Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em novembro e dezembro de 1874 e em janeiro e fevereiro de 1875, assinado por J.J. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.
III
A causa de Adolfo estava condenada, e parece que ele ajudava o seu triste destino. Já vemos que Miloca aborrecia nele a sua não brilhante condição social, que era aliás um ponto de contato entre ambos, cousa que a moça não podia compreender. Adolfo, entretanto, além desse pecado original, tinha a mania singular de fazer discursos humanitários, e mais do que discursos, ações; perdeu-se de todo.
Miloca não era cruel; pelo contrário, tinha sentimentos caridosos; mas, como ela mesma disse um dia ao pai, nunca se deve dar esmola sem luvas de pelica, porque o contato da miséria não aumenta a grandeza da ação. Um dia, em frente da casa, caiu uma preta velha ao chão, abalroada por um tilbury; Adolfo, que ia a entrar, correu à infeliz, levantou-a nos braços e levou-a à botica da esquina, onde a deixou curada. Agradeceu ao céu o ter-lhe proporcionado o ensejo de uma bela ação diante de Miloca, que estava à janela com a família, e subiu alegremente as escadas. Dona Pulquéria abraçou o herói; Miloca mal lhe estendeu a ponta dos dedos.
Rodrigo e D. Pulquéria conheciam o caráter da moça e procuravam modificá-lo por todas as maneiras, lembrando-lhe que o nascimento dela não era tão brilhante que pudesse ostentar tamanho orgulho. A tentativa era sempre inútil. Duas causas havia para que ela não mudasse de sentimentos: a primeira era proveniente da natureza; a segunda, da educação. Rodrigo estremecia a filha, e buscou dar-lhe uma educação esmerada. Fê-la entrar como pensionista em um colégio, onde Miloca ficou em contato com as filhas das mais elevadas senhoras da capital. Afeiçoou-se a muitas delas, cujas famílias visitou desde a infância. O pai tinha orgulho em ver que a filha era assim tão festejada nos primeiros salões, onde aliás ele nunca passou de um intruso. Miloca bebeu assim um ar que não era precisamente o do armarinho da Cidade Nova.
Que vinha pois fazer o mísero Adolfo nesta galera? Não era assim o marido que a moça sonhava; a imaginação da orgulhosa dama aspirava a maiores alturas. Podia não exigir tudo quanto quisera ter, um príncipe ou um duque se os houvesse cá disponíveis; mas entre um príncipe e Adolfo a distância era enorme. Donde resultava que a moça não se limitava a um simples desdém; tinha ódio ao rapaz porque a seus olhos era grande afronta, não já nutrir esperanças, mas simplesmente amá-la.
Para completar esta notícia do caráter de Miloca, é mister dizer que ela sabia do amor de Adolfo muito antes que o pai e a tia tivessem conhecimento dele. Adolfo estava persuadido que a filha de Rodrigo nunca tinha reparado nele. Iludia-se. Miloca possuía essa qualidade excepcional de ver sem olhar. Percebeu que o rapaz gostava dela, quando o via na igreja ou em alguma partida em casa de amizade no mesmo bairro. Perceber isto foi condená-lo.
Ignorando todas estas cousas, Adolfo atribuía à sua má ventura o não ter ganho a menor polegada de terreno. Não ousava comunicar as suas impressões ao comerciante nem à cunhada, posto descobrisse que ambos eram favoráveis ao seu amor. Meditou longamente no caso, e resolveu dar um golpe decisivo.
Um ex-comerciante abastado da vizinhança casou uma filha, e convidou a família de Rodrigo para as bodas. Adolfo também recebeu convite e não deixou de comparecer, disposto a espreitar ali uma ocasião de falar a Miloca, o que não lhe fora possível nunca em casa dela. Para os amantes multidão quer dizer solidão. Não acontece o mesmo com os pretendentes. Mas Adolfo tinha um plano feito; alcançaria dançar com ela, e nessa ocasião soltaria a palavra decisiva. A fim de obter uma concessão que julgava difícil na noite do baile, pediu-lhe uma quadrilha, na véspera, em casa dela, em presença da tia e do pai. A moça concedeu-lha sem hesitação, e se o rapaz pudesse penetrar no espírito dela, não teria aplaudido, como fez, a sua resolução.
Miloca estava deslumbrante na sala do baile, e ofuscou completamente a noiva, objeto da festa. Se Adolfo estivesse nas boas graças dela, teria sentido legítimo orgulho ao ver a admiração que ela despertara em torno de si. Mas para um namorado repelido não há pior situação do que ver desejado um bem que lhe não pertence. A noite foi pois um suplício para o rapaz.
Afinal chegou a quadrilha concedida. Adolfo atravessou a sala trêmulo de comoção e palpitante de incerteza, e estendeu a mão a Miloca. A moça levantou-se com a graça do costume e acompanhou o par. Durante as primeiras figuras, Adolfo não ousou dizer palavra sobre cousa nenhuma. Ao ver porém que o tempo corria, e era necessário uma decisão, dirigiu-lhe algumas palavras banais como são as primeiras palavras de um homem pouco afeito a tais empresas.
Pela primeira vez Miloca encarou o namorado, e, longe do que se poderia supor, não havia em seu gesto a menor sombra de aborrecimento; pelo contrário, parecia animar o novel cavalheiro a mais positivo ataque.
Animado com esse introito, Adolfo foi direto ao coração do assunto.
- Talvez, D. Emília - disse ele -, talvez tenha notado que eu...
E parou.
- Que o senhor... o quê? - perguntou a moça, que parecia saborear a perplexidade do rapaz.
- Que eu sinto...
Nova interrupção.
Era chegada a Chaîne des dames. Miloca deixou o rapaz meditar nas dificuldades da sua posição.
"Sou um asno", dizia Adolfo consigo. "Por que razão me arriscarei a deixar para depois uma explicação que vai em tão bom caminho? Ela parece disposta..."
No primeiro intervalo reatou a conversação.
- Dir-lhe-ei tudo de uma vez... Amo-a.
Miloca fingiu-se admirada.
- A mim? - perguntou ela ingenuamente.
- Sim... atrevi-me a... Perdoa-me?
- Com uma condição.
- Qual?
- Ou antes, com duas condições. A primeira é que se há de esquecer de mim; a segunda é que não há de voltar lá a casa.
Adolfo olhou espantado para a moça e durante alguns segundos não achou resposta que lhe dar. Preparou-se para tudo, mas aquilo ia além dos seus cálculos. A única cousa que lhe pôde dizer foi esta pergunta:
- Fala sério?
Miloca fez um gesto de cólera, que reprimiu logo; depois sorriu e murmurou:
- Que se atreva a amar-me é muito, mas injuriar-me é demais!
- Injúria pede injúria - retorquiu Adolfo.
Miloca desta vez não olhou para ele. Voltou-se para o cavalheiro que ficava próximo e disse:
- Quer conduzir-me ao meu lugar?
Deu-lhe o braço e atravessou a sala, no meio do pasmo geral. Adolfo, humilhado, vendo-se alvo de todas as vistas, procurou esquivar-se. Dona Pulquéria não viu o que se passou; estava conversando com a dona da casa em uma saleta contígua; Rodrigo jogava nos fundos da casa.
Aquele misterioso lance teatral foi o assunto das palestras durante o resto da noite. Impossível foi porém saber a causa dele. O dono da casa, sabedor do acontecimento, pediu desculpa dele à filha de Rodrigo, pois julgava ter parte indireta nele pelo fato de haver convidado Adolfo. Miloca agradeceu a atenção, mas nada revelou do que se passara.
Nem o pai nem a tia souberam de nada; no dia seguinte porém recebeu Rodrigo uma longa carta de Adolfo relatando o sucesso da véspera e pedindo desculpa ao velho de ter dado causa a um escândalo. Nada ocultou do que se passara, mas absteve-se de moralizar a atitude da moça. Rodrigo conhecia o defeito da filha e não lhe foi difícil perceber que a causa primordial do acontecimento fora ela. Todavia não lhe disse nada. Dona Pulquéria porém foi menos discreta; na primeira ocasião que se lhe ofereceu, disse amargas verdades à sobrinha, que lhas ouviu sem replicar.
IV
Felizes aqueles cujos dias correm com a insipidez de uma crônica vulgar. Geralmente os dramas da vida humana são mais toleráveis no papel que na realidade.
Poucos meses depois da cena que deixamos relatada, a família de Miloca sofreu um grave revés pecuniário, Rodrigo perdeu o pouco que tinha, e não tardou que a este acontecimento sucedesse outro não menos sensível: a morte de D. Pulquéria. Reduzido à extrema pobreza e achacado de moléstias, Rodrigo viveu ainda alguns meses atribulado e aborrecido da vida.
Miloca mostrou nesses dias amargos uma grande força de ânimo, maior do que se podia esperar daquele espírito quimérico. Bem sabia ela que o seu futuro era negro e nenhuma esperança poderia vir animá-lo. Todavia, parecia completamente alheia a essa ordem de considerações.
Rodrigo faleceu repentinamente uma noite em que parecia começar a recobrar a saúde. Era o último golpe que vinha ferir a moça, e esse não o suportou ela com a mesma coragem até ali manifestada.
Uma família da vizinhança ofereceu-lhe asilo logo na noite do dia em que se enterrou o pai. Miloca aceitou o favor, disposta a dispensá-lo por qualquer maneira razoável e legítima.
Não tinha muito que escolher. Só uma carreira lhe estava aberta: a do professorado. A moça resolveu-se a ir ensinar em algum colégio. Custava-lhe isto ao orgulho, e era com certeza a morte de suas esperanças aristocráticas. Mas segundo ela disse a si mesma, era isso menos humilhante do que comer as sopas alheias. Verdade é que as sopas eram servidas em pratos modestos...
Nesse projeto estava - apesar de combatido pela família que tão afetuosamente lhe abrira as portas - quando apareceu em cena um anjo enviado do céu. Era uma de suas companheiras de colégio, casada de fresco, que vinha pedir-lhe o obséquio de ir morar com ela. Miloca recusou o pedido com alguma resolução; mas a amiga vinha disposta a esgotar todos os argumentos possíveis até vencer as repugnâncias de Miloca. Não lhe foi difícil; a altiva órfã cedeu e aceitou.
Leopoldina era o nome da amiga que lhe aparecera como um deus ex machina, acompanhada pelo marido, jovem deputado do Norte, governista inabalável e aspirante a ministro. Quem conversava com ele durante meia hora nutria logo algumas dúvidas sobre se os negócios do Estado ganhariam muito em que ele os dirigisse. Dúvida realmente frívola, que ainda não fechou a ninguém as avenidas do poder.
Leopoldina era o contraste de Miloca; tanto uma tinha de altiva, imperiosa e seca, quanto a outra, de dócil, singela e extremamente afável. E não era esta a única diferença. Miloca era sem dúvida uma moça distinta; mas era mister estar só. A sua distinção precisava não ser comparada com outra. Nesse terreno também Leopoldina lhe levava muita vantagem. Tinha uma distinção mais própria, mais natural, mais inconsciente. Onde porém Miloca lhe levava a melhor era nos dotes físicos, o que não quer dizer que Leopoldina não fosse bela.
Para ser exato devo dizer que a filha de Rodrigo não aceitou alegremente, nos primeiros dias, a hospitalidade de Leopoldina. Orgulhosa como era, doía-lhe a posição dependente em que se achava. Mas isso durou pouco, graças à extrema habilidade da amiga, que empregou todos os esforços para disfarçar a aspereza das circunstâncias, colocando-a na posição de pessoa de família.
Alcançara Miloca os seus desejos. Vivia numa sociedade bem diferente daquela em que vivera a família. Já não via todas as tardes o modesto boticário da esquina ir jogar o gamão com o pai; não suportava as histórias devotas de D. Pulquéria; não via à mesa uma velha doceira amiga de sua casa; nem parava à porta do armarinho quando voltava da missa nos domingos. Era muito outra a sociedade, era a única que ela ambicionava e compreendia. Aceitaram todos a posição em que Leopoldina tinha a amiga; muitas das moças que lá iam foram suas companheiras de colégio; tudo lhe correu fácil, tudo se lhe tornou brilhante.
Uma só cousa, porém, vinha de quando em quando escurecer o espírito de Miloca. Ficaria ela sempre naquela posição, que apesar de excelente e brilhante tinha a desvantagem de ser equívoca? Esta pergunta, cumpre dizê-lo, não lhe surgia no espírito por si mesma, mas como prelúdio de outra ideia, capital para ela. Por outras palavras, o que a agitava principalmente era o problema do casamento. Casar-se, mas casar-se bem, eis o fim e a preocupação de Miloca. Não faltava onde escolher. Iam à casa de Leopoldina muitos rapazes bonitos, elegantes, distintos, e não poucos ricos. Talvez Miloca ainda não sentisse amor verdadeiro por nenhum deles; mas essa circunstância era puramente secundária no sistema adotado por ela.
Parece que Leopoldina também pensara nisso, porque mais de uma vez tocara nesse assunto com a liberdade que lhe dava a afeição. Miloca respondia evasivamente, mas não repelia de todo a ideia de um consórcio feliz.
- Por ora - acrescentava ela -, ainda o meu coração não bateu; e o casamento sem amor é uma cousa terrível, penso eu; mas quando vier o amor, espero em Deus que serei feliz. Sê-lo-ei?
- Sê-lo-ás - respondeu comovida a amiga hospitaleira -. Nesse dia conta que eu te ajudarei.
Um beijo terminava estas confidências.
Infelizmente para Miloca, estes desejos pareciam longe da realização. Dos rapazes casadeiros nenhum contestava a beleza da moça; mas corria entre eles uma teoria de que a mais bela mulher deste mundo precisa de não vir com as mãos abanando.
Ao cabo de dois anos de inúteis esperanças, Miloca transigiu com a sua altivez, e trocou o papel de praça que pede assédio pelo de exército sitiador.
Um primo segundo de Leopoldina foi o seu primeiro objetivo. Era um jovem bacharel, formado poucos meses antes em São Paulo, rapaz inteligente, alegre e fraco. Os primeiros fogos das baterias de Miloca produziram efeito; sem ficar apaixonado de todo, começou a gostar da rapariga. Infelizmente para ela, coincidiu este ataque de frente com um ataque de flanco, e a praça foi tomada por uma rival mais feliz.
Não desanimou a moça. Dirigiu os seus tiros para outro ponto, desta vez não pegaram as bichas, o que obrigou a bela pretendente a lançar mão de terceiro recurso. Com mais ou menos felicidade, andou Miloca nesta campanha durante um ano, sem alcançar o seu máximo desejo.
A derrota não lhe quebrou o orgulho; antes lhe deu um toque de azedume e hipocondria, que a fez um tanto insuportável. Mais de uma vez pretendeu deixar a casa da amiga e ir professar em algum colégio. Mas Leopoldina resistia sempre a esses projetos, já mais veementes que ao princípio. O despeito parecia aconselhar à bela órfã o completo esquecimento de seus planos matrimoniais. Compreendia agora que, talvez pela mesma razão com que ela recusara o amor de Adolfo, recusavam-lhe agora o seu amor dela. A punição, dizia ela consigo, fora completa.
A imagem de Adolfo surgiu então em seu espírito atribulado e abatido. Não se arrependeu do que fizera; mas lamentou que Adolfo não estivesse em posição cabal de lhe realizar os seus sonhos e ambições.
"Se assim fosse", pensava Miloca, "eu seria hoje feliz, porque esse amava-me."
Tardias queixas eram aquelas. O tempo corria, e a moça com o seu orgulho se definhava na solidão povoada da sociedade a que aspirara desde os tempos da sua mediania.
V
Uma noite, estando no teatro, viu em um camarote fronteiro duas moças e dois rapazes; um dos rapazes era Adolfo. Miloca estremeceu; involuntariamente, não de amor, não de saudade, mas de inveja. Seria uma daquelas moças esposa dele? Ambas eram distintas, elegantes; ambas, formosas. Miloca perguntou a Leopoldina se conhecia os dois rapazes; o marido da amiga foi quem lhe respondeu:
- Só conheço um deles; o mais alto.
O mais alto era Adolfo.
- Parece-me que também o conheço - disse Miloca -, e foi por isso que lho perguntei. Não é um empregado do Tesouro?
- Talvez fosse - respondeu o deputado -; agora é um amável vadio.
- Como assim?
- Herdou do padrinho - explicou o deputado.
- Ah!
Leopoldina, que tinha assentado o binóculo para ver as moças, perguntou:
- Será casado com alguma daquelas moças?
- Não; é amigo da família - respondeu o deputado -; e parece que não está disposto a casar.
- Por quê? - aventurou Miloca.
- Dizem que teve um amor infeliz outrora.
Miloca estremeceu de alegria, e pôs o binóculo para o camarote de Adolfo. Este pareceu perceber que era objeto das indagações e conversas das três personagens, e já havia conhecido a antiga amada; todavia, disfarçou e conversou alegremente com as moças do seu camarote.
Depois de algum silêncio, disse Miloca:
- Parece que o senhor acredita em romances; pois há quem conserva assim um amor a ponto de não querer casar?
E como se se arrependesse desta generalidade, emendou:
- Nos homens é difícil encontrar tamanha constância às afeições passadas.
- Nem eu lhe disse que ele conservava essa afeição - observou o deputado -; esse amor infeliz do meu amigo Adolfo...
- É teu amigo? - perguntou Leopoldina.
- É - respondeu o marido. E continuou -: Esse amor infeliz do meu amigo Adolfo serviu para lhe dar uma triste filosofia a respeito de amores. Jurou não casar...
- E onde escreveu esse juramento?
- Não acredita que ele o cumpra? - perguntou sorrindo o marido de Leopoldina.
- Francamente, não - respondeu Miloca.
Dias depois levou o deputado à casa o seu amigo Adolfo e o apresentou às duas senhoras. Adolfo falou a Miloca como pessoa de seu conhecimento, mas nenhuma palavra ou gesto revelou aos donos da casa o sentimento que ele tivera outrora. A mesma Miloca compreendeu que tudo estava extinto no coração do rapaz; mas não era fácil reviver a chama apagada? Miloca contava consigo, e reuniu todas as suas forças para uma luta suprema.
Infelizmente era verdade o que dissera o marido de Leopoldina. Adolfo parecia ter mudado completamente. Já não era o rapaz afetuoso, e tímido de outro tempo; mostrava-se agora gelado em cousas do coração. Não só o passado estava extinto, como nem era possível criar-lhe nenhum presente. Miloca compreendeu isto no fim de alguns dias, e todavia não desanimou.
Animou-a nesse propósito Leopoldina, que percebeu a tendência da amiga para o rapaz sem todavia conhecer uma sílaba do passado que havia entre ambos. Miloca negou a princípio, mas conveio-lhe dizer tudo, e mais do que isso, não pôde resistir, porque a moça começava a amar deveras o rapaz.
- Não desanimes - lhe disse a amiga -; estou que hás de triunfar.
- Quem sabe? - murmurou Miloca.
Esta pergunta foi triste e desanimada. Era a primeira vez que ela amava, e isto lhe pareceu uma espécie de castigo que a Providência lhe infligia.
"Se ele me não corresponder", pensava Miloca, "sinto que serei a mais desgraçada de todas as mulheres."
Adolfo percebeu o que se passava no coração da moça, mas pensou que era menos sincero o afeto que ela nutria. Quem lhe pintou claramente a situação foi o marido de Leopoldina, a quem esta havia contado tudo, com a certeza talvez da indiscrição dele.
Se Adolfo ainda a amasse, seriam ambos felicíssimos; mas, sem o amor dele, que esperança teria a moça? Digamos a verdade toda; Adolfo era em toda a extensão da palavra um rapaz cínico, mas cobria o cinismo com uma capa de seda, que o fazia apenas indiferente; de maneira que se algum raio de esperança podia entrar no ânimo de Miloca bem depressa se lhe devia esvaecer.
E quem arrancará a esperança de um coração que ama? Miloca continuava a esperar, e de certo tempo em diante alguma cousa lhe fazia crer que a esperança não seria vã. Adolfo parecia começar a reparar nela, e a ter alguma simpatia. Estes sintomas foram crescendo a pouco e pouco, até que Miloca teve um dia certeza de que o dia da sua felicidade estava próximo. Contara com a sua admirável beleza, com os vivos sinais do seu afeto, com algum gérmen do passado não de todo extinto no coração de Adolfo. Um dia acordou confiada de que todas estas armas lhe haviam dado o triunfo.
Não tardou que começasse o período epistolar. Seria cousa fastidiosa reproduzir aqui as cartas que os dois namorados trocaram durante um mês. Qualquer das minhas leitoras (sem ofensa de ninguém) conhece mais ou menos o que se diz nesse gênero de literatura. Copiarei todavia dois trechos interessantes de ambos. Seja o primeiro de Adolfo:
...Como poderia crer que eu houvesse esquecido o passado? Doloroso foi ele para mim, mas ainda mais que doloroso, delicioso; porque o meu amor me sustentava naquele tempo, e eu era feliz, posto não fosse amado. A ninguém mais amei senão a ti; mas confesso que, até há pouco, o mesmo amor que te votei outrora já havia desaparecido. Tiveste o condão de reavivar uma chama já apagada. Fizeste um milagre, que eu tinha por impossível.
E confesso hoje, confesso sem hesitação, que tu vieste acordar um coração morto, e morto por ti mesma. Bem hajas tu! Teu, serei teu até à morte!...
A estas calorosas expressões, respondia Miloca com igual ardor. De uma de suas cartas, a quinta ou sexta, copio estas palavras:
...Obrigada, meu Adolfo! Tu és generoso, tu soubeste perdoar, porque soubeste amar outra vez aquela a quem devias ter ódio. Bem cruel fui eu em não conhecer a grandeza de tua alma! Hoje que te compreendo, choro lágrimas de sangue, mas ao mesmo tempo agradeço ao céu o ter-me dado a maior ventura desta vida, que é lograr a ventura que uma vez se repeliu... Se tu soubesses como eu te amo, escrava, pobre, mendiga, castigada por ti e desprezada por ti, amo-te, amar-te-ei sempre! etc., etc.
Numa situação como esta, o desenlace parecia claro; nada obstava que se casassem dali a um mês. Miloca era maior e não tinha nenhum parente. Adolfo era livre. Tal era a solução prevista por Leopoldina e seu marido; tal era a de Miloca.
Mas quem sabe o que nos guarda o futuro? E a que desvairamentos não arrasta o amor quando os corações são fracos? Um dia de manhã Leopoldina achou-se só; Miloca tinha desaparecido. Como, e por quê, e de que modo? Ninguém o soube. Com quem desaparecera, soube-se logo que fora Adolfo, que não voltou à casa do deputado.
Deixando-se arrastar pelo rapaz a quem amava, Miloca apenas consultou o seu coração; quanto a Adolfo, nenhuma ideia de vingança o dominara; cedeu a sugestões de libertinagem.
Durante cerca de um ano, ninguém soube dos dois fugitivos. A princípio soube-se que estavam na Tijuca; depois desapareceram dali sem que Leopoldina alcançasse notícia deles.
Um ano depois do acontecimento narrado acima, reapareceu na Corte o fugitivo Adolfo. Correu logo que vinha acompanhado da interessante Miloca. Casados? Não; e esse passo dado no caminho do erro foi funesto à ambiciosa moça. Que outra cousa podia ser? O mal engendra o mal.
Adolfo parecia estar aborrecido da aventura; e todavia Miloca ainda o amava como no princípio. Iludiu-se a respeito dele, nesses últimos tempos, mas afinal compreendeu que entre a atual situação e o fervor dos primeiros dias havia um abismo. Ambos arrastaram a cadeia durante um ano mais, até que Adolfo embarcou para Europa sem dar notícia de si à infeliz moça.
Miloca desapareceu tempos depois. Uns dizem que se fora à cata de novas aventuras; outros, que se matara. E havia razão para ambas estas versões. Se morreu, a terra lhe seja leve!