VIII
Com a manhã, retirou-se o passeador, que (desta vez não havia dúvida para a moça) era o filho de D. Emiliana. Imagine o estado em que ambos ficaram: ele moído e sonolento, ela com o espírito transtornado, e o coração... o coração agradecido, lisonjeado, satisfeito enfim de haver encontrado uma alma menos austera que a do primo.
A primeira cousa que a moça devia concluir é que o rapaz tinha-lhe mais amor a ela do que à vida eclesiástica; mas, posto o sentisse, não formulou o espírito esta natural descoberta. Pedro não foi lá na manhã nem na tarde desse dia; foi à noite. Se lhe custara a vigília, recebeu logo ali a paga, que foi um olhar de agradecimento, não meditado e intencional, mas espontâneo e quase inconsciente; o primeiro olhar de mulher que o filho de D. Emiliana recebera em sua vida. O padre Sá estava presente; Alexandre chegou pouco depois. Não achando logo ocasião propícia para dizer o que queria, Pedro resolveu dizê-lo em voz alta.
- Padre-mestre, há alguma oposição entre a poesia e a vida religiosa?
- Nenhuma... O padre Caldas fez versos, mas versos pios...
- Pois eu fiz mais do que prometi - tornou o moço, sublinhando estas palavras -, também fiz versos.
- Versos?
- E à lua.
O padre Sá coçou a ponta do nariz com ar de pouca aprovação; mas o rapaz, sem embargo disso, sacou da algibeira um papelinho dobrado, que deu a Lulu.
- Leia para si ou para todos - disse ele -; e peça ao padre-mestre que me perdoe o pecado.
Não transcrevo aqui os versos do rapaz, que eram melhores de intenção que de execução. A moça leu-os trêmula e comovida; e estendeu depois o papel ao tio, que o não quis receber.
- Não quero - disse ele -; perdoo-lhe; vá lá; mas ainda em cima ler uma obra de intenção profana, que lhe desdoura talvez a sua vocação, é... daí, quem sabe? Podem dizer-se cousas bonitas à lua, como obra do Criador...
- Não foi nesse sentido que ele escreveu - disse Alexandre, que recebera o papel recusado pelo padre Sá, e lia os versos para si. - Não foi nesse sentido; fala em suspiros à lua, a quem pede que seja testemunha de que nada há no mundo mais doce do que o sentimento que o domina e nem maior do que o alvo de suas aspirações santas.
- Aprovo - disse o padre Sá -; mas para dizer isso, não precisava falar à lua e era indiferente a prosa ou o verso.
Lulu recebera de novo o papel que o primo lhe dera; e o padre notou nessa noite a preocupação e acanhamento da sobrinha, e a singular alegria de Alexandre. Era a primeira vez que o seu rosto severo se expandia; a primeira que lhe ouviam o riso franco e jovial.
Aqueles versos foram lidos e relidos na alcova pela inspiradora deles, que com eles sonhou durante a noite inteira, e acordou com eles na memória. No coração, leitor, no coração devo eu dizer que eles estavam, e mau é quando os versos entram pelo coração, porque atrás deles pode ir o amor. Lulu sentiu alguma cousa que se parecia com isso.
O que é triste e prosaico, o que eu devia excluir da novela, é a constipação do filho de D. Emiliana, uma forte constipação que apanhou nos seus passeios noturnos, e que o reteve em casa no dia seguinte. Fazê-lo adoecer de incerteza ou de qualquer outra cousa moral era talvez mais digno do papel; mas o rapaz constipou-se, e não há remédio senão admitir a coriza, suprimindo todavia as mezinhas que a mãe lhe deu e os discursos com que as temperou.
Os tais discursos não eram agradáveis de ouvir. Pedro não saíra ostensivamente de casa na noite sacrificada ao capricho de Lulu; deitou-se à hora de costume e meia hora depois, quando sentiu a família acomodada, levantou-se e, graças à cumplicidade de um escravo, saiu à rua. De manhã voltou, dizendo que saíra cedo. Mas os olhos com que vinha, e o longo sono que dormira em toda a manhã até às horas do jantar descobriram toda a verdade aos olhos perspicazes de D. Emiliana.
- Padre! - dizia ela -; e um mariola destes quer ser padre!
Constipado o rapaz, deixou de sair dois dias; e, não saindo ele, a moça deixou de rir ou sorrir sequer, enquanto o primo temperava a gravidade do seu aspecto com desusada alegria e singular agitação, que nada pareciam ter com Lulu. O tio aborreceu-se com esta aparência de arrufos; achou pouca generosidade da parte de Alexandre, em mostrar-se jovial e descuidado, quando a moça parecia preocupada e triste, e resolveu acarear os dois corações e dizer-lhes francamente o que a respeito deles pensava, na primeira oportunidade que se lhe oferecesse.
IX
A noite seguinte foi de amargura para Lulu, que ouviu ao primo dizer baixinho ao filho de D. Emiliana:
- Preciso falar-lhe.
- Pronto.
- A sós.
- Quando quiser.
- Esta mesma noite.
Pedro fez um gesto de assentimento.
O tom da voz de Alexandre não revelava cólera; todavia, como ele dizia gravemente as cousas mais simples, Lulu estremeceu ao ouvir aquele curto diálogo e teve medo. Que haveria entre os dois logo que dali saíssem? Receosa de algum ato de vingança, a moça tratou nessa noite o primo com tamanha afabilidade que as esperanças do padre Sá renasceram, e Pedro cuidou ter perdidas todas as que ele tinha. Ela tentou prolongar a visita dos dois; mas reconheceu que era inútil o meio e que, uma vez saídos dali, qualquer que fosse a hora, podia dar-se o que ela receava.
Teve outra ideia. Saiu repentinamente da sala e foi direito a tia Mônica.
- Tia Mônica - disse a moça -; venho pedir-lhe um grande favor.
- Um favor, nhanhã! Sua preta velha obedecerá ao que lhe mandar.
- Quando meu primo sair daqui com o senhor Pedro você vai acompanhá-los.
- Jesus! Para quê?
- Para ouvir o que eles dizem, e ver o que houver entre eles, e gritar por socorro se houver algum perigo.
- Mas...
- Por alma de minha mãe - suplicou Lulu.
- Mas não sei...
Lulu não ouviu o resto; correra à sala. Os dois rapazes, já de pé, faziam as suas despedidas ao padre e despediram-se dela até o dia seguinte; este dia seguinte ecoou funebremente no espírito da moça.
Tia Mônica vestira à pressa uma mantilha e desceu atrás dos dois rapazes. Ia resmungando, receosa do que fazia ou do que podia acontecer, nada compreendendo daquilo, e entretanto cheia do desejo de obedecer à vontade de sinhá moça.
O padre Sá estava mais jovial do que nunca. Logo que ficou a sós com a sobrinha, disse-lhe dois gracejos paternais, que ela ouviu com um sorriso à flor dos lábios; e o serão acabou logo depois.
Lulu recolheu-se ao quarto, sabe Deus e imagina o leitor com que medos no coração. Ajoelhou diante de uma imagem da Virgem e orou fervorosamente... por Pedro? Não; por um e outro, pela vida e paz dos dois moços. O que não se sabe é se pediu alguma cousa mais. Provavelmente, não; o maior perigo naquela ocasião era aquele.
A oração pacificou-lhe a alma; recurso poderoso que só conhecem as almas crentes e os corações devotos. Aquietada, esperou a volta de tia Mônica. As horas entretanto correram lentas, e desesperadoras. A moça não saiu da janela salvo duas ou três vezes para vir de novo ajoelhar-se diante da imagem. Meia-noite bateu e começou a primeira hora do dia seguinte sem que o vulto da boa preta aparecesse ou o som de seus passos interrompesse o silêncio da noite.
O coração da moça não pôde resistir mais; as lágrimas brotaram dela ardentes, precipitadas e ela atirou-se à cama toda entregue ao seu desespero. Sua imaginação pintava-lhe os quadros mais tristes; e pela primeira vez sentiu ela toda a intensidade do novo sentimento que a dominava.
Era uma hora quando o som pausado e seco de uma chinela soou nas pedras da rua. Lulu adivinhou o passo da tia Mônica; foi à janela; um vulto aproximava-se da porta, parou, abriu cautelosamente com a chave que levava e entrou. A moça respirou, mas à primeira incerteza começava uma segunda. Era muito ver a preta de volta; restava saber o que acontecera.
Tia Mônica subiu as escadas, e já achou no patamar a sinhá moça, que a fora esperar ali.
- Então? - perguntou esta.
A resposta da preta foi nenhuma; travou-lhe da mão e encaminhou-se para o quarto da moça.
- Ah! Sinhá Lulu, que noite! - exclamou tia Mônica.
- Mas dize, dize, que aconteceu?
A preta sentou-se com a liberdade de uma pessoa cansada, e velha, e quase mãe daquela filha. Lulu pediu-lhe que dissesse tudo e depressa. Depressa, era exigir muito da pobre Mônica, que, além da idade, tinha o sestro de narrar pelo miúdo os incidentes todos de um caso ou de uma aventura, sem excluir as suas próprias reflexões e as circunstâncias mais alheias ao assunto da conversação. Gastou, portanto, a tia Mônica dez compridíssimos minutos em dizer que nada ouvira aos dois rapazes desde que dali saíra; que os acompanhara até ao largo da Imperatriz e subira com eles até a um terço da ladeira do Livramento, onde morava Alexandre, em cuja casa ambos entraram e se fecharam por dentro. Ali ficou, do lado de fora, cerca de meia hora; mas não os vendo sair, perdeu as esperanças e voltou para a Gamboa.
- Fui e vim com o credo na boca - terminou tia Mônica -; e dou graças à Virgem Santíssima por me ver aqui sã e salva.
Pouco sabia a moça; ainda assim aquietou-se-lhe o espírito. Tia Mônica era um tanto curiosa, e em prêmio do seu trabalho achou natural saber a razão daquela excursão noturna.
- Oh! Não me pergunte nada, tia Mônica! - respondeu Lulu -. Amanhã lhe direi tudo.
- Já sei mais ou menos o que é - disse a preta -; negócio de paixãozinha de moça. Não faz mal; eu adivinhei tudo...
- Tudo? - perguntou maquinalmente a sobrinha do padre Sá.
- Há muito tempo - continuou tia Mônica -; há seis meses.
- Ah!
- Seu primo de vosmecê...
- Oh! Cale-se!
- Está bom, não digo mais nada. Só lhe digo que espere em Nossa Senhora, que é boa mãe e há de fazê-la feliz.
- Deus a ouça!
- Agora sua preta velha vai dormir...
- Vá, tia Mônica; Deus lhe pague!
Neste momento, ouviu-se no corredor o ruído de uns passos que se afastavam cautelosamente.
- Que foi? - disse Lulu.
- Não sei... Abrenúncio! Ouviu alguma cousa?
A moça foi resolutamente à porta, abriu-a; o corredor estava escuro. Tia Mônica saiu com a vela e não viu nada. Deram-se as boas noites; a moça voltou ao seu leito, onde, sobre a madrugada, conseguiu enfim dormir. Tia Mônica dormiu logo o sono dos anjos, ia eu dizer, e o digo porque ela foi verdadeiramente angélica naquela aventurosa noite.
X
De quem seriam os passos ouvidos no corredor, senão do padre Sá que percebera movimentos desusados na casa, ouvira a entrada da tia Mônica e quis saber a razão de tal saída a desoras? Alguma cousa soube, quanto bastou para que no dia seguinte se acordasse com a resolução feita de concluir dentro de poucas semanas o casamento da sobrinha com o sobrinho.
- Ou se a não ama, que o diga logo de uma vez - pensou o bom padre -; é melhor do que fazer padecer a minha pobre Lulu.
Ao mesmo tempo, pensou que não houvera prudência da parte da sobrinha em mandar emissários atrás do primo e fazer intervir criados em cousas de tanta monta.
- É preciso repreendê-la, porque não andou em bom caminho, nem a eduquei para leviandades tais.
Isto disse o padre Sá, mas foi só dizer, porque, logo que viu a sobrinha e lhe leu no rosto todas as amarguras da noite e os sinais de longa vigília, ficou tomado de comiseração e a severidade cedeu o passo à ternura.
Preferiu repreender a tia Mônica, depois de a interrogar acerca dos sucessos da véspera. A preta negou tudo, e mostrou-se singularmente admirada com a notícia de que ela havia saído de noite; o padre, porém, soube fazê-la confessar tudo, só com lhe mostrar o mal que havia em mentir. Nem por isso ficou sabendo muito; repreendeu a preta, e foi dali escrever uma cartinha ao sobrinho.
A carta foi escrita, mas não foi mandada. Daí a meia hora, anunciava-se nada menos que a rotunda pessoa da senhora D. Emiliana, que veio até à Gamboa arrastando a sua paciência e a sua idade, com grande espanto do padre Sá, que nunca a vira ali; D. Emiliana pediu muitas desculpas ao padre da visita importuna que lhe fazia, pediu notícias da sua obrigação, queixou-se do calor, beijou três ou quatro vezes a face de Lulu, deitando-lhe duas figas para a livrar do quebranto, e só depois destes prólogos expôs o motivo do passo que acabava de dar.
- Não admira, padre-mestre - disse ela -, não admira que eu aqui venha, porque enfim... ora, que há de ser? Cousas de rapazes...
- De rapazes?
- De rapazes e moças; ou antes, desta única moça, bonita como ela só!... Que olhos que ela tem! Dá cá outro beijo, feiticeira.
Lulu beijou a boa velha, e ficou ainda mais ansiosa que o tio por ouvir o resto da exposição. O padre fez sinal à sobrinha que se retirasse; não o consentiu D. Emiliana.
- Oh! Ela pode ficar aqui! Não vou dizer nada que ela não deva ouvir. O que eu desejava saber antes de tudo, padre-mestre, é se tem feito alguma cousa para que o meu Pedro tome ordens.
- Tenho, decerto...
- Bom.
- E que mais?
- E se é ainda na intenção casar este anjinho com o senhor Alexandre... Alexandre, creio que é o nome dele?
- Mas... não sei a que propósito...
- A propósito de que estive hoje de manhã com o futuro esposo e o futuro padre, e ambos me pediram que interviesse por eles, de maneira que não houvesse demora nem no casamento nem na entrada no seminário.
- Nenhuma demora, D. Emiliana - disse o padre -; é o meu maior desejo. Acho até esquisito que, por uma cousa tão simples...
- É menos simples do que parece.
- Ah!
- Menos simples, porque eles oferecem uma condição.
- Uma condição?
- Sim, Reverendíssimo; ambos estão prontos a satisfazer os seus desejos, com a condição de que os há de trocar, passando o marido a ser padre, e o padre, a ser marido.
O dono da casa deu um pulo na cadeira. Dona Emiliana assustou-se vendo o gesto, mas voltou logo os olhos para a moça, cujo olhar, radiante de prazer, mostrou à boa velha a excelente impressão que lhe fazia a notícia. Lulu beijou a mão de D. Emiliana, e este simples gesto revelava ao tio o estado do seu coração. O padre esteve algum tempo calado. Depois sorriu e disse:
- De maneira que tive a perspicácia de enganar-me até hoje; e ia fazer, sem consciência, um mau padre e um mau marido.
- Justamente - disse D. Emiliana.
- E cuidava ter-lhes adivinhado a vocação! Sempre lhe direi, contudo, que são dois velhaquetes os rapazes... Mas não importa; terei o padre e o esposo de Lulu, e direi a Deus como Salomão: "Duas cousas te pedi; não mas negues antes que morra!"
Não lhas negou Deus; o esposo e o padre foram exemplares; um está cônego; o outro trata de fazer o filho ministro de Estado. É possível que, a fazer as cousas como as queria o padre Sá, não houvesse nem cônego, nem ministro.
Segredo de vocação.
Mas que tem com esta história o título que lhe pus? Tudo; são umas vinte páginas para encher tempo. Em falta de cousa melhor, lê-se isto, e dorme-se.