Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em novembro e dezembro de 1874 e em janeiro e fevereiro de 1875, assinado por J.J. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.
Capítulo primeiro
Dona Pulquéria da Assunção era uma senhora de seus sessenta anos, arguta, devota, gorda, paciente, crônica viva, catecismo ambulante. Era viúva de um capitão de cavalaria que morrera em Monte Caseros deixando-lhe uma escassa pensão e a boa vontade de um irmão mais moço, que possuía alguma cousa. Rodrigo era o nome desse único parente a quem o capitão Lúcio confiara D. Pulquéria na ocasião de partir para o rio da Prata. Era bom homem, generoso e franco; D. Pulquéria não sentiu muito por esse lado a morte do marido.
Infelizmente, o cunhado não era tão remediado como parecia à viúva, e além disso não tinha meios nem tino para fazer crescer os poucos cabedais que ajuntara durante longos anos no negócio de armarinho. O estabelecimento de Rodrigo, excelente e afreguesado em outros tempos, não podia competir com os muitos estabelecimentos modernos que outros comerciantes abriram no mesmo bairro. Rodrigo vendia de vez em quando algum rapé, lenços de chita, agulhas e linhas, e outras cousas assim, sem poder oferecer ao freguês outros gêneros que aquele ramo de negócio havia adotado. Quem lá ia procurar um corte de vestido, uma camisa feita, uma bolsa, um sabonete, uns brincos de vidrilho, tinha o desgosto de voltar com as mãos vazias. Rodrigo estava atrás do seu tempo; a roda começou a desandar-lhe.
Além deste inconveniente, Rodrigo era generoso e franco, como disse acima, de maneira que, se por um lado não lhe crescia a bolsa, por outro ele próprio a desfalcava.
Dona Pulquéria resolveu ir viver com o cunhado e foi uma felicidade para este, que tinha uma filha e precisava de lhe dar uma mãe. Ninguém melhor para esse papel do que a viúva do capitão, que, além de parenta da menina, era um símbolo de ordem e austeridade.
Miloca tinha dezessete anos. Até os quinze ninguém diria que viria a ser bela; mas, dessa idade em diante enfeitou muito, como dizia D. Pulquéria. Era a mais formosa cara do bairro e a mais elegante figura da Cidade Nova. Não tinha porém a viveza das moças da sua idade; era séria e empertigada demais. Quando saía olhava para diante de si sem volver a cabeça para nenhum lado nem se preocupar com os olhares de admiração que os rapazes lhe deitavam. Parecia ignorar ou desdenhar a admiração dos outros.
Esta circunstância, não menos que a beleza, tinha dado à filha de Rodrigo uma celebridade real. Os rapazes chamavam-lhe princesa; as moças puseram-lhe a alcunha de pescoço de pau. A inveja das outras explorou o mais que pôde o orgulho de Miloca; mas se ela desdenhava a admiração, parecia também desdenhar a inveja.
Dona Pulquéria reconhecia na sobrinha essa altivez singular e procurava persuadi-la de que a modéstia é a primeira virtude de uma moça; perdoava-lhe porém o defeito, por ver que em tudo mais a sobrinha era um modelo.
Havia já cinco anos que a viúva do capitão Lúcio morava com a família do cunhado, quando este foi procurado por um rapaz desconhecido que lhe pediu meia hora de conversa particular.
- Chamo-me Adolfo P*** - disse o moço quando se achou a sós com Rodrigo -, e sou empregado no Tesouro. Pode informar-se do meu comportamento. Quanto ao meu caráter, espero que com o tempo o conhecerá. Pretendo...
Aqui estacou o rapaz. Rodrigo, que era homem sagaz, percebeu qual era a pretensão de Adolfo. Não o auxiliou entretanto; preferiu saborear-lhe a perplexidade.
- Pretendo - repetiu Adolfo ao cabo de alguns segundos de silêncio -, pretendo... ouso pedir-lhe a mão de sua filha.
Rodrigo ficou alguns instantes calado. Adolfo continuou:
- Repito; pode informar-se a meu respeito...
- Como pai, reconheço que me cumpre velar pelo futuro de minha filha - disse Rodrigo -, mas a primeira condição de um casamento é a afeição recíproca. Tem autorização dela para...?
- Nunca nos falamos - disse Adolfo.
- Então... escrevem-se? - perguntou Rodrigo.
- Nem isso. Duvido até que ela me conheça.
Rodrigo deu um salto na cadeira.
- Mas então - disse ele -, que vem o senhor fazer a minha casa?
- Eu lhe digo - respondeu o pretendente -. Amo sua filha apaixonadamente, e não há dia em que não procure vê-la; infelizmente, ela parece ignorar que eu existo no mundo. Até hoje, nem por distração, recebi um olhar dela. Longe de me desagradar esta indiferença, dou-me por feliz em achar tamanha discrição numa idade em que geralmente as moças gostam de ser admiradas e requestadas. Sei que não sou amado, mas não acho impossível vir a sê-lo. Seria porém impossível se continuasse a situação em que ambos nos achamos. Como saberia ela que eu a adoro, se nem suspeita que eu existo? Depois de refletir muito neste assunto, tive a ideia de vir pedir-lhe a mão de sua filha, e no caso de que o senhor não me achasse indigno dela, pediria para ser apresentado à sua família, caso este em que eu poderia saber se realmente...
- Paremos aqui - interrompeu Rodrigo -. O senhor pede-me uma cousa singular; pelo menos não conheço semelhantes usos. Estimaria muito que o senhor fosse feliz, mas não me presto a isso... por semelhante modo.
Adolfo insistiu no pedido; mas o pai de Miloca cortou a conversa levantando-se e estendendo a mão ao pretendente.
- Não lhe quero mal - disse ele -; faça-se amado e volte. Nada mais lhe concedo.
Adolfo saiu de cabeça baixa.
Nesse mesmo dia procurou Rodrigo sondar o espírito da filha, a fim de saber se ela, ao contrário do que parecia a Adolfo, tinha dado fé do rapaz. Pareceu-lhe que não.
"Tanto pior para ele", disse Rodrigo consigo.
No domingo seguinte estava ele à janela com a cunhada, quando viu passar Adolfo, que lhe tirou o chapéu.
- Quem é aquele moço? - perguntou D. Pulquéria.
Um leve sorriso foi a resposta de Rodrigo - quanto bastou para aguçar a curiosidade de D. Pulquéria.
- Você ri-se - disse ela -. Que mistério é esse?
- Mistério nenhum - disse Rodrigo.
Insistiu a velha; e o cunhado não hesitou em lhe contar a conversa e o pedido do rapaz, acrescentando que, na sua opinião, Adolfo era um palerma.
- E por quê? - disse D. Pulquéria.
- Porque a um rapaz como ele não faltam meios de se fazer conhecido da dama de seus pensamentos. Eu vendo muito papel bordado e muita tinta azul, e onde a palavra não chega, chega uma carta.
- Não faltava mais nada! - exclamou D. Pulquéria -. Mandar cartas à rapariga e transtornar-lhe a cabeça... Seu irmão nunca se atreveu a tanto comigo...
- Meu irmão era um maricas em tempo de paz - observou Rodrigo sorvendo uma pitada.
Dona Pulquéria protestou energicamente contra a opinião do cunhado, e este foi obrigado a confessar que o irmão era pelo menos um homem prudente. Passada essa questão incidente, voltou D. Pulquéria ao assunto principal e condenou a resposta que Rodrigo dera a Adolfo, dizendo que era talvez um excelente marido para Miloca.
- Miloca - acrescentou a velha - é uma rapariga muito metida consigo. Pode ser que não ache casamento tão cedo, e nós não havemos de viver sempre. Quer você que ela aí fique sem proteção no mundo?
- Não, decerto - retorquiu Rodrigo -, mas que devia eu fazer?
- O que devia fazer era informar-se do rapaz, e se lhe parecesse digno dela, apresentá-lo cá. Eu aqui estou para velar por ela.
Dona Pulquéria desenvolveu este tema com a autoridade de uma senhora convencida; Rodrigo não deixou de lhe achar alguma razão.
- Pois bem - disse ele -, eu indagarei do procedimento do rapaz e, se vir que merece, cá o trago... Mas isso é impossível, agora reparo; não acho bonito, nem decente que eu vá agora buscá-lo; parecerá que lhe meto a rapariga à cara.
- Tem razão - concordou a cunhada -. E a culpa da dificuldade é toda sua. Em suma, é bom indagar; depois veremos o que se há de fazer.
As informações foram excelentes. Adolfo gozava de excelente reputação; era econômico, morigerado, laborioso, a pérola da repartição, o beijinho dos superiores. Nem com uma lanterna se encontraria marido daquela qualidade, tão à mão.
- Bem me dizia o coração - ponderou D. Pulquéria - que este rapaz era cá enviado pela Providência Divina. E você estragou tudo. Mas Deus é grande; esperemos que ele nos favoreça.
II
Não confiava debalde na Providência Divina a Sra. D. Pulquéria da Assunção. Cinco dias não eram passados quando um acontecimento desastroso veio atar as relações entre Adolfo e a família de Miloca.
Rodrigo era um dos mais extremos partidários da escola romântico-estragada. Ia ver algum drama de senso comum só por comprazer à família. Mas, sempre que podia assistir a um daqueles matadouros literários tão em moda há vinte anos - e ainda hoje -, vingava-se da condescendência a que o obrigava às vezes o amor dos seus. Estava então fazendo bulha um drama em seis ou oito quadros e outras tantas mortes, obra que o público aplaudia com delírio. Rodrigo tinha ido ver o drama, e viera para casa entusiasmadíssimo, a tal ponto que D. Pulquéria também se entusiasmou e ficou assentado que iriam no dia seguinte ao teatro.
Miloca tentou impedir a resolução, mas não teve força para o conseguir. De tarde caiu sobre a cidade uma daquelas trovoadas de que o nosso clima vai perdendo a tradição, e Rodrigo, que em tempo seco preferia andar de carro, com mais razão desta vez mandou vir um e lá foi a família ver a peça da moda.
Não nos interessa saber que impressões trouxeram de lá as duas senhoras; ambas começaram a dormir apenas entraram no carro e, se em Miloca era talvez aborrecimento, em D. Pulquéria era evidentemente cansaço. A boa velha já não era para dramas tão compridos nem paixões tão fortes. Encostou a cabeça e começou a ressonar.
Rodrigo ficou reduzido a um completo monólogo. Elogiava ele o drama, soltava exclamações, interrogava inutilmente as senhoras, e parecia engolfado na ideia de tudo que vira quando sentiu que o carro descambava docemente para o lado esquerdo. O cocheiro passara a casa e dera uma volta com o fim de chegar mais à porta; nessa ocasião as rodas da frente ficaram debaixo e isto produziu a queda suave do veículo.
Os três passageiros deram um grito, que foi o prelúdio de muitos outros gritos, principalmente de D. Pulquéria, que misturava atrapalhadamente preces e pragas. Felizmente havia na vizinhança um baile, e os cocheiros de outros carros acudiram depressa para impedir que os burros disparassem. Esta providência era de todo ponto inútil porque os burros, em cujo ânimo parece que também influíra o drama, aproveitaram a queda para dormir completamente.
O cocheiro saltou no chão e tratou de salvar os náufragos; mas já encontrou junto da portinhola que ficara voltada para cima um rapaz desconhecido, que parecia ter a mesma ideia.
Dizer-lhes que esse rapaz era Adolfo seria supor que os leitores nunca leram romances. Adolfo não passara por acaso; estava ali havia muito aguardando a volta de Miloca para ter a satisfação de a ver de longe. Quis a fortuna dele que houvesse desastre do carro. Levado por um duplo sentimento de humanidade e de egoísmo, o bom rapaz atirou-se ao veículo e começou a pescar as vítimas.
A primeira pessoa que saiu foi D. Pulquéria, que apenas se achou sã e salva, deu graças a Nossa Senhora e descompôs em termos brandos o cocheiro. Enquanto ela falava, estendia Adolfo a mão para dentro do carro, para tirar Miloca. A moça estendeu-lhe a mão, e o rapaz estremeceu. Daí a dois minutos saía ela do carro, e Adolfo tirava a terceira vítima, que gemia com a dor de uma ferida no nariz. Miloca apenas teve uma contusão no rosto. Dona Pulquéria, parece que por ser gorda, ofereceu mais resistência ao choque.
Rodrigo estancava o sangue com o lenço; Miloca entrara no corredor da casa, o cocheiro tratava de levantar o carro ajudado por alguns colegas, quando D. Pulquéria, que já durante alguns minutos tinha os olhos pregados em Adolfo, exclamou:
- Foi o senhor quem nos salvou! Ó mano Rodrigo, aqui está a pessoa que nos salvou... Olhe!
- Mas não me salvou o nariz! - objetou Rodrigo com mau humor -. Pois quê! É o senhor! - continuou ele aproximando-se do rapaz.
- É verdade - respondeu modestamente Adolfo.
Rodrigo estendeu-lhe a mão.
- Oh! Fico-lhe muito obrigado!
- Devemos-lhe a vida - observou Dona Pulquéria -, e creia que lhe seremos eternamente gratos. Quer descansar?
- Obrigado, minha senhora.
- Mas ao menos prometa que há de vir à nossa casa - disse D. Pulquéria.
- Se me permitem essa honra...
- Não permitimos, exigimos - disse Rodrigo.
- O meu serviço não vale nada - respondeu Adolfo -; fiz o que faria outra qualquer pessoa. Todavia, se me permite, virei saber da saúde do senhor...
- Da saúde do meu nariz - emendou galhofeiramente Rodrigo -; venha que nos dará grande prazer. Deixe-me apresentá-lo a minha filha...
Era tarde. Miloca, menos grata que os dois velhos, ou mais necessitada de descanso que eles, tinha subido havia já cinco minutos.
Adolfo despediu-se de Rodrigo e de D. Pulquéria e foi esperar na esquina a passagem do carro. Chamou o cocheiro e deu-lhe uma nota de cinco mil-réis.
- Aqui está o que você perdeu quando o carro tombou.
- Eu? - perguntou o cocheiro que sabia não ter um vintém na algibeira.
- É verdade - disse Adolfo.
E sem mais explicações foi andando.
O cocheiro era sagaz como bom cocheiro que era. Sorriu e guardou o dinheiro no bolso.
Adolfo não era tão pouco fino que fosse logo apresentar-se em casa de Rodrigo. Esperou quarenta e oito horas antes que desse sinal de si. E não foi à casa da família, mas à loja de Rodrigo, que já lá estava com um pequeno emplastro no nariz. Rodrigo agradeceu outra vez o serviço que lhe prestara assim como à sua família na noite do desastre e procurou estabelecer desde logo uma salutar familiaridade.
- Não sabe - lhe disse ele quando o rapaz se dispunha a sair -, não sabe como minha cunhada ficou morrendo pelo senhor...
- Parece ser uma excelente senhora - disse Adolfo.
- É uma pérola - respondeu Rodrigo -. E se quer que lhe fale franco, eu estou sendo infiel à promessa que lhe fiz.
- Como assim?
- Prometi a minha cunhada que o levaria lá em casa apenas o encontrasse, e separo-me do senhor sem desempenhar a minha palavra.
Adolfo curvou levemente a cabeça.
- Muito agradeço essa prova de bondade - disse ele - , e sinto realmente não poder corresponder ao desejo de sua cunhada. Estou pronto porém a lá ir apresentar-lhe os meus respeitos no dia e hora que me designar.
- Quer que lhe diga uma cousa? -disse alegremente o comerciante -. Eu não sou homem de etiqueta; sou cá do povo. Simpatizo com o senhor, e sei a simpatia que minha cunhada lhe tem. Faça uma cousa: venha jantar conosco domingo.
Adolfo não pôde conter a sua alegria. Evidentemente não contava com tamanha maré de felicidade. Agradeceu e aceitou o convite de Rodrigo e saiu.
No domingo seguinte, apresentou-se Adolfo em casa do comerciante. Ia de ponto em branco, sem que esta expressão se deva entender no sentido da alta elegância fluminense. Adolfo era pobre e vestia com apuro relativamente à sua classe. Estava longe porém do rigor e da opulência aristocrática.
Dona Pulquéria recebeu o pretendente com aquelas carícias que as velhas de bom coração costumam ter. Rodrigo desfez-se em solícitos cumprimentos. Só Miloca parecia indiferente. Estendeu-lhe a ponta dos dedos, e nem olhou para ele enquanto o mísero namorado murmurou algumas palavras relativas ao desastre. O introito foi mau. Dona Pulquéria percebeu isso, e tratou de animar o rapaz, falando-lhe com animada familiaridade.
Nunca a filha de Rodrigo parecera tão formosa aos olhos de Adolfo. A mesma severidade lhe dava um ar distinto e realçava a incomparável beleza das suas feições. Mortificava-o, é verdade, a indiferença; mas podia ele esperar mais alguma cousa logo da primeira vez?
Miloca tocou piano a convite do pai. Era excelente pianista, e entusiasmou deveras o pretendente, que não pôde disfarçar a sua impressão e murmurou um respeitoso cumprimento. Mas a moça limitou-se a um gesto de cabeça, acompanhado de um olhar que parecia dizer: "O senhor entende disto?".
Durante o jantar, a velha e o cunhado fizeram galhardamente as honras da casa. Adolfo ia perdendo a pouco e pouco as maneiras cerimoniosas, conquanto a atitude de Miloca lhe acanhasse o espírito. Era inteligente, polido e galhofeiro; a boa vontade dos velhos e as qualidades reais dele venceram em pouco tempo grande caminho. No fim do jantar era um conhecido velho.
- Tenho uma ideia - disse Rodrigo quando chegaram à sala -. Vamos dar um passeio?
A ideia foi aceita por todos, exceto por Miloca, que declarou estar incomodada, pelo quê a ideia ficou sem execução.
Adolfo saiu de lá mal impressionado; e teria desistido da empresa, se o amor não fosse engenhoso em derrubar imaginariamente todas as dificuldades deste mundo. Continuou a frequentar a casa de Rodrigo, onde era recebido com verdadeira satisfação, menos por Miloca, que parecia cada vez mais indiferente ao namorado.
Vendo que a situação do rapaz não melhorava, e parecendo-lhe que a sobrinha não acharia melhor marido do que ele, interveio D. Pulquéria, não por meio da autoridade, mas com as armas dóceis da persuasão.
- Acho singular, Miloca, a maneira por que tratas o Sr. Adolfo.
- De que maneira o trato? - perguntou a moça mordendo os beiços.
- Secamente. E não compreendo isto porque ele é um excelente moço, muito bem educado, e além disso já nos prestou um serviço em ocasião séria.
- Tudo isso é verdade - respondeu Miloca -, mas eu não sei como quer que o trate. Meu modo é esse. Não posso afetar o que não sinto; e a sinceridade, creio que é uma virtude.
- É também a virtude do Sr. Adolfo - observou D. Pulquéria sem parecer abalada com a sequidão da sobrinha -; devias ter reparado que é um moço muito sincero, e eu...
Aqui parou D. Pulquéria por um artifício que lhe pareceu excelente: esperou que a curiosidade de Miloca lhe pedisse o resto. Mas a sobrinha parecia completamente ausente dali, e não deu mostras de querer saber o resto do período.
Dona Pulquéria fez um gesto de despeito, e não disse palavra, enquanto Miloca folheava os jornais em todos os sentidos.
- Não acho casa - disse ela depois de algum tempo.
- Casa? - perguntou D. Pulquéria admirada.
- É verdade, minha tia - disse Miloca sorrindo -, eu pedi a papai para que nos mudássemos daqui. Acho isto muito feio: não faria mal que morássemos em algum bairro mais bonito. Papai disse que sim, e eu ando a ler os anúncios...
- Ainda agora sei disso - disse D. Pulquéria.
- Casas, aparecem muitas - continuou a moça -, mas as ruas não prestam. Se fosse no Catete...
- Estás douda? - perguntou D. Pulquéria -. Lá as casas são mais caras do que aqui, e além disso transtornaria o negócio de teu pai. Admira como ele consente em semelhante cousa!
Miloca pareceu não atender às objeções da tia. Esta, que era sagaz, e vivia com a sobrinha havia muito tempo, atinava com a razão do recente capricho. Levantou-se e pôs a mão na cabeça da moça.
- Miloca, por que hás de ser assim?
- Assim como?
- Por que hás de olhar tanto para cima?
- Se titia está de pé - respondeu maliciosamente a moça -, eu hei de por força olhar para cima.
Dona Pulquéria achou graça à resposta evasiva que a sobrinha lhe deu e não pôde reter um sorriso.
- Tonta! - lhe disse a boa velha.
E acrescentou:
- Tenho pensado muito em ti.
- Em mim? - perguntou ingenuamente Miloca.
- Sim; nunca pensaste no casamento?
- Nunca.
- E se aparecesse um noivo digno de ti?
- Digno de mim? Conforme; se eu o amasse...
- O amor vem com o tempo. Há bem perto de nós alguém que te ama, um moço digno de toda a estima, laborioso, grave, um marido como não há muitos.
Miloca desatou a rir.
- E titia viu isso primeiro que eu? - perguntou ela -. Quem é esse achado?
- Não adivinhas?
- Não posso adivinhar.
- O Adolfo - declarou D. Pulquéria depois de um minuto de hesitação.
Miloca franziu o sobrolho; depois deu uma nova risada.
- De que te ris?
- Acho engraçado. Com que então o Sr. Adolfo dignou-se olhar para mim? Não tinha percebido; não podia esperar tamanha felicidade. Infelizmente, não o amo... e por mais digno que seja o noivo, se eu o não amar vale para mim o mesmo que um vendedor de fósforos.
- Miloca - disse a velha contendo a indignação que lhe causavam estas palavras da sobrinha -, o que acabas de dizer não é bonito, e eu...
- Perdão, titia - interrompeu Miloca -, não se dê por ofendida; respondia gracejando a uma notícia que também me pareceu gracejo. A verdade é que eu não desejo casar-me. Quando vier a minha hora, saberei tratar seriamente o noivo que o céu me destinar. Creio porém que não há de ser o Sr. Adolfo, um pé-rapado...
Aqui a boa velha cravou um olhar de indignação na sobrinha, e saiu. Miloca levantou os ombros e foi tocar umas variações de Thalberg.