Conto

Longe dos Olhos

1876
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em março, abril e maio de 1876, assinado por Machado de Assis. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

Capítulo primeiro

Na verdade, era pena que uma moça tão prendada de qualidades morais e físicas, como a filha do desembargador, nenhum sentimento inspirasse ao bacharel Aguiar. Mas não a lastime a leitora, porque o bacharel Aguiar nada dizia ao coração de Serafina, apesar dos seus talentos, da rara elegância das suas maneiras, de todos quantos dotes costumam adornar um herói de romance.

E não é romance isto, senão história verídica e real, pelo quê, vai esta narrativa com as exíguas proporções de uma notícia, sem enfeites de estilo nem recheio de reflexões. O caso conto como o caso foi.

Sabido que os dois se não amavam nem pendiam para lá, convém saber mais que o gosto, o plano e não sei se também o interesse dos pais é que eles se amassem e casassem. Os pais punham uma cousa, e Deus dispunha outra. O comendador Aguiar, pai do bacharel, insistia ainda mais no casamento, pelo desejo que tinha de o meter na política, o que lhe parecia fácil desde que o filho se tornasse genro do desembargador, membro ativíssimo de um dos partidos e por agora deputado à Assembleia Geral. O desembargador pela sua parte achava que lhe não fazia mal nenhum a filha participar da pingue herança que devia receber o filho do comendador, por morte deste.

Pena era que os dois jovens, esperanças de seus pais, derrubassem todos estes planos olhando um para o outro com a máxima indiferença. As famílias visitavam-se frequentemente, as reuniões e as festas sucediam-se, mas nem Aguiar nem Serafina pareciam dar um passo para o outro. Tão grave caso exigia pronto remédio, e foi o comendador quem tomou a resolução de lho dar sondando o espírito do bacharel.

- João - disse o velho pai certa noite de domingo, depois do chá, achando-se com o filho a sós no gabinete -. Acaso nunca pensaste em ser homem político?

- Oh! Nunca! - respondeu o bacharel espantado com a pergunta-. Por que razão pensaria eu na política?

- Pela mesma razão por que outros pensam...

- Mas eu não tenho vocação.

- A vocação faz-se.

João sorriu.

O pai continuou.

- Não te faço esta pergunta à toa. Já houve quem me perguntasse a mesma cousa a teu respeito, eu não tive que responder porque a falar verdade as razões que me davam eram de peso.

- Quais eram?

- Diziam-me que tu andavas em colóquios e conferências com o desembargador.

- Eu? Mas naturalmente converso com ele; é pessoa da nossa amizade.

- Foi o que eu disse. A pessoa pareceu convencer-se da razão que eu lhe dava, e então imaginou outra cousa...

O bacharel arregalou os olhos à espera de ouvir outra cousa, enquanto o comendador acendia um charuto.

- Imaginou então - continuou o comendador puxando uma fumaça - que tu andavas... quero dizer... que pretendias... em suma, um namoro!

- Um namoro!

- É verdade.

- Com o desembargador?

- Velhaco! Com a filha.

João Aguiar deu uma gargalhada. O pai pareceu rir também, mas reparando bem não era um riso, era uma careta.

Depois de um silêncio:

- Mas não vejo que houvesse alguma cousa de admirar - disse o comendador -; tem-se visto namorar muito rapaz e muita moça. Tu estás na idade do casamento, ela também; nossas famílias visitam-se com frequência; vocês falam-se com intimidade. Que admira que um estranho supusesse alguma cousa?

- Tem razão; mas não é verdade.

- Pois tanto melhor... ou tanto pior.

- Pior?

- Maganão! - disse o velho pai afetando um ar galhofeiro -. Parece-te que a moça é algum peixe podre? Pela minha parte, entre as moças com que temos relações de família, nenhuma acho que se lhe compare.

- Oh!

- Oh! Quê?

- Protesto.

- Protestas? Achas então que ela...

- Acho que é muito formosa e prendada, mas não acho que seja a mais formosa e prendada de todas as que conhecemos...

- Mostra-me alguma...

- Ora, há tantas!

- Mostra-me uma.

- A Cecília, por exemplo, a Cecília Rodrigues, para o meu gosto é muito mais bonita que a filha do desembargador.

- Não digas isso; uma lambisgoia!

- Meu pai! - disse João Aguiar com um tom de ressentimento que fez pasmar o comendador.

- Que é? - perguntou este.

João Aguiar não respondeu. O comendador arrugou a testa e interrogou o rosto mudo do filho. Não leu, mas adivinhou alguma cousa desastrosa; desastrosa, entenda-se, para os seus cálculos cônjugo-políticos ou político-conjugais, como melhor nome haja.

- Dar-se-á caso que... - começou a dizer o comendador.

- Que eu a namore? - interrompeu galhofeiramente o filho.

- Não era isso o que te ia perguntar - acudiu o comendador (que aliás não ia perguntar outra cousa) -, mas visto que tocaste nesse ponto, não era mau que me dissesses...

- A verdade?

- A singela verdade.

- Gosto dela, ela gosta de mim, e aproveito esta ocasião, meu pai, para...

- Para nada, João!

O bacharel fez um gesto de espanto.

- Casar, não é? - perguntou o comendador -. Mas tu não vês a impossibilidade de semelhante cousa? Impossível, não digo que seja; tudo pode acontecer neste mundo, se a natureza o pede. Mas a sociedade tem suas leis que não devemos violar, e segundo elas esse casamento é impossível.

- Impossível!

- Tu levas-lhe em dote os meus bens, a tua carta de bacharel e um princípio de carreira. Que te traz ela? Nem sequer essa beleza que só tu lhe vês. Demais, é isto, é o importante, não se dizem boas cousas daquela família.

- Calúnias!

- Pode ser, mas calúnias que correm e se acreditam; e visto que tu não podes fazer na véspera do casamento um manifesto aos povos desmentindo o que se diz e provando que nada é verdade, segue-se que as calúnias triunfarão.

Era a primeira vez que o bacharel conversava com o pai a respeito daquele grave ponto do seu coração. Aturdido com as objeções dele, não achou logo que responder e todo se limitou a interrompê-lo com um ou outro monossílabo. O comendador continuou no mesmo tom e concluiu dizendo que esperava dele não lhe desse um grave desgosto no fim da vida.

- Por que te não levou a fantasia a filha do desembargador ou de outro nas mesmas condições? A Cecília, não, nunca será minha nora. Pode casar contigo, é verdade, mas então não serás meu filho.

João Aguiar não achou que responder ao pai. Ainda que achasse, não o poderia fazer porque quando deu acordo de si ele estava longe.

O bacharel foi para o seu quarto.

II

Entrando no quarto, João Aguiar fez alguns gestos de enfado e zanga e de si para si prometeu que, embora não agradasse ao pai, havia de casar com a formosa Cecília, cujo amor era para ele já uma necessidade da vida. O pobre rapaz tão depressa fez este protesto como entrou a ficar frio com a ideia de uma luta, que se lhe afigurava odiosa para ele e para o pai, em todo o caso triste para ambos. As palavras deste relativamente à família da namorada fizeram-lhe grave impressão no espírito; mas ele concluiu que, ainda sendo verdadeira a murmuração, nada tinha com isso a formosa Cecília, cujas qualidades morais estavam acima de todo o elogio.

A noite correu assim nestas e noutras reflexões até que o bacharel dormiu e na manhã seguinte alguma cousa lhe havia dissipado as apreensões da véspera.

- Tudo se pode vencer - disse ele -; o que é preciso é ser constante.

O comendador, porém, tinha dado o passo mais difícil, que era falar no assunto ao filho; vencido o natural acanhamento que resultava da situação de ambos, aquele assunto tornou-se assunto obrigado de quase todos os dias. As visitas à casa do desembargador amiudaram-se; amiudaram-se igualmente as deste à casa do comendador. Os dois jovens foram assim metidos à casa um do outro; mas se João Aguiar parecia frio, Serafina parecia gélida. Os dois estimavam-se antes, e ainda se estimavam então; entretanto, a nova situação que lhes haviam criado estabelecera entre ambos uma certa repulsa, que a polidez mal disfarçava.

Porquanto, leitora amiga, o desembargador fizera à filha um discurso igual ao do comendador. As qualidades do bacharel foram postas em relevo com suma habilidade; as razões financeiras do casamento, melhor direi, as vantagens dele, foram levemente indicadas de maneira a desenhar aos olhos da moça um brilhante futuro de pérolas e carruagens.

Infelizmente (tudo se conspirava contra os dois pais), infelizmente havia no coração de Serafina um obstáculo semelhante ao que João Aguiar tinha no seu, Serafina amava a outro. Não se atreveu a dizê-lo ao pai, mas foi dizê-lo à mãe, que não aprovou nem desaprovou a escolha, visto que a senhora pensava pela boca do marido, a quem foi transmitir a revelação da filha.

- Isso é uma loucura - exclamou o desembargador -; esse rapaz (o escolhido) é bom coração, tem carreira, mas a carreira está no princípio, e demais... creio que é um pouco leviano.

Serafina soube deste juízo do pai e chorou muito; mas nem o pai soube das lágrimas, nem que soubesse mudaria de intenção. Um homem grave, quando resolve uma cousa, não deve expor-se ao ridículo, resolvendo outra unicamente levado de algumas lágrimas de mulher. Demais, a tenacidade é prova de caráter; o desembargador era e queria ser homem austero. Conclusão: a moça chorou à toa e, só violando as leis da obediência, poderia realizar os desejos do seu coração.

Que fez então ela? Recorreu ao tempo.

- Quando meu pai vir que eu sou constante - pensou Serafina - há de consentir no que pede o coração.

E, dizendo isto, entrou a lembrar-se das amigas a quem acontecera o mesmo e que à força de paciência e tenacidade domaram os pais. O exemplo alentou-a; sua resolução era definitiva.

Outra esperança tinha a filha do desembargador; era que o filho do comendador se casasse, o que não era impossível nem improvável.

Nesse caso, cumpria-lhe ser com João Aguiar extremamente reservada, a fim de que ele não viesse a conceber esperanças a seu respeito, o que tornaria muito precária a situação e daria triunfo ao pai. Ignorava a boa moça que João Aguiar fazia a mesma reflexão, e pelo mesmo motivo se mostrava frio com ela.

Um dia, andando as duas famílias na chácara da casa do comendador, em Andaraí, aconteceu encontrarem-se os dois numa alameda, quando justamente não passava ninguém. Ambos mostraram-se incomodados com aquele encontro e de boa vontade teriam recuado; mas não era natural nem bonito.

João Aguiar resolveu cumprimentá-la apenas e ir adiante, como quem levava o pensamento preocupado. Parece que isto foi fingido demais, porque no melhor do papel, João Aguiar tropeça num pedaço de cana que se achava no chão e cai.

A moça deu dois passos para ele, que apressadamente se levantou.

- Machucou-se? - perguntou ela.

- Não, D. Serafina, não me machuquei - disse ele, limpando com o lenço os joelhos e as mãos.

- Papai está cansado de ralhar com o feitor; mas é o mesmo que nada.

João Aguiar apanhou o pedaço de cana e atirou-o para uma moita de bambus. Durante esse tempo vinha-se aproximando um moço, visita da casa, e Serafina pareceu um tanto confusa com a presença dele, não porque ele viesse, mas por achá-la a conversar com o bacharel. A leitora, que é perspicaz, adivinhou já que é o namorado de Serafina; e João Aguiar, que não é menos perspicaz que a leitora, percebeu a cousa do mesmo modo.

- Ainda bem - disse ele consigo.

E, cumprimentando a moça e o rapaz, ia seguindo pela alameda fora quando Serafina amavelmente o chamou.

- Não nos acompanha? - disse ela.

- Com muito gosto - balbuciou o bacharel.

Serafina fez um sinal ao namorado para que ele se tranquilizasse, e os três seguiram a conversar de cousas que não interessam à nossa história.

Não; há uma que interessa e não posso omitir.

Tavares, o namorado da filha do desembargador, não compreendeu que ela, chamando o filho do comendador a seguir caminho com eles, tinha por fim evitar que o pai ou a mãe a encontrasse só com o namorado, o que agravaria singularmente a situação. Há namorados a quem é preciso dizer tudo; Tavares era um deles. Inteligente e atilado em todas as outras cousas, era neste particular uma verdadeira toupeira.

Por esse motivo, apenas ouviu o convite da moça, a cara, que já anunciava mau tempo, passou a anunciar temporal desfeito, o que também não escapou ao bacharel.

- Sabe que o Dr. Aguiar levou agora uma queda? - disse Serafina olhando para Tavares.

- Ah!

- Não desastrosa - disse o bacharel -, isto é, não me fez mal nenhum; mas... ridícula.

- Ah! - protestou a moça.

- Uma queda é sempre ridícula - tornou João Aguiar em tom axiomático -; e podem já imaginar o que seria do meu futuro, se eu fosse...

- O quê? - perguntou Serafina.

- Seu namorado.

- Que ideia! - exclamou Serafina.

- Que dúvida pode haver nisso? - perguntou Tavares com um sorriso irônico.

Serafina estremeceu e baixou os olhos.

João Aguiar respondeu rindo:

- A cousa era possível, mas deplorável.

Serafina lançou um olhar de repreensão ao seu namorado e voltou-se rindo para o bacharel.

- Não diz isso por desdém, acho eu?

- Oh! Por quem é! Digo isto porque...

- Aí vem Cecília! - exclamou a irmã mais moça de Serafina, aparecendo no fim da alameda.

Serafina, que estava a olhar para o filho do comendador, viu-o estremecer e sorriu-se. O bacharel olhou para o lado de onde logo apareceu a dama dos seus pensamentos. A filha do desembargador inclinou-se para o ouvido de Tavares e murmurou:

- Ele diz isto... por causa daquilo.

Aquilo era a Cecília que chegava, não tão formosa como queria João Aguiar, nem tão pouco como parecia ao comendador.

Aquele encontro casual na alameda, aquela queda, aquela vinda de Tavares e de Cecília tão a propósito, tudo melhorou a situação e desafogou a alma dos dois jovens destinados por seus pais a um casamento que lhes parecia odioso.

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