III
Flávio não desmentiu as esperanças do padre. Os seus progressos eram espantosos. Teologia, história, filosofia, línguas, literatura, tudo isso estudou o rapaz com pasmosa atividade e zelo. Não tardou que excedesse ao mestre, porquanto este era apenas uma inteligência medíocre e Flávio possuía um talento superior.
Como boa alma que era, o velho mestre tinha orgulho na superioridade do discípulo. Conhecia perfeitamente que, de certo tempo em diante, os papéis estavam trocados: era ele quem teria de aprender com o outro. Mas a própria inferioridade fazia a sua glória.
- Os olhos que descobrem um brilhante - dizia o padre consigo - não fulgem mais que ele, mas alegram-se com tê-lo achado e dado ao mundo.
Não vem ao caso referir os sucessos que deslocaram o padre da sua freguesia em Minas para a Corte. Veio o padre residir aqui quando Flávio contava já dezessete anos. Tinha alguma cousa de seu e podia viver independente, em companhia de seu filho espiritual, única família sua, mas quanto bastava aos afetos do seu coração e aos seus hábitos intelectuais.
Flávio já não era então o pobre menino de Minas. Era um elegante rapaz, belo de feições, delicado e severo de maneiras. A educação que tivera em companhia do padre dera-lhe uma gravidade que realçava a pureza de suas feições e a graça do seu gesto. Mas por cima de tudo isso havia um véu de melancolia que tinha duas causas: o próprio caráter dele, e a lembrança incessante da mulher que o criara.
Vivendo em casa do padre, com a subsistência que permitiam as posses deste, instruído, admirado, cheio de esperanças e de futuro, Flávio recordava sempre a vida de pobreza que tivera em Minas, os sacrifícios que a boa mulher fizera por ele, as lágrimas que algumas vezes derramaram juntos quando chegava a faltar-lhes o pão. Não esquecera nunca o amor que aquela mulher lhe consagrara até à morte, e o zelo extremo com que o tratara. Em vão procurara na memória alguma palavra mais ríspida da parte de sua mãe: só conservava a lembrança de afagos e amores.
Apontando aqui estas duas causas permanentes da sua melancolia, não quero exagerar o caráter do rapaz. Pelo contrário, Flávio era um conversador ameno e variado. Sorria frequentemente, com ingenuidade, com satisfação. Gostava da discussão; a sua palavra era quase sempre animada; tinha entusiasmo na conversação. Havia nele uma feliz combinação de dois sentimentos, por modo que nem a melancolia o tornava enfadonho, nem a alegria, insuportável.
Profundamente observador, o discípulo do padre Vilela aprendeu cedo a ler estes livros que se chamam corações antes de os estimar e aplaudir. A sagacidade natural não estava ainda apurada pela experiência e pelo tempo. Aos dezoito anos julga-se mais pelo coração que pela reflexão. Nessa idade acontece sempre pintarmos um caráter com as cores dos nossos próprios afetos. Flávio não podia escapar absolutamente a esta lei comum, que uns dizem ser má e outros querem que seja excelente. Mas o moço ia-se pouco a pouco acostumando ao trato dos homens; a vida retirada que vivera desenvolveu-lhe o gosto da solidão. Quando começou a travar relações não contava uma só que lhe fosse imposta por nenhuma intimidade passada.
O padre Vilela, que tinha por si a experiência da vida, gostava de ver no rapaz esse caráter temperado de entusiasmo e reserva, de confiança e receio. Parecia ao padre, em cujo espírito já rolava a ideia de ver o discípulo servo da Igreja, que o resultado daquilo seria distanciar-se o rapaz do século e aproximar-se do sacerdócio.
Mas o padre Vilela não contava com esta crise necessária da juventude chamada "amor", que o rapaz não conhecia também a não ser pelos livros do seu gabinete. Quem sabe? Talvez esses livros lhe fizessem mal. Acostumado a ver o amor com a lente da fantasia, deleitando-se com as sensações poéticas, com as criações ideais, com a vida da imaginação, Flávio não tinha a menor ideia da cousa prática, tanto se absorvia na contemplação da cousa ideal.
Semelhante ao homem que só houvesse vivido no meio de figuras esculpidas em mármore, e que supusesse nos homens o original completo das cópias artísticas, Flávio povoava a sua imaginação de Ofélias e Marílias, ansiava por encontrá-las, amava-as antecipadamente, em solitárias chamas. Como era natural, o moço exigia mais do que poderia dar a natureza humana.
Foi então que se produziu a circunstância que lhe abriu mais depressa as portas da Igreja.
IV
Não é preciso dizer de que natureza foi a circunstância; os leitores já o terão adivinhado.
Flávio fazia poucas visitas e não conhecia muita gente. Ia de quando em quando a duas ou três casas de família onde o padre o apresentara e aí passava algumas horas que no dizer das pessoas da casa eram minutos. A hipérbole era sincera; Flávio possuía o dom de conversar bem, sem demasia nem parcimônia, equilibrando-se entre o que era fútil e o que era pesado.
Uma das casas a que ia era a de uma D. Margarida, viúva de um advogado que enriquecera no foro e deixara à família boa e larga riqueza. A viúva tinha duas filhas, uma de dezoito anos e outra de doze. A de doze era uma criança querendo ser moça, um lindo prefácio de mulher. Qual seria o livro? Flávio não fez nem respondeu a esta pergunta.
A que desde logo lhe chamou a atenção foi a mais velha, criatura que lhe aparecia com todos os encantos imaginados por ele. Chamava-se Laura; estava no pleno desenvolvimento da mocidade. Era diabolicamente bela; o termo será impróprio, mas exprime perfeitamente a verdade. Era alta, bem formada, mais imponente que delicada, mais soberana que graciosa. Adivinhava-se-lhe um caráter imperioso; era dessas mulheres que, emendando a natureza, que as não fez nascer no trono, fazem-se rainhas por si mesmas. Outras possuem a força da fraqueza; Laura não. Seus lábios não eram feitos para a súplica, nem seus olhos, para a meiguice. Lhe fosse preciso adquirir uma coroa - quem sabe? -, Laura seria lady Macbeth.
Semelhante caráter sem a beleza seria quase inofensivo. Laura era formosa, e sabia que o era. Sua beleza era dessas que arrastam logo à primeira vista. Possuía os mais belos olhos do mundo, grandes e negros, olhos que despediam luz e nadavam em fogo. Os cabelos, igualmente negros e abundantes, trazia-os penteados com arte especial, por modo que lhe dessem à cabeça uma espécie de diadema. Coroavam assim uma testa branca, larga, inteligente. A boca, se o desdém não existisse, inventava-o certamente. Toda a figura tinha uma expressão de desdenhosa gravidade.
Lembrara-se Flávio de ficar namorado daquela Semíramis burguesa. Como o seu coração era ainda virgem, caiu logo do primeiro golpe, e não tardou que a serenidade da sua vida se transformasse em tempestade desfeita. Tempestade é o verdadeiro nome, porque, à medida que os dias iam passando, o amor crescia, e crescia o receio de se ver repelido ou talvez menoscabado.
Flávio não tinha ânimo de se declarar à moça, e esta parecia estar longe de lhe adivinhar os sentimentos. Não estava longe; adivinhara-o logo. Mas o mais que o seu orgulho concedeu ao mísero amador foi perdoar-lhe a paixão. No rosto nunca se lhe traiu o que sentia. Quando Flávio olhava para ela, embebido e esquecido do resto do universo, Laura sabia tão bem disfarçar que nunca traía a sua sagacidade.
Vilela reparou na tristeza do rapaz; mas como ele não lhe dizia nada, teve a prudência de lhe não perguntar por isso. Imaginou que seriam amores; e como desejava vê-lo no sacerdócio, a descoberta não deixou de o aborrecer.
Havia porém uma cousa pior do que não ser sacerdote, era ser infeliz, ou ter empregado mal o fogo do seu coração. Vilela pensou nisto e mais aborrecido ainda ficou. Flávio andava cada vez mais melancólico e até lhe pareceu que emagrecia, donde o bom padre concluiu logicamente que devia ser paixão incurável, atentas as relações íntimas em que estão a magreza e o amor, na teoria romântica.
Vendo aquilo, e prevendo que o resultado podia ser funesto ao seu amigo, Vilela estabeleceu de si para si um prazo de quinze dias, findos os quais, se Flávio não lhe fizesse confissão voluntária do que sentia, ele lha arrancaria à força.
V
Daí a oito dias teve ele a ventura inefável de ouvir da própria boca de Flávio que queria seguir a carreira sacerdotal. O rapaz dizia aquilo com tristeza, mas resoluto. Vilela recebeu a notícia como eu tive já ocasião de dizer aos leitores, e tudo se preparou para que o neófito fizesse as primeiras provas.
Flávio resolvera adotar a vida eclesiástica depois que da própria Laura teve o desengano. Repare a leitora que eu não digo ouviu, mas teve. Flávio não ouviu nada. Laura não lhe falou quando ele timidamente lhe confessou que a adorava. Seria uma concessão. Laura não fazia concessões. Olhou para ele, ergueu a ponta do lábio e começou a contar as varetas do leque. Flávio insistiu; ela retirou-se com um ar tão frio e desdenhoso, mas sem um gesto, sem nada mais que indicasse a menor impressão, ainda que fora de ofensa. Era mais que despedi-lo, era esmagá-lo. Flávio curvou a cabeça e saiu.
Agora saltemos a pés juntos alguns pares de anos e vamos encontrar o padre Flávio no princípio da sua carreira, tendo justamente pregado o seu primeiro sermão. Vilela não cabia em si de contente; os cumprimentos que Flávio recebia era como se ele os recebesse; revia-se na sua obra; aplaudia-se no talento do rapaz.
- Minha opinião, Reverendo - dizia-lhe ele um dia ao almoço, - é que tu irás longe...
- À China? - perguntou sorrindo o outro.
- Longe é para cima - replicou Vilela -; quero dizer que hás de subir, e que ainda terei o gosto de te ver bispo. Não tens ambições?
- Uma.
- Qual?
- A de viver sossegado.
Esta disposição não agradava muito ao reverendo padre Vilela, que, sendo pessoalmente despido de ambições, desejava para o seu filho espiritual um elevado lugar na jerarquia da Igreja. Não quis porém combater o desprendimento do rapaz e limitou-se a dizer que não conhecia ninguém mais apto para ocupar uma sede episcopal.
No meio dos seus encômios foi interrompido por uma visita; era um rapaz quase da mesma idade do padre Flávio e seu antigo companheiro de estudos. Atualmente, tinha um emprego público, era alferes porta-bandeira de um batalhão da Guarda Nacional. A estas duas qualidades juntava a de ser filho de um negociante de grosso trato, o Sr. João Aires de Lima, de cujos sentimentos políticos dissentia radicalmente, visto que estivera no ano anterior com os revolucionários de 7 de abril, enquanto que o pai era muito inclinado aos restauradores.
Henrique Aires não fizera grande figura nos estudos; não fez sequer figura medíocre. Era doutor apenas, mas bom coração e rapaz de bons costumes. O pai quisera casá-lo com a filha de um negociante seu amigo; mas Henrique, tendo dado imprudentemente o coração à filha de um escrivão de agravos, opôs-se com todas as forças ao casamento. O pai, que era bom homem, não quis obrigar o coração do rapaz, e desistiu da empresa. Aconteceu então que a filha do negociante casou com outro e a filha do escrivão começou a dar corda a um segundo pretendente com quem veio a casar pouco tempo depois.
Estas particularidades são necessárias para explicar o grau de intimidade entre Henrique e Flávio. Foram eles naturalmente confidentes um do outro, e falaram (outrora) muito e muito dos seus amores e esperanças com a circunstância usual entre namorados que cada um deles era o ouvinte de si mesmo.
Os amores foram-se; a intimidade ficou. Apesar dela, desde que Flávio tomara ordens, e já antes, nunca mais Henrique lhe falara de Laura, conquanto suspeitasse que a lembrança da moça não se lhe apagara no coração. Adivinhara até que a repulsa da moça o atirara ao sacerdócio.
Henrique Aires foi recebido como um íntimo da casa. O padre Vilela gostava dele, principalmente porque era amigo de Flávio. Além disso, Henrique Aires era um rapaz alegre, e o padre Vilela gostava de rir.
Desta vez, entretanto, não vinha alegre o alferes. Trazia os olhos desvairados e a cara sombria. Era um rapaz bonito, elegantemente vestido à maneira do tempo. Contava um ano menos que o padre Flávio. Tinha o corpo muito direito, em parte porque a natureza o fizera assim, em parte porque andava, ainda à paisana, como se levasse a bandeira na mão.
Vilela e Flávio perceberam logo que o recém-chegado tinha alguma cousa que o preocupava; nenhum deles, entretanto, o interrogou. Trocaram-se algumas palavras friamente, até que Vilela, percebendo que Henrique Aires desejaria conversar com o amigo, deixou a mesa e saiu.
VI
Henrique, apenas ficou só com Flávio, atirou-se-lhe aos braços e pediu que o salvasse.
- Salvar-te! - exclamou Flávio. - De quê?
Henrique sentou-se outra vez sem responder e pôs a cabeça nas mãos. O padre insistiu com ele para que dissesse o que havia, fosse o que fosse.
- Cometeste algum...
- Crime? Sim, cometi um crime - respondeu Henrique -; mas, descansa, não foi nenhum roubo nem morte; foi um crime que felizmente se pode reparar...
- Que foi então?
- Foi...
Henrique hesitou. Flávio instou para que confessasse tudo.
- Eu gostava muito de uma moça e ela, de mim - disse enfim o alferes -; meu pai, que sabia do namoro, creio que o não desaprovava. O pai dela, entretanto, opunha-se ao nosso casamento... Noutro tempo tu já saberias destas cousas; mas agora, não me atrevi nunca a falar-te nisso...
- Continua.
- O pai opunha-se; e, apesar da posição que meu pai ocupa, dizia à boca cheia que nunca me admitiria em sua casa. Efetivamente nunca lá entrei; falávamos poucas vezes, mas escrevíamos a miúdo. As coisas iriam assim até que o ânimo do pai se voltasse a nosso favor. Uma circunstância, porém, ocorreu e foi o que me precipitou a um ato de loucura. O pai queria casá-la com um deputado que chegou há pouco do Norte. Ameaçados disso...
- Ela fugiu contigo - concluiu Flávio.
- É verdade - disse Henrique sem ousar encarar o amigo.
Flávio esteve algum tempo calado. Quando abriu a boca foi para censurar o ato de Henrique, lembrando-lhe o desgosto que iria causar a seus pais, não menos que à família da moça. Henrique ouviu silenciosamente as censuras do padre. Afirmou-lhe que estava disposto a tudo, mas que o seu maior desejo era evitar o escândalo.
Flávio pediu todas as informações precisas e dispôs-se a reparar o mal pelo melhor modo que pudesse. Soube que o pai da moça era um juiz da Casa da Suplicação. Saiu logo a dar os passos necessários. O intendente da polícia tinha já as informações do caso e corriam agentes seus em todas as direções. Flávio obteve o auxílio do padre Vilela, e tudo andou tão a tempo e com tão boa feição, que antes das ave-marias as maiores dificuldades ficaram aplanadas. Foi o padre Flávio quem teve o gosto de casar os dois jovens pássaros, depois do quê dormiu em plena paz com a consciência.
Nunca o padre Flávio tivera ocasião de frequentar a casa do Sr. João Aires de Lima, ou simplesmente do Sr. João Lima, que era o nome corrente. Andara entretanto em todo aquele negócio com tanto zelo e amor, mostrara tamanha gravidade e circunspecção, que o Sr. João Lima ficou morrendo por ele. Se perdoou ao filho foi unicamente por causa do padre.
- Henrique é um maroto - disse João Lima - que devia assentar praça, ou ir ali viver alguns meses no Aljube. Mas não podia escolher melhor advogado, e é por isso que eu lhe perdoei a tratantice.
- Verduras da mocidade - obtemperou o padre Flávio.
- Verduras, não, Reverendo; loucuras é o verdadeiro nome. Se o pai da rapariga não queria dar-lha, a dignidade, não menos que a moralidade, o obrigava a um procedimento diverso do que teve. Enfim, Deus lhe dê juízo!
- Há de dar, há de dar...
Conversavam assim os dois no dia seguinte ao do casamento de Henrique e Luísa, que era o nome da pequena. A cena passava-se na sala de visitas da casa de João Lima à rua do Valongo, defronte de uma janela aberta, ambos sentados em cadeiras de braços de jacarandá, tendo de permeio uma mesa pequena com duas xícaras de café em cima.
João Lima era um homem sem cerimônias e mui fácil de criar amizade a alguém. Flávio pela sua parte era extremamente simpático. A amizade criou raízes dentro de pouco tempo.
Vilela e Flávio frequentavam a casa de João Lima, com quem moravam o filho e a nora na mais doce intimidade.
Doce intimidade é uma maneira de falar.
A intimidade durou apenas alguns meses e não foi de toda a família. Uma pessoa havia em quem o casamento de Henrique produziu desagradável impressão; foi a mãe dele.
VII
Dona Mariana Lima era uma senhora agradável na conversa, mas única e simplesmente na conversa. O coração era esquisito; é o menos que se pode dizer. O espírito era caprichoso, voluntarioso e ambicioso. Ambicionava um casamento mais elevado para o filho. Os amores de Henrique e o seu imediato casamento foram um desastre para os planos de futuro.
Quer isto dizer que D. Mariana desde o primeiro dia começou a odiar a nora. Escondeu-o o mais que pôde, e só pôde esconder durante os primeiros meses. Afinal o ódio fez explosão. Foi impossível no fim de certo tempo viverem juntas. Henrique foi morar em casa sua.
Não bastava à senhora D. Mariana odiar a nora e aborrecer o filho.
Era-lhe preciso mais.
Soube e viu a parte que teve o padre Flávio no casamento do filho, e não só o padre Flávio como de algum modo o padre Vilela.
Naturalmente criou-lhes ódio.
Não o manifestou entretanto logo. Ela era profundamente dissimulada; tratou de disfarçar o mais que pôde. Seu fim era expeli-los de casa.
Eu disse que D. Mariana era agradável na conversa. Era-o também na fisionomia. Ninguém diria que aquele rosto amável escondia um coração de ferro. Via-se que tinha sido formosa; ela mesma falava da sua beleza passada com um resto de orgulho. A primeira vez que o padre Flávio a ouviu falar assim, teve má impressão. Notou-lhe D. Mariana e não se conteve que lhe não dissesse:
- Reprova-me?
O padre Flávio conciliou seu amor à verdade com a consideração que devia à esposa do amigo.
- Minha senhora - murmurou ele -, eu não tenho direito para tanto...
- Tanto vale dizer que me reprova.
Flávio calou-se.
- Cuido, entretanto - continuou a esposa de João Lima -, que não me gabo de nenhum crime; ter sido bonita não é coisa que ofenda a Deus.
- Não é - disse gravemente o padre Flávio -; mas a austeridade cristã pede que não façamos caso nem tenhamos orgulho das nossas graças físicas. As próprias virtudes não nos devem ensoberbecer...
Flávio estacou. Reparou que estava presente João Lima e não quis continuar a conversa por extremo desagradável. Mas o marido de D. Mariana nadava em contentamento. Interveio na conversa.
- Continue, padre - disse ele -; isso não ofende e é justo. A minha santa Eva gosta de recordar o tempo da sua beleza; já lhe tenho dito que é melhor deixar o louvor aos outros; e ainda assim fechar os ouvidos.
Dona Mariana não quis ouvir o resto; retirou-se da sala.
João Lima deitou a rir.
- Assim, padre! Nunca as mãos lhe doam.
Flávio estava profundamente incomodado com o que se passara. Não queria de nenhum modo contribuir para um desaguisado de família. Demais, já percebera que a mãe de Henrique não gostava dele, mas não podia atinar com a causa. Fosse qual fosse, julgou prudente afastar-se da casa, e assim o disse ao padre Vilela.
- Não creio que tenhas razão - disse este.
- E eu creio que tenho - retorquiu o padre Flávio -; em todo caso nada perdemos em afastarmo-nos por algum tempo.
- Não, não me parece razoável - disse Vilela -; que culpa tem João Lima nisto? Como explicar a nossa ausência?
- Mas...
- Demos tempo ao tempo, e se as cousas continuarem do mesmo modo...
Flávio aceitou o alvitre do seu velho amigo.
Costumavam eles passar quase todas as tardes em casa de João Lima, onde tomavam café e onde conversavam das cousas públicas ou praticavam de assuntos pessoais. Às vezes dava-lhe João Lima para ouvir filosofia, e nessas ocasiões era o padre Flávio quem falava exclusivamente.
Dona Mariana, desde a conversa que acima deixo referida, mostrara-se cada vez mais fria com os dois padres. Sobretudo com Flávio, as suas demonstrações eram mais positivas e solenes.
João Lima não reparava em nada. Era um bom homem, que não podia supor houvesse alguém a quem desagradassem os seus dois amigos.
Um dia porém, ao saírem de lá, disse Flávio a Vilela:
- Não lhe parece que o João Lima está um pouco mudado hoje?
- Não.
- Creio que sim.
Vilela abanou a cabeça, e disse rindo:
- Andas visionário, Flávio!
- Não sou visionário; percebo as coisas.
- As coisas que ninguém percebe.
- Verá.
- Quando?
- Amanhã.
- Pois verei!
No dia seguinte houve um inconveniente que os impediu de ir à casa de João Lima. Foram em outro dia.
João Lima mostrou-se efetivamente frio com o padre Flávio; com o padre Vilela não alterou o seu modo. Vilela notou a diferença e deu razão ao amigo.
- Na verdade - disse ele ao saírem os dois do Valongo, onde morava João Lima -, pareceu-me que o homem hoje não te tratou como de costume.
- Do mesmo modo que anteontem.
- Que haverá?
Flávio calou-se.
- Dize - insistiu Vilela.
- Que nos importa isso? - disse o padre Flávio depois de alguns instantes de silêncio. - Gostou de mim algum tempo; hoje não gosta; não o censuro por isso, nem me queixo. É conveniente que nos acostumemos às variações do espírito e do coração. Pela minha parte não mudei a seu respeito; mas...
Calou-se.
- Mas? - perguntou Vilela.
- Mas não devo voltar lá.
- Ah!
- Sem dúvida. Acha bonito que frequente uma casa onde não sou bem aceito? Seria afrontar o dono da casa.
- Bem; não iremos mais lá?
- Não iremos?
- Sim, não iremos.
- Mas por que razão há de Vossa Reverendíssima...
- Porque sim - disse resolutamente o padre Vilela -. Onde tu não fores recebido com prazer, eu não posso decentemente meter os pés.
Flávio agradeceu mais esta prova de afeição que lhe dava o seu velho amigo; e procurou demovê-lo do propósito em que se achava; mas foi em vão; Vilela persistia na resolução anunciada.
- Bem - disse Flávio - irei lá como dantes.
- Mas essa agora...
- Não quero privá-los da sua pessoa, padre-mestre.
Vilela procurou convencer ao amigo de que não devia ir se tinha escrúpulo nisso. Flávio resistiu a todas as razões. O velho padre coçou a cabeça e, depois de meditar algum tempo, disse:
- Pois bem, eu irei só.
- É o melhor acordo.
Vilela mentia; sua resolução era não ir mais lá, desde que o amigo não ia; mas ocultava esse plano, pois que era impossível fazê-lo aceitar por ele.