Conto

Letra Vencida

1882
Este conto foi originalmente publicado em A Estação, em 31 de outubro e em 15 e 30 de novembro de 1882. A hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro não dispõe do número de 15 de novembro de 1882. Assim, o texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original apenas nos seus capítulos I (publicado em 31 de outubro) e IV (publicado em 30 de novembro). O capítulo III (publicado no dia 15 de novembro) foi cotejado com a edição Jackson, de 1937 (Relíquias de casa velha, v. 2).

II

Para que hei de dizer que Beatriz deixou de dormir o resto da noite? Subentende-se que as últimas horas dessa triste noite de 23 de abril foram para ela de vigília e desespero. Direi somente que também foram de devoção. Beatriz, logo que Eduardo transpôs a porta do jardim, atirou-se à cama soluçando e sufocando os soluços, para não ser ouvida. Quando a dor amorteceu um pouco, levantou-se e foi ao oratório de suas rezas noturnas e matinais; ajoelhou-se e encomendou a Deus, não a felicidade, mas a consolação de ambos.

A manhã viu-a tão triste como a noite. O sol, na forma usual, mandou um dos seus raios mais jucundos e vivos ao rosto de Beatriz, que desta vez o recebeu sem ternura nem gratidão. De costume, ela dava a esse raio amado todas as expansões de uma alma nova. O sol, pasmado da indiferença, não interrompeu todavia o seu curso; tinha outras Beatrizes que saudar, umas risonhas, outras lacrimosas, outras apáticas, mas todas Beatrizes... E lá se foi o D. João do azul, espalhando no ar um milhão daquelas missivas radiosas.

Não menos pasmada ficou a mãe ao almoço. Beatriz mal podia disfarçar os olhos cansados de chorar; e sorria, é verdade, mas um sorriso tão forçado, tão de obséquio e dissimulação, que realmente faria descobrir tudo, se desde alguns dias antes as maneiras de Beatriz não tivessem revelado tal ou qual alteração. A mãe supunha alguma moléstia; agora, sobretudo, que os olhos da moça tinham um ar febril, pareceu-lhe que era caso de doença incubada.

- Beatriz, você não está boa - disse ela à mesa.

- Sinto-me assim não sei como...

- Pois tome só chá. Vou mandar vir o doutor...

- Não é preciso; se continuar amanhã, sim.

Beatriz tomou chá, nada mais do que chá. Como não tinha vontade de outra cousa, tudo se combinou assim, e a hipótese da doença foi aparentemente confirmada. Ela aproveitou-a para meter-se no quarto o dia inteiro, falar pouco, não fazer toilette, etc. Não chamaram o médico, mas ele veio por si mesmo, o Tempo, que com uma de suas velhas poções abrandou a vivacidade da dor, e tornou o organismo ao estado anterior, tendo de mais uma saudade profunda, e a imortal esperança.

Realmente, só sendo imortal a esperança, pois tudo conspirava contra ela. Os pais de ambos os namorados tinham a seu respeito projetos diferentes. O de Eduardo meditava para este a filha de um fazendeiro, seu amigo, moça prendada, capaz de o fazer feliz, e digna de o ser também; e não meditava só consigo, porque o fazendeiro nutria iguais idéias. João B. chegara mesmo a insinuá-lo ao filho, dizendo-lhe que na Europa iria vê-lo alguém que provavelmente o ajudaria a concluir os estudos. Este foi, com efeito, o plano dos dous pais; seis meses depois, iria o fazendeiro com a família à Alemanha, onde casariam os filhos.

Quanto ao pai de Beatriz, os seus projetos eram ainda mais definitivos, se é possível. Tratava de aliar a filha a um jovem político, moço de futuro, e tão digno de ser marido de Beatriz, como a filha do fazendeiro era digna de ser mulher de Eduardo. Esse candidato, Amaral, frequentava a casa, era aceito a todos, e tratado como pessoa de família, e com um tal respeito e carinho, um desejo tão intenso de o mesclar ao sangue da casa, que realmente faria rir ao rapaz, se ele próprio não estivesse namorado de Beatriz. Mas estava-o, e grandemente namorado; e tudo isso aumentava o perigo da situação.

Não obstante, a esperança subsistia no coração de ambos. Nem a distância, nem os cuidados diversos, nem o tempo, nem os pais, nada diminuía o viço dessa flor misteriosa e constante. Não disseram outra cousa as primeiras cartas, recebidas por um modo tão engenhoso e tão simples, que vale a pena contá-lo aqui, para uso de outros desgraçados. Eduardo mandava as cartas a um amigo; este passava-as a uma irmã, que as entregava a Beatriz, de quem era amiga e companheira do colégio. Geralmente as companheiras de colégio não se recusam a estes pequenos obséquios, que podem ser recíprocos; em todo o caso - são humanos. As duas primeiras cartas, assim recebidas, foram a transcrição dos protestos feitos naquela noite de 23 de abril de 1861; transcrição feita com tinta, mas não menos valiosa e sincera do que se o fora com sangue. O mar, que deixou passar essas vozes concordes de duas almas violentamente separadas, continuou o perpétuo movimento da sua instabilidade.

III

Beatriz voltou aos hábitos anteriores, aos passeios, saraus e teatros do costume. A tristeza, de aguda que era e manifesta, tornou-se escondida e crônica. No rosto era a mesma Beatriz, e tanto bastava à sociedade. Naturalmente não tinha a mesma paixão da dança, nem a mesma vivacidade de maneiras; mas a idade explicava a atenuação. Os dezoito anos estavam feitos; a mulher completara-se.

Quatro meses depois da partida de Eduardo, entendeu a família da moça apressar o casamento desta; e eis aqui as circunstâncias da resolução.

Amaral cortejava a moça ostensivamente, dizia-lhe as finezas usuais, frequentava a casa, ia onde ela fosse; punha o coração em todas as ações e palavras. Beatriz entendia tudo e não respondia a nada. Usou duas políticas diferentes. A primeira foi mostrar-se de uma tal ignorância que o pretendente achasse mais razoável esquecê-la. Pouco durou esta; era improfícua, tratando-se de um homem verdadeiramente apaixonado. Amaral teimou; vendo-se desentendido, passou a linguagem mais direta e clara. Então começou a segunda política; Beatriz mostrou que entendia, mas deixou ver que nada era possível entre ambos. Não importa; ele teimou ainda mais. Nem por isso venceu. Foi então que o pai de Beatriz interveio.

- Beatriz - disse-lhe o pai -, tenho um marido para ti, e estou certo que vais aceitá-lo...

- Papai...

- Mas ainda que, a princípio recuses, não por ser indigno de nós; não é indigno, ao contrário; é pessoa muito respeitável... Mas, como ia dizendo, ainda que a tua primeira palavra seja contra o noivo, previno-te que é desejo meu e há de cumprir-se.

Beatriz fez um movimento de cabeça, rápido, espantado. Não estava acostumada àquele modo, não esperava a intimação.

- Digo-te que é um moço sério e digno - repetiu -. Que respondes?

- Nada.

- Aceitas então?

- Não, senhor.

Desta vez foi o pai que teve um sobressalto; não por causa da recusa; ele esperava-a, e estava resolvido a vencê-la, segundo a avisou desde logo. Mas o que o espantou foi a prontidão da resposta.

- Não? - disse ele daí a um instante.

- Não, senhor.

- Sabes o que estás dizendo?

- Sei, sim, senhor.

- Veremos se não - bradou o pai levantando-se, e batendo com a cadeira no chão -; veremos se não! Tem graça! Não, a mim! Quem sou eu? Não! E por que não? Naturalmente, anda aí algum petimetre sem presente nem futuro, algum bailarino, ou estafermo. Pois veremos...

E ia de um lado para outro, metendo as mãos nas algibeiras da calça, tirando-as, passando-as pelos cabelos, abotoando e desabotoando o paletó, fora de si, irritado.

Beatriz deixara-se estar sentada com os olhos no chão, tranquila, resoluta. Em certo momento, como o pai lhe parecesse exasperado demais, levantou-se e foi a ele para aquietá-lo um pouco; mas ele repeliu-a.

- Vá-se embora - disse-lhe -; vá refletir no seu procedimento, e volte quando estiver disposta a pedir-me perdão.

- Isso já; peço-lhe perdão já, papai... Não quis ofendê-lo, nunca o ofendi... Perdoe-me; vamos, perdoe-me.

- Mas recusas?

- Não posso aceitar.

- Sabes quem é?

- Sei: o Dr. Amaral.

- Que tens contra ele?

- Nada; é um moço distinto.

O pai passou a mão pelas barbas.

- Gostas de outro.

Beatriz calou-se.

- Vejo que sim; está bem. Quem quer que seja, não terá nunca a minha aprovação. Ou o Dr. Amaral, ou nenhum mais.

- Nesse caso, nenhum mais - respondeu ela.

- Veremos.

IV

Não percamos tempo. Beatriz não casou com o noivo que lhe davam; não aceitou outro que apareceu no ano seguinte; mostrou uma tal firmeza e decisão, que encheu o pai de assombro.

Assim se passaram os dous primeiros anos. A família de Eduardo voltou da Europa; este ficou, para tornar quando acabasse os estudos. "Se me parecesse, ia já" (dizia ele em uma carta à moça), "mas quero conceder isto, ao menos, a meu pai: concluir os estudos."

Que ele estudava, é certo; e não menos certo é que estudava muito. Tinha vontade de saber, além do desejo de cumprir, naquela parte, as ordens do pai. A Europa oferecia-lhe também alguns recreios de diversa espécie. Ele ia nas férias à França e à Itália, ver as belas-artes e os grandes monumentos. Não é impossível que, algumas vezes, incluísse no capítulo das artes e na classe dos monumentos algum namoro de ordem passageira; creio mesmo que é negócio liquidado. Mas, em que é que essas pequenas excursões em terra estranha lhe faziam perder o amor da pátria, ou, menos figuradamente, em que é que essas expansões miúdas do sentimento diminuíam o número e a paixão das cartas que mandava a Beatriz?

Com efeito, as cartas eram as mesmas de ambos os lados, escritas com igual ardor às das primeiras semanas, e nenhum outro método. O método era o de um diário. As cartas eram compostas dia por dia, como uma nota dos sentimentos e dos pensamentos de cada um deles, confissão de alma para alma. Parecerá admirável que este uso fosse constante no espaço de um, dous, três anos; que diremos cinco anos, sete anos! Sete, sim, senhora; sete, e mais. Mas fiquemos nos sete, que é a data do rompimento entre as duas famílias.

Não importa saber por que brigaram as duas famílias. Brigaram; é o essencial. Antes do rompimento desconfiaram os dous pais que os filhos tinham-se jurado alguma cousa antes da separação, e não estavam longe de concordar em que se casassem. Os projetos de cada um deles tinham naufragado; eles estimavam-se; nada havia mais natural do que aliarem-se mais intimamente. Mas brigaram; veio não sei que incidente estranho, e a amizade converteu-se em ódio.

Naturalmente um e outro pensaram logo na possibilidade do consórcio dos filhos, e trataram de afastá-los. O pai de Eduardo escreveu a este, já diplomado, dizendo que o esperasse na Europa; o de Beatriz inventou um pretendente, um rapaz desambicioso, que jamais pensaria em pedi-la, mas que o fez, animado pelo pai.

- Não - foi a resposta de Beatriz.

O pai ameaçou-a; a mãe pediu-lhe por tudo o que havia de mais sagrado que aceitasse o noivo; mostrou-lhe que eles estavam velhos, e que ela precisava ficar amparada. Foi tudo inútil. Nem esse pretendente nem outros que vieram, uns por mão do pai, outros por mão alheia. Beatriz não iludia ninguém, ia dizendo a todos que não.

Um desses pretendentes chegou a crer-se vencedor. Tinha qualidades pessoais distintas, e ela não desgostava dele, tratava-o com muito carinho, e pode ser que sentisse algum princípio de inclinação. Mas a imagem de Eduardo vencia tudo. As cartas dele eram o prolongamento de uma alma querida e amante; e aquele candidato, como os outros, teve de recuar vencido.

- Beatriz, vou morrer dentro de poucos dias - disse-lhe um dia o pai -; por que me não dás o gosto de deixar-te casada?

- Qual, morrer!

E não respondia à outra parte das palavras do pai. Eram já passados nove anos da separação. Beatriz tinha então vinte e sete. Via chegar os trinta com tranquilidade e a pena na mão. Não seriam já diárias as cartas, mas eram ainda e sempre pontuais; se algum paquete não as trazia ou levava, a culpa era do correio, não deles. Realmente, a constância era digna de nota e admiração. O mar separava-os, e agora o ódio das famílias; e além desse obstáculo, deviam contar com o tempo, que tudo afrouxa, e as tentações que eram muitas de um e outro lado. Mas apesar de tudo, resistiam.

O pai de Beatriz morreu dali a algumas semanas. Beatriz ficou com a mãe, senhora achacada de moléstias, e cuja vida naturalmente não iria também muito longe. Esta consideração deu-lhe ânimo para tentar os últimos esforços, e ver se morria deixando a filha casada. Empregou os que pôde; mas o resultado não foi melhor.

Eduardo na Europa sabia tudo. A família dele trasladou-se para lá, definitivamente, para o fim de o reter, e tornar impossível o encontro dos dous. Mas, como as cartas continuavam, ele sabia tudo o que se passava no Brasil. Teve notícia da morte do pai de Beatriz, e dos esforços empregados por ele e depois pela mulher, viúva, para estabelecer a filha; e soube (pode imaginar-se com que satisfação) da resistência da moça. O juramento da noite de 23 de abril de 1861 estava de pé, cumprido, observado à risca, como um preceito religioso, e, o que é mais, sem que lhes custasse mais do que a pena da separação.

Na Europa, morreu a mãe de Eduardo; e o pai teve um instante ideias de voltar ao Brasil; mas era odiento, e a ideia de que o filho podia então casar com Beatriz fixou-o em Paris.

"Verdade é que ela não deve estar muito tenra...", dizia ele consigo.

Eram então passados quinze anos. Passaram-se mais alguns meses, e a mãe de Beatriz morreu. Beatriz ficou só, com trinta e quatro anos. Teve idéia de ir para Europa, com alguma dama de companhia; mas Eduardo contava então vir ao Rio de Janeiro arranjar alguns negócios do pai, que estava doente. Beatriz esperou; mas Eduardo não veio. Uma amiga dela, confidente dos amores, dizia-lhe:

- Realmente, Beatriz, você tem uma paciência!

- Não me custa nada.

- Mas esperar tanto tempo! Quinze anos!

- Nada mais natural - respondia a moça -; eu suponho que estamos casados, e que ele anda em viagem de negócios. É a mesma cousa.

Essa amiga estava casada; tinha já dous filhos. Outras amigas e companheiras de colégio tinham casado também. Beatriz era a única solteira, e solteira abastada e pretendida. Agora mesmo, não lhe faltavam candidatos; mas a fiel Beatriz conservava-se como dantes.

Eduardo não veio ao Brasil, segundo contava, nem naquele nem no ano seguinte. As doenças do pai agravaram-se, tornaram-se longas; e nisto correram mais dous anos. Só então o pai de Eduardo morreu, em Nice, no fim de 1878. O filho arranjou os primeiros negócios e embarcou para o Rio de Janeiro.

- Enfim!

Tinham passado dezoito anos. Posto que eles tivessem trocado os retratos, mais de uma vez durante esse lapso de tempo, acharam-se diferentes do que eram na noite da separação. Tinham passado a idade dos primeiros ardores; o sentimento que os animava era brando, embora tenaz.

Vencida a letra, era razoável pagar; era mesmo obrigatório. Trataram dos papéis; e dentro de poucas semanas, nos fins de 1878, cumpriu-se o juramento de 1861. Casaram-se, e foram para Minas, de onde voltaram três meses depois.

- São felizes? - perguntei a um amigo íntimo deles, em 1879.

- Eu lhe digo - respondeu esse amigo observador -. Não são felizes nem infelizes; um e outro receberam do tempo a fisionomia definitiva, apuraram as suas qualidades boas e não boas, deram-se a outros interesses e hábitos, colheram o fastio e a marca da experiência, além da surdina que os anos trazem aos movimentos do coração. E não viram essa transformação operar-se dia por dia. Despediram-se uma noite, em plena florescência da alma, para encontrarem-se carregados de fruto, tomados de ervas parasitas, e com certo ar fatigado. Junte a isto o despeito de não achar o sonho de outrora, e o de o não trazer consigo; pois cada um deles sente que não pode dar a espécie de cônjuge que aliás deseja achar no outro; pense mais no arrependimento possível e secreto de não terem aceitado outras alianças, em melhor quadra; e diga-me se podemos dizê-los totalmente felizes.

- Então infelizes?

- Também não. Vivem, respeitam-se; não são infelizes, nem podemos dizer que são felizes. Vivem, respeitam-se, vão ao teatro...

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A-