supor houvesse alguém a quem desagradassem os seus dois amigos.
Um dia porém, ao saírem de lá, disse Flávio a Vilela:
- Não lhe parece que o João Lima está um pouco mudado hoje?
- Não.
- Creio que sim.
Vilela abanou a cabeça, e disse rindo:
- Andas visionário, Flávio!
- Não sou visionário; percebo as coisas.
- As coisas que ninguém percebe.
- Verá.
- Quando?
- Amanhã.
- Pois verei!
No dia seguinte houve um inconveniente que os impediu de ir à casa de João Lima. Foram em outro dia.
João Lima mostrou-se efetivamente frio com o padre Flávio; com o padre Vilela não alterou o seu modo. Vilela notou a diferença e deu razão ao amigo.
- Na verdade - disse ele ao saírem os dois do Valongo, onde morava João Lima -, pareceu-me que o homem hoje não te tratou como de costume.
- Do mesmo modo que anteontem.
- Que haverá?
Flávio calou-se.
- Dize - insistiu Vilela.
- Que nos importa isso? - disse o padre Flávio depois de alguns instantes de silêncio. - Gostou de mim algum tempo; hoje não gosta; não o censuro por isso, nem me queixo. É conveniente que nos acostumemos às variações do espírito e do coração. Pela minha parte não mudei a seu respeito; mas...
Calou-se.
- Mas? - perguntou Vilela.
- Mas não devo voltar lá.
- Ah!
- Sem dúvida. Acha bonito que frequente uma casa onde não sou bem aceito? Seria afrontar o dono da casa.
- Bem; não iremos mais lá?
- Não iremos?
- Sim, não iremos.
- Mas por que razão há de Vossa Reverendíssima...
- Porque sim - disse resolutamente o padre Vilela -. Onde tu não fores recebido com prazer, eu não posso decentemente meter os pés.
Flávio agradeceu mais esta prova de afeição que lhe dava o seu velho amigo; e procurou demovê-lo do propósito em que se achava; mas foi em vão; Vilela persistia na resolução anunciada.
- Bem - disse Flávio - irei lá como dantes.
- Mas essa agora...
- Não quero privá-los da sua pessoa, padre-mestre.
Vilela procurou convencer ao amigo de que não devia ir se tinha escrúpulo nisso. Flávio resistiu a todas as razões. O velho padre coçou a cabeça e, depois de meditar algum tempo, disse:
- Pois bem, eu irei só.
- É o melhor acordo.
Vilela mentia; sua resolução era não ir mais lá, desde que o amigo não ia; mas ocultava esse plano, pois que era impossível fazê-lo aceitar por ele.
VIII
Decorreram três meses depois do que acabo de narrar. Nem Vilela nem Flávio voltaram à casa de João Lima; este foi uma vez à casa dos dois padres com a intenção de perguntar a Vilela porque razão deixara de o visitar. Achou-o só em casa; disse-lhe o motivo da sua visita. Vilela desculpou-se com o amigo.
- Flávio anda melancólico - disse -; e eu, que sou tão amigo dele, não o quero deixar só.
João Lima franziu o sobrolho.
- Anda melancólico? - perguntou ele no fim de algum tempo.
- É verdade - continuou Vilela -. Não sei que tem; pode ser moléstia; em todo o caso não o quero deixar só.
João Lima não insistiu e retirou-se.
Vilela ficou pensativo. Que quereria dizer o ar com que o negociante lhe falara a respeito da melancolia do amigo? Interrogou as suas reminiscências; conjecturou à larga; nada concluiu nem encontrou.
- Tolices! - disse ele.
A ideia porém não lhe saiu mais do espírito. Tratava-se do homem a quem mais amava; era razão para que o preocupasse. Dias e dias gastou em espreitar o misterioso motivo; mas nada alcançou. Zangado consigo mesmo, e preferindo a tudo a franqueza, Vilela resolveu ir diretamente a João Lima.
Era de manhã. Flávio estava a estudar no seu gabinete, quando Vilela lhe disse que ia sair.
- Deixa-me só com a minha carta?
- Que carta?
- A que me deu, a misteriosa carta de minha mãe.
- Vais abri-la?
- Hoje mesmo.
Vilela saiu.
Ao chegar à casa de João Lima ia este sair.
- Preciso falar-lhe - disse-lhe o padre -. Vai sair?
- Vou.
- Tanto melhor.
- Que ar sério é esse? - perguntou Lima rindo.
- O negócio é sério.
Saíram.
- Sabe o meu amigo que eu não tenho sossegado desde que desconfiei de uma cousa...
- De uma cousa!
- Sim, desde que desconfiei que o meu amigo tem alguma cousa contra o meu Flávio.
- Eu?
- O senhor.
Vilela olhou fixamente para João Lima; este baixou os olhos. Foram andando assim silenciosamente durante algum tempo. Era evidente que João Lima queria ocultar alguma cousa ao padre-mestre. O padre é que não estava disposto a que se lhe escondesse a verdade. Ao fim de um quarto de hora Vilela rompeu o silêncio.
- Vamos lá - disse ele -; diga-me tudo.
- Tudo o quê?
Vilela fez um gesto de impaciência.
- Para que procura negar que há alguma cousa entre o senhor e o Flávio? É isso que eu desejo saber. Sou amigo dele e seu pai espiritual; se ele errou desejo castigá-lo; se o erro é seu, peço licença ao senhor para castigá-lo.
- Falemos de outra cousa...
- Não; falemos disto.
- Pois bem - disse João Lima com resolução -; dir-lhe-ei tudo, com uma condição.
- Qual?
- É que lhe há de ocultar tudo a ele.
- Para quê, se merecer corrigi-lo?
- Porque é necessário. Não desejo que transpire nada desta conversa; é tão vergonhoso isto!...
- Vergonhoso!
- Desgraçadamente, é vergonhosíssimo.
- É impossível! - exclamou Vilela não sem alguma indignação.
- Verá.
Seguiu-se um novo silêncio.
- Eu era amigo de Flávio e admirador das suas virtudes como dos seus talentos. Era capaz de jurar que nunca um pensamento infame lhe entraria no espírito...
- E então? - perguntou Vilela trêmulo.
- E então - repetiu João Lima com placidez -; esse pensamento infame entrou-lhe no espírito. Infame seria em qualquer outro; mas em quem traz vestes sacerdotais... Não respeitar nem o seu caráter, nem o estado alheio; cerrar os olhos aos laços sagrados do matrimônio...
Vilela interrompeu a João Lima exclamando:
- Está doudo!
Mas João Lima não se molestou; referiu placidamente ao padre-mestre que o seu amigo ousara desrespeitar-lhe a esposa.
- É uma calúnia! - exclamou Vilela.
- Perdão - disse João Lima -, disse-mo quem podia asseverar.
Vilela não era naturalmente manso; conteve-se a custo ao ouvir estas palavras do amigo. Não lhe foi difícil perceber a origem da calúnia: era a antipatia de D. Mariana. Admirou-se que descesse a tanto; no seu íntimo resolveu dizer tudo ao jovem sacerdote. Não deixou porém de observar a João Lima:
- Isso que me diz é impossível; houve certamente equívoco, ou... má vontade; acho que seria principalmente má vontade. Não hesito em responder por ele.
- Má vontade por quê? - perguntou João Lima.
- Não sei; mas alguma havia em que eu já reparara ainda antes do que se deu ultimamente. Quer que seja inteiramente franco?
- Peço-lhe.
- Pois bem, todos temos defeitos; sua senhora, entre boas qualidades que possui, tem alguns e graves. Não se zangue se lhe falo assim; mas é preciso dizer tudo quando se trata de defender como eu a inocência de um amigo.
João Lima não dizia palavra. Ia cabisbaixo ouvindo as palavras do padre Vilela. Ele sentia que o padre não estava longe da verdade; conhecia a mulher, sabia por onde pecava o seu espírito.
- Eu creio - disse o padre Vilela - que o casamento de seu filho influiu na desafeição de sua esposa.
- Por quê?
- Talvez não fosse muito do agrado dela, e ao Flávio se deve o bom desfecho que teve aquele negócio. Que lhe parece?
Não respondeu o interlocutor. As palavras de Vilela trouxeram-lhe à memória algumas que ouvira à mulher em desabono do padre Flávio. Era bom e fraco; arrependia-se facilmente. O tom decisivo com que falou Vilela profundamente o abalou. Não tardou que ele mesmo dissesse:
- Não desconheço que é possível um equívoco; o espírito suscetível de Mariana podia errar, era mais natural que ela se esquecesse de que tem um resto das suas graças para só se lembrar de que é uma matrona... Perdão, falo-lhe como amigo; releve-me estas expansões em tal assunto.
Vilela dirigiu a João Lima no caminho em que entrava. No fim de uma hora estavam quase de acordo. João Lima encaminhou-se para casa acompanhado de Vilela; iam já então calados e pensativos.
IX
Ao chegarem à porta quis Vilela retirar-se. Souberam porém que Flávio estava em cima. Os dois olharam um para o outro, Vilela atônito, João Lima fulo de cólera.
Subiram.
Na sala estavam D. Mariana e o padre Flávio; ambos de pé, em frente um do outro, Mariana com as mãos de Flávio entre as suas.
Os dois estacaram à porta.
Seguiu-se um longo e profundo silêncio.
- Meu filho! Meu amigo! - exclamou Vilela dando um passo para o grupo.
Dona Mariana tinha soltado as mãos do jovem sacerdote e deixara-se cair numa cadeira; Flávio tinha os olhos baixos.
João Lima adiantou-se calado. Parou em frente de Flávio e encarou-o friamente. O padre ergueu os olhos; havia neles uma grande dignidade.
- Senhor - disse Lima.
Dona Mariana levantou-se da cadeira e atirou-se aos pés do esposo.
- Perdão! - exclamou ela.
João Lima empurrou-a com um braço.
- Perdão; é meu filho!
Eu deixo ao leitor imaginar a impressão deste lance de quinto ato de melodrama. João Lima esteve cerca de dez minutos sem poder articular palavra. Vilela olhava espantado para todos.
Enfim rompeu a palavra o negociante. Era natural pedir uma explicação; pediu-a; foi-lha dada. João Lima exprimiu toda a sua cólera contra Mariana.
Flávio lastimara do fundo d'alma a fatalidade que o levou a produzir aquela situação. No delírio de conhecer sua mãe, não se lembrara de mais nada; apenas leu a carta que lhe fora entregue pelo padre Vilela, correra à casa de D. Mariana. Ali tudo se explicara; Flávio preparava-se para sair e não voltar ali mais se fosse preciso, e em todo caso não divulgar o segredo nem ao padre Vilela, quando este e João Lima os surpreenderam.
Tudo estava perdido.
D. Mariana recolheu-se ao convento da Ajuda onde faleceu no tempo da guerra de Rosas. O padre Flávio obteve uma vigararia no interior de Minas, onde veio a falecer de tristeza e saudade. Vilela quis acompanhá-lo, mas o jovem amigo não o consentiu.
- De tudo o que me poderias pedir - disse Vilela -, é isso o que mais me dói.
- Paciência! - respondeu Flávio -; eu preciso da solidão.
- Tê-la-ás?
- Sim; preciso da solidão para meditar nas consequências que o erro de um pode trazer a muitas existências.
Tal é a moralidade desta triste história.