Conto

Muitos Anos Depois

1874
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em outubro e novembro de 1874, assinado por Lara. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

Capítulo primeiro

Tinha vinte e sete anos o padre Flávio, quando começou a carreira de pregador para a qual se sentia arrastado por uma vocação irresistível. Teve a felicidade de ver começada a sua reputação desde as primeiras prédicas, que eram ouvidas com entusiasmo por homens e mulheres. Alguns inimigos que a fortuna lhe dera por confirmação do seu mérito diziam que a eloquência do padre era insossa e fria. É pena dizer que esses adversários do padre vinham da sacristia, e não da rua.

Bem pode ser que entre os admiradores do padre Flávio alguns fossem mais entusiastas das suas graças que dos seus talentos - para ser justo, gostavam de ouvir a palavra divina proferida por uma graciosa boca. Efetivamente o padre Flávio era uma soberba figura; a sua cabeça tinha uma forma escultural. Se a imagem não ofende os ouvidos católicos, direi que parecia Apolo convertido ao Evangelho. Tinha magníficos cabelos pretos, olhos da mesma cor, nariz reto, lábios finos, a testa lisa e polida. O olhar, ainda que sereno, tinha uma expressão de severidade, mas sem afetação. Aliavam-se naquele rosto a graça profana e a austeridade religiosa, como duas cousas irmãs, dignas igualmente da contemplação divina.

O que o padre Flávio era no aspecto era-o também no caráter. Pode-se dizer que era cristão e pagão ao mesmo tempo. A sua biblioteca constava de três grandes estantes. Numa estavam os livros religiosos, os tratados de teologia, as obras de moral cristã, os anais da Igreja, os escritos dos Jerônimos, dos Bossuets e dos Apóstolos. A outra continha os produtos do pensamento pagão, os poetas e os filósofos das eras mitológicas, as obras de Platão, de Homero, de Epiteto e Virgílio. Na terceira estante estavam as obras profanas que não se ligavam essencialmente àquelas duas classes, e com que ele se deleitava nas horas vagas que lhe deixavam as outras duas. Na classificação dos seus livros, o padre Flávio viu-se algumas vezes perplexo; mas resolvera a dificuldade de um modo engenhoso. O poeta Chénier, em vez de ocupar a terceira estante, foi colocado na classe do paganismo, entre Homero e Tibulo. Quanto ao Telêmaco de Fénelon, resolveu o padre deixá-lo sobre a mesa de trabalho; era um arcebispo católico que falava do filho de Ulisses; exprimia de algum modo a feição intelectual do padre Flávio.

Seria puerilidade supor que o padre Flávio, consorciando assim os escritos de duas inspirações opostas, fizesse dos dois cultos um só, e abraçasse do mesmo modo os deuses do templo antigo e as imagens da Igreja cristã. A religião católica era a da sua fé, ardente, profunda, inabalável; o paganismo representava a sua religião literária. Se encontrava no discurso da montanha consolações para a consciência, tinha nas páginas de Homero deliciosos prazeres ao seu espírito. Não confundia as odes de Anacreonte com o Cântico dos cânticos, mas sabia ler cada livro, a seu tempo, e tinha para si (cousa que mesma lhe perdoara o padre Vilela) que entre as duas obras havia alguns pontos de contato.

II

O padre Vilela, que entrou por incidente no período acima, tinha uma grande parte na vida do padre Flávio. Se este abraçara a vida religiosa foi por conselho e direção do padre Vilela, e em boa hora o fez porque, dos seus contemporâneos, nenhum honrou melhor o hábito sagrado.

Educado pelo padre Vilela, Flávio achou-se aos dezoito anos com todos os conhecimentos que podiam prepará-lo para as funções religiosas. Contudo estava resolvido a seguir outra carreira e tinha já em vista o curso jurídico. O padre Vilela esperava que o moço escolhesse livremente a profissão, não querendo comprar mediante uma condescendência de rapaz o futuro arrependimento. Uma circunstância que interessa à história fez com que Flávio abraçasse a profissão sacerdotal a que já o dispunham não somente a instrução do espírito, mas também a severidade dos costumes.

Quando num dia de manhã, à mesa do almoço, Flávio declarou ao padre que queria servir à Igreja, este, que era sincero servidor dela, sentiu imenso júbilo e abraçou o moço com efusão.

- Eu não podia pedir - disse Vilela - melhor profissão para o meu filho.

O nome de filho era o que lhe dava o padre e com razão lho dava, porque, se Flávio não lhe devia o ser, devia-lhe a criação e a educação.

Vilela fora muitos anos antes vigário em uma cidade de Minas Gerais; e aí conhecera um lindo menino que uma pobre mulher educava como podia.

- É seu filho? - perguntou-lhe o padre.

- Não, Reverendíssimo, não é meu filho.

- Nem afilhado?

- Nem afilhado.

- Nem parente?

- Nem parente.

O padre não perguntou mais nada, suspeitando que a mulher ocultava cousa que não podia dizer. Ou fosse por essa circunstância, ou porque o menino lhe inspirasse simpatia, o fato é que o padre não perdeu de vista aquela pobre família composta de duas pessoas. Naturalmente caridoso, não poucas vezes o padre ajudava a mulher nas necessidades de sua vida. A maledicência não deixou de abocanhar a reputação do padre com respeito à proteção que dava à mulher. Mas ele tinha uma filosofia singular: olhava por cima do ombro os caprichos da opinião.

Como o menino já tivesse oito anos, e não soubesse ler, quis o padre Vilela começar a educação dele e a mulher agradecida aceitou os obséquios do padre.

A primeira cousa que o mestre admirou no discípulo foi a docilidade com que ele ouvia as lições e afinco e zelo com que as estudava. É natural da criança preferir os brincos aos labores do estudo. O menino Flávio fazia do aprender uma regra e do brincar uma exceção, isto é, primeiro decorava as lições que o mestre lhe dava, e só depois de as ter sabidas é que se ia divertir com os outros rapazes seus companheiros.

Com este merecimento, tinha o menino outro ainda maior, era o de uma inteligência clara, e imediata compreensão, de maneira que ia entrando nos estudos com pasmosa rapidez e inteira satisfação do mestre.

Um dia, adoeceu a mulher, e foi caso de verdadeira aflição para as duas criaturas a quem ela mais estimava, o padre e o pequeno. Agravou-se a moléstia a ponto de ser necessário aplicarem-se os sacramentos. Flávio, já então de doze anos, chorava que fazia dó. A mulher expirou beijando o menino:

- Adeus, Flávio - disse ela -, não te esqueças de mim.

- Minha mãe! - exclamou o pequeno abraçando a mulher.

Mas ela já o não podia ouvir.

Vilela pôs-lhe a mão sobre o coração, e voltando-se para Flávio disse:

- Está com Deus.

Não tendo ninguém mais neste mundo, o menino ficara à mercê do acaso, se não fosse Vilela, que imediatamente o levou consigo. Como já havia intimidade entre os dois, não foi difícil ao pequeno a mudança; contudo nunca se lhe varria da memória a ideia da mulher que ele não só chamava mãe, como até a tinha por isso, visto que não conhecera outra.

A mulher, na véspera de morrer, mandou pedir ao padre lhe viesse falar. Quando ele chegou, mandou sair o pequeno e disse-lhe:

- Vou morrer, e não sei o que há de ser de Flávio. Não ouso pedir-lhe, Reverendíssimo, que o tome para si; mas quisera que fizesse alguma cousa por ele, que o recomende a algum colégio da caridade.

- Descanse - respondeu Vilela -; eu me incumbo do rapaz.

A mulher olhou agradecida para ele.

Depois, fazendo um esforço, tirou debaixo do travesseiro uma carta lacrada e entregou-a ao padre.

- Esta carta - disse ela - foi-me entregue com este menino; é escrita por sua mãe; tive ordem de lha entregar quando ele completasse vinte e cinco anos. Não quis Deus que eu tivesse o gosto de cumprir a recomendação. Quer V. Revma. incumbir-se dela?

O padre pegou na carta, leu o sobrescrito, que dizia assim: A meu filho.

Prometeu entregar a carta no prazo indicado.

III

Flávio não desmentiu as esperanças do padre. Os seus progressos eram espantosos. Teologia, história, filosofia, línguas, literatura, tudo isso estudou o rapaz com pasmosa atividade e zelo. Não tardou que excedesse ao mestre, porquanto este era apenas uma inteligência medíocre e Flávio possuía um talento superior.

Como boa alma que era, o velho mestre tinha orgulho na superioridade do discípulo. Conhecia perfeitamente que, de certo tempo em diante, os papéis estavam trocados: era ele quem teria de aprender com o outro. Mas a própria inferioridade fazia a sua glória.

- Os olhos que descobrem um brilhante - dizia o padre consigo - não fulgem mais que ele, mas alegram-se com tê-lo achado e dado ao mundo.

Não vem ao caso referir os sucessos que deslocaram o padre da sua freguesia em Minas para a Corte. Veio o padre residir aqui quando Flávio contava já dezessete anos. Tinha alguma cousa de seu e podia viver independente, em companhia de seu filho espiritual, única família sua, mas quanto bastava aos afetos do seu coração e aos seus hábitos intelectuais.

Flávio já não era então o pobre menino de Minas. Era um elegante rapaz, belo de feições, delicado e severo de maneiras. A educação que tivera em companhia do padre dera-lhe uma gravidade que realçava a pureza de suas feições e a graça do seu gesto. Mas por cima de tudo isso havia um véu de melancolia que tinha duas causas: o próprio caráter dele, e a lembrança incessante da mulher que o criara.

Vivendo em casa do padre, com a subsistência que permitiam as posses deste, instruído, admirado, cheio de esperanças e de futuro, Flávio recordava sempre a vida de pobreza que tivera em Minas, os sacrifícios que a boa mulher fizera por ele, as lágrimas que algumas vezes derramaram juntos quando chegava a faltar-lhes o pão. Não esquecera nunca o amor que aquela mulher lhe consagrara até à morte, e o zelo extremo com que o tratara. Em vão procurara na memória alguma palavra mais ríspida da parte de sua mãe: só conservava a lembrança de afagos e amores.

Apontando aqui estas duas causas permanentes da sua melancolia, não quero exagerar o caráter do rapaz. Pelo contrário, Flávio era um conversador ameno e variado. Sorria frequentemente, com ingenuidade, com satisfação. Gostava da discussão; a sua palavra era quase sempre animada; tinha entusiasmo na conversação. Havia nele uma feliz combinação de dois sentimentos, por modo que nem a melancolia o tornava enfadonho, nem a alegria, insuportável.

Profundamente observador, o discípulo do padre Vilela aprendeu cedo a ler estes livros que se chamam corações antes de os estimar e aplaudir. A sagacidade natural não estava ainda apurada pela experiência e pelo tempo. Aos dezoito anos julga-se mais pelo coração que pela reflexão. Nessa idade acontece sempre pintarmos um caráter com as cores dos nossos próprios afetos. Flávio não podia escapar absolutamente a esta lei comum, que uns dizem ser má e outros querem que seja excelente. Mas o moço ia-se pouco a pouco acostumando ao trato dos homens; a vida retirada que vivera desenvolveu-lhe o gosto da solidão. Quando começou a travar relações não contava uma só que lhe fosse imposta por nenhuma intimidade passada.

O padre Vilela, que tinha por si a experiência da vida, gostava de ver no rapaz esse caráter temperado de entusiasmo e reserva, de confiança e receio. Parecia ao padre, em cujo espírito já rolava a ideia de ver o discípulo servo da Igreja, que o resultado daquilo seria distanciar-se o rapaz do século e aproximar-se do sacerdócio.

Mas o padre Vilela não contava com esta crise necessária da juventude chamada "amor", que o rapaz não conhecia também a não ser pelos livros do seu gabinete. Quem sabe? Talvez esses livros lhe fizessem mal. Acostumado a ver o amor com a lente da fantasia, deleitando-se com as sensações poéticas, com as criações ideais, com a vida da imaginação, Flávio não tinha a menor ideia da cousa prática, tanto se absorvia na contemplação da cousa ideal.

Semelhante ao homem que só houvesse vivido no meio de figuras esculpidas em mármore, e que supusesse nos homens o original completo das cópias artísticas, Flávio povoava a sua imaginação de Ofélias e Marílias, ansiava por encontrá-las, amava-as antecipadamente, em solitárias chamas. Como era natural, o moço exigia mais do que poderia dar a natureza humana.

Foi então que se produziu a circunstância que lhe abriu mais depressa as portas da Igreja.

IV

Não é preciso dizer de que natureza foi a circunstância; os leitores já o terão adivinhado.

Flávio fazia poucas visitas e não conhecia muita gente. Ia de quando em quando a duas ou três casas de família onde o padre o apresentara e aí passava algumas horas que no dizer das pessoas da casa eram minutos. A hipérbole era sincera; Flávio possuía o dom de conversar bem, sem demasia nem parcimônia, equilibrando-se entre o que era fútil e o que era pesado.

Uma das casas a que ia era a de uma D. Margarida, viúva de um advogado que enriquecera no foro e deixara à família boa e larga riqueza. A viúva tinha duas filhas, uma de dezoito anos e outra de doze. A de doze era uma criança querendo ser moça, um lindo prefácio de mulher. Qual seria o livro? Flávio não fez nem respondeu a esta pergunta.

A que desde logo lhe chamou a atenção foi a mais velha, criatura que lhe aparecia com todos os encantos imaginados por ele. Chamava-se Laura; estava no pleno desenvolvimento da mocidade. Era diabolicamente bela; o termo será impróprio, mas exprime perfeitamente a verdade. Era alta, bem formada, mais imponente que delicada, mais soberana que graciosa. Adivinhava-se-lhe um caráter imperioso; era dessas mulheres que, emendando a natureza, que as não fez nascer no trono, fazem-se rainhas por si mesmas. Outras possuem a força da fraqueza; Laura não. Seus lábios não eram feitos para a súplica, nem seus olhos, para a meiguice. Lhe fosse preciso adquirir uma coroa - quem sabe? -, Laura seria lady Macbeth.

Semelhante caráter sem a beleza seria quase inofensivo. Laura era formosa, e sabia que o era. Sua beleza era dessas que arrastam logo à primeira vista. Possuía os mais belos olhos do mundo, grandes e negros, olhos que despediam luz e nadavam em fogo. Os cabelos, igualmente negros e abundantes, trazia-os penteados com arte especial, por modo que lhe dessem à cabeça uma espécie de diadema. Coroavam assim uma testa branca, larga, inteligente. A boca, se o desdém não existisse, inventava-o certamente. Toda a figura tinha uma expressão de desdenhosa gravidade.

Lembrara-se Flávio de ficar namorado daquela Semíramis burguesa. Como o seu coração era ainda virgem, caiu logo do primeiro golpe, e não tardou que a serenidade da sua vida se transformasse em tempestade desfeita. Tempestade é o verdadeiro nome, porque, à medida que os dias iam passando, o amor crescia, e crescia o receio de se ver repelido ou talvez menoscabado.

Flávio não tinha ânimo de se declarar à moça, e esta parecia estar longe de lhe adivinhar os sentimentos. Não estava longe; adivinhara-o logo. Mas o mais que o seu orgulho concedeu ao mísero amador foi perdoar-lhe a paixão. No rosto nunca se lhe traiu o que sentia. Quando Flávio olhava para ela, embebido e esquecido do resto do universo, Laura sabia tão bem disfarçar que nunca traía a sua sagacidade.

Vilela reparou na tristeza do rapaz; mas como ele não lhe dizia nada, teve a prudência de lhe não perguntar por isso. Imaginou que seriam amores; e como desejava vê-lo no sacerdócio, a descoberta não deixou de o aborrecer.

Havia porém uma cousa pior do que não ser sacerdote, era ser infeliz, ou ter empregado mal o fogo do seu coração. Vilela pensou nisto e mais aborrecido ainda ficou. Flávio andava cada vez mais melancólico e até lhe pareceu que emagrecia, donde o bom padre concluiu logicamente que devia ser paixão incurável, atentas as relações íntimas em que estão a magreza e o amor, na teoria romântica.

Vendo aquilo, e prevendo que o resultado podia ser funesto ao seu amigo, Vilela estabeleceu de si para si um prazo de quinze dias, findos os quais, se Flávio não lhe fizesse confissão voluntária do que sentia, ele lha arrancaria à força.

V

Daí a oito dias teve ele a ventura inefável de ouvir da própria boca de Flávio que queria seguir a carreira sacerdotal. O rapaz dizia aquilo com tristeza, mas resoluto. Vilela recebeu a notícia como eu tive já ocasião de dizer aos leitores, e tudo se preparou para que o neófito fizesse as primeiras provas.

Flávio resolvera adotar a vida eclesiástica depois que da própria Laura teve o desengano. Repare a leitora que eu não digo ouviu, mas teve. Flávio não ouviu nada. Laura não lhe falou quando ele timidamente lhe confessou que a adorava. Seria uma concessão. Laura não fazia concessões. Olhou para ele, ergueu a ponta do lábio e começou a contar as varetas do leque. Flávio insistiu; ela retirou-se com um ar tão frio e desdenhoso, mas sem um gesto, sem nada mais que indicasse a menor impressão, ainda que fora de ofensa. Era mais que despedi-lo, era esmagá-lo. Flávio curvou a cabeça e saiu.

Agora saltemos a pés juntos alguns pares de anos e vamos encontrar o padre Flávio no princípio da sua carreira, tendo justamente pregado o seu primeiro sermão. Vilela não cabia em si de contente; os cumprimentos que Flávio recebia era como se ele os recebesse; revia-se na sua obra; aplaudia-se no talento do rapaz.

- Minha opinião, Reverendo - dizia-lhe ele um dia ao almoço, - é que tu irás longe...

- À China? - perguntou sorrindo o outro.

- Longe é para cima - replicou Vilela -; quero dizer que hás de subir, e que ainda terei o gosto de te ver bispo. Não tens ambições?

- Uma.

- Qual?

- A de viver sossegado.

Esta disposição não agradava muito ao reverendo padre Vilela, que, sendo pessoalmente despido de ambições, desejava para o seu filho espiritual um elevado lugar na jerarquia da Igreja. Não quis porém combater o desprendimento do rapaz e limitou-se a dizer que não conhecia ninguém mais apto para ocupar uma sede episcopal.

No meio dos seus encômios foi interrompido por uma visita; era um rapaz quase da mesma idade do padre Flávio e seu antigo companheiro de estudos. Atualmente, tinha um emprego público, era alferes porta-bandeira de um batalhão da Guarda Nacional. A estas duas qualidades juntava a de ser filho de um negociante de grosso trato, o Sr. João Aires de Lima, de cujos sentimentos políticos dissentia radicalmente, visto que estivera no ano anterior com os revolucionários de 7 de abril, enquanto que o pai era muito inclinado aos restauradores.

Henrique Aires não fizera grande figura nos estudos; não fez sequer figura medíocre. Era doutor apenas, mas bom coração e rapaz de bons costumes. O pai quisera casá-lo com a filha de um negociante seu amigo; mas Henrique, tendo dado imprudentemente o coração à filha de um escrivão de agravos, opôs-se com todas as forças ao casamento. O pai, que era bom homem, não quis obrigar o coração do rapaz, e desistiu da empresa. Aconteceu então que a filha do negociante casou com outro e a filha do escrivão começou a dar corda a um segundo pretendente com quem veio a casar pouco tempo depois.

Estas particularidades são necessárias para explicar o grau de intimidade entre Henrique e Flávio. Foram eles naturalmente confidentes um do outro, e falaram (outrora) muito e muito dos seus amores e esperanças com a circunstância usual entre namorados que cada um deles era o ouvinte de si mesmo.

Os amores foram-se; a intimidade ficou. Apesar dela, desde que Flávio tomara ordens, e já antes, nunca mais Henrique lhe falara de Laura, conquanto suspeitasse que a lembrança da moça não se lhe apagara no coração. Adivinhara até que a repulsa da moça o atirara ao sacerdócio.

Henrique Aires foi recebido como um íntimo da casa. O padre Vilela gostava dele, principalmente porque era amigo de Flávio. Além disso, Henrique Aires era um rapaz alegre, e o padre Vilela gostava de rir.

Desta vez, entretanto, não vinha alegre o alferes. Trazia os olhos desvairados e a cara sombria. Era um rapaz bonito, elegantemente vestido à maneira do tempo. Contava um ano menos que o padre Flávio. Tinha o corpo muito direito, em parte porque a natureza o fizera assim, em parte porque andava, ainda à paisana, como se levasse a bandeira na mão.

Vilela e Flávio perceberam logo que o recém-chegado tinha alguma cousa que o preocupava; nenhum deles, entretanto, o interrogou. Trocaram-se algumas palavras friamente, até que Vilela, percebendo que Henrique Aires desejaria conversar com o amigo, deixou a mesa e saiu.

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