Conto

Encher Tempo

1876
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias, em abril, maio, junho e julho de 1876, assinado por Machado de Assis. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

VII

Lulu notou a esquivança do primo e a frieza que lhe mostrava. Certo é que nunca lhe achara a expansão, nem a ternura que era natural exigir de um namorado. Alexandre era sóbrio de palavras e seco de sentimentos. Os olhos com que a via eram sérios, sem flama nem viveza - "olhos de imagem", dizia-lhe ela um dia gracejando. Mas se ele fora sempre assim, agora parecia mais frio do que nunca, e a moça procurou saber a causa daquela agravação de impassibilidade.

- Ciúmes? - pensou ela.

Ciúmes de Pedro, devia dizer; mas nem ela nem a leitora precisam de nada mais para completar o pensamento. De quem seriam os ciúmes senão daquele rapaz, que se mostrava assíduo, afável, dedicado, que a tratava com esmero e afeição?

A moça riu da descoberta.

- Um quase padre! - exclamou ela.

Daí a poucos dias o padre Sá disse ao filho de D. Emiliana que os seus negócios iam perfeitamente e que dentro de pouco tempo devia dizer adeus a quaisquer ocupações estranhas aos preparatórios eclesiásticos.

- Faça exame de consciência - disse a moça, que estava presente à conversa dos dois -; e prepare-se para...

- Para casar-te? - perguntou sorrindo o tio.

Lulu corou ouvindo aquelas palavras. Sua ideia não era casamento: era um gracejo fúnebre e tão descabido que a frase lhe morrera nos lábios. O que ela queria dizer era que Pedro se preparasse para rezar-lhe o responso. A interrupção do tio desviou-lhe o pensamento do gracejo para dirigi-lo ao primo. Corou, como disse, e refletiu um instante.

"Oh! Se ele me amasse com o mesmo ardor com que este ama a Igreja!", pensou ela.

Depois:

- Falemos de cousas sérias - continuou ela em voz alta -: desejo vê-lo em breve cantar uma missa ao lado de titio.

Na noite desse mesmo dia, Alexandre foi à casa do padre Sá. Ia preocupado e pouco se demorou. O tio notou-lhe a diferença e ficou preocupado. Conjecturou mil cousas para aquela mudança do sobrinho, sem atinar qual delas era a verdadeira. Lulu ficou igualmente triste; não digo bem, havia tristeza, mas havia outra cousa também, havia despeito; e menos o amor do que o amor-próprio começava a sentir-se ofendido.

Pedro aproveitou a primeira ocasião em que o padre saiu da sala para lhe perguntar o motivo daquela súbita melancolia.

A moça estremeceu como se acordasse sobressaltada de um sono.

- Não ouvi - murmurou ela.

- Perguntava-lhe por que motivo ficou assim pensativa.

- Um capricho - respondeu a moça.

- Um capricho satisfaz-se.

- Nem todos.

- Quase todos. Não pede decerto a lua?

- A lua... não - respondeu ela procurando sorrir e esquecer -; mas alguma cousa que tem relação com ela.

- Diga o que é.

- Estava desejando... que o senhor ficasse esta noite ali fora a contemplar a lua e a fazer-lhe versos - disse ela rindo -. Nunca fez versos?

- Um hexâmetro apenas.

- Não sei o que é; mas não importa. Era capaz disso?

- Suprima os versos e a cousa é fácil - respondeu Pedro sorrindo.

- Fácil! - exclamou Lulu.

E depois de alguns instantes de silêncio:

- Não era bem isso que eu desejava - continuou ela -; mas alguma cousa análoga, algum sacrifício... tolice de moça...

Lulu ergueu-se e foi à janela para disfarçar a comoção; Pedro deixou-se ficar na cadeira. Daí a pouco, ouviram-se os passos do padre Sá; o moço pegou num livro e abriu-o ao acaso e entrou a ler. A tristeza de Lulu foi observada pelo tio, que assentou de si para si convidar o sobrinho a uma conferência, resoluto a conhecer o estado das cousas.

"Amam-se, não há dúvida", pensava o velho; "mas há alguma cousa, decerto, que eu não posso descobrir. É necessário sabê-lo."

Pedro demorou-se em casa do padre até depois de nove horas. A moça presidiu ao chá com a graça habitual, e um pouco mais livre das comoções daquela noite. Acabado o chá, Pedro despediu-se do velho sacerdote e da sobrinha. A moça acompanhou-o até à porta do gabinete, enquanto o tio preparava o tabuleiro das damas para a partida de costume.

- Boa noite - disse Lulu apertando a mão ao filho de D. Emiliana.

- Boa noite - respondeu este.

E mais baixo:

- Verá hoje mesmo que lhe satisfaço o capricho.

Lulu ficou estupefacta ao ouvir aquelas palavras; mas não pôde pedir maior explicação, não só porque o tio ficava a poucos passos, como porque o moço só lhe dera tempo de ouvi-lo; saíra imediatamente.

A partida de damas foi aborrecida e não durou muito. Ambos os contendores estavam preocupados de cousas mais sérias. Às nove e meia despediram-se para ir dormir.

- Vê se o sono te dá melhor aspecto - disse o padre Sá dando a mão a beijar à sobrinha.

- Estou hoje mais feia que de costume?

- Não; mais triste.

- Não é tristeza, é cansaço - respondeu a moça -; dormi pouco a noite passada.

Despediram-se.

Lulu, apenas entrou no quarto, correu à janela; fê-lo com a curiosidade vaga de saber se o filho de D. Emiliana realizara a promessa de satisfazer-lhe o capricho. A praia estava deserta.

"Naturalmente!",disse ela consigo. "Para obedecer a uma tolice minha era necessário cometer tolice maior."

Lulu entrou, destoucou-se, deixou os vestidos, envolveu-se em um roupão e sentou-se ao pé da janela. Ali ficou cerca de meia hora absorvida em seus pensamentos; a figura de Alexandre flutuava-lhe no espírito, confundindo-se às vezes com a de Pedro. Ela comparava a assiduidade de um com a frieza do outro; frieza que ela atribuía ora a um sentimento de ciúme, ora ao amortecimento da antiga afeição. Esta mesma afeição, a moça entrou a analisá-la, a estudá-la no passado sem lhe achar intensidade igual à sua. Nunca duvidara do amor de Alexandre; mas agora que o dissecava reconhecia que era um amor grave e refletido demais, sem aquela exuberância própria da mocidade e do coração.

Lulu não reparava que esta mesma segurança de vista com que apreciava o estado do coração do primo era prova de que o seu estava menos alienado pela paixão. O que ela de todo ignorava era que aquele primeiro afeto, nascido do costume, nutrido da convivência, era menos espontâneo e irresistível do que parecia. Suas alegrias e tristezas não vinham das raízes do coração, não lhe estremeciam a alma, nem a cobriam de luto.

Nisto não pensava ela; mas começou-o a sentir naquela noite, e pela primeira vez o coração pediu alguma cousa mais do que um afeto mal sentido e mal correspondido.

No meio dessas sensações vagas, sonhos indecisos, aspirações e ânsias sem objeto, ergueu-se a moça disposta a recolher-se. Ia cerrar as venezianas da janela, quando viu um vulto na praia, a passear lentamente, parando às vezes de costas para o mar. Apesar da lua, que então começava a surgir brilhante e clara, Lulu não pôde conhecer quem era, todavia as palavras de Pedro estavam-lhe na memória. Afirmou a vista; e o talhe e o andar pareceram-lhe do moço. Seria ele? A ideia era tão extravagante que a moça repeliu-a imediatamente; esperou algum tempo à janela. Quinze minutos decorreram sem que o vulto, quem quer que fosse, se retirasse dali. Tudo parecia dizer que era o filho de D. Emiliana; contudo, a moça quis prolongar a experiência; fechou a janela e retirou-se.

Meia hora decorreu - meia hora de relógio, mas uma eternidade para a alma curiosa da moça, lisonjeada com aquele ato do rapaz, lastimando e desejando o sacrifício.

- Impossível! - dizia ela -. É impossível que uma brincadeira... Mas aquela é a figura dele; e demais quem viria colocar-se ali, a esta hora, a passear solitário...

Lulu abriu de novo a janela; o vulto lá estava, desta vez sentado em uma pedra, fumando um charuto. Logo que ela abriu a janela, o vulto, que parecia olhar para lá, ergueu-se e entrou a passear de novo, com o mesmo passo tranquilo de um homem disposto a velar a noite na praia. Há de ser por força um passo diferente dos outros; pelo menos, assim o achou a sobrinha do padre Sá.

A certeza de que era o filho de D. Emiliana produziu no espírito da moça uma revolução. Que razão havia para aquele sacrifício, sacrifício inconfessável, tão ridículo havia de parecer aos olhos dos outros, sacrifício solitário e estéril? Lulu acostumara-se a ver no moço um futuro padre, um homem que ia romper com todas as paixões terrenas, e surgia-lhe, quando menos esperava, uma figura de novela antiga, cumpridor exato de uma promessa fútil, obediente a um capricho manifestado por ela em hora de despeito.

Lulu fechou de novo a janela e dispôs-se a dormir; fê-lo por pena do rapaz; uma vez fechada a casa, era provável que o seu fiel cavaleiro se fosse deitar também, apesar do calor que fazia e da vantagem que há em passear à lua numa cálida noite de fevereiro. Foi esta a esperança; mas nem por isso a moça dormiu logo. A aventura espertara-a. Contudo, não se atreveu a erguer-se de novo, com medo de animar o sacrifício do moço.

Dormiu.

O sono não foi seguido nem tranquilo; ela acordou dez vezes; dez vezes reconciliou o sono a muito custo. Sobre a madrugada, ergueu-se e foi à janela. Não a abriu; enfiou os olhos por uma fresta. O vulto lá estava na praia sentado, a fumar, com a cabeça nas mãos como a ampará-la de pesada que havia de estar com a longa vigília.

A leitora poderia achar extravagante a ação do rapaz; mas estou convencido de que não conseguiria mais reconciliar o sono.

Foi o que aconteceu à sobrinha do padre Sá.

VIII

Com a manhã, retirou-se o passeador, que (desta vez não havia dúvida para a moça) era o filho de D. Emiliana. Imagine o estado em que ambos ficaram: ele moído e sonolento, ela com o espírito transtornado, e o coração... o coração agradecido, lisonjeado, satisfeito enfim de haver encontrado uma alma menos austera que a do primo.

A primeira cousa que a moça devia concluir é que o rapaz tinha-lhe mais amor a ela do que à vida eclesiástica; mas, posto o sentisse, não formulou o espírito esta natural descoberta. Pedro não foi lá na manhã nem na tarde desse dia; foi à noite. Se lhe custara a vigília, recebeu logo ali a paga, que foi um olhar de agradecimento, não meditado e intencional, mas espontâneo e quase inconsciente; o primeiro olhar de mulher que o filho de D. Emiliana recebera em sua vida. O padre Sá estava presente; Alexandre chegou pouco depois. Não achando logo ocasião propícia para dizer o que queria, Pedro resolveu dizê-lo em voz alta.

- Padre-mestre, há alguma oposição entre a poesia e a vida religiosa?

- Nenhuma... O padre Caldas fez versos, mas versos pios...

- Pois eu fiz mais do que prometi - tornou o moço, sublinhando estas palavras -, também fiz versos.

- Versos?

- E à lua.

O padre Sá coçou a ponta do nariz com ar de pouca aprovação; mas o rapaz, sem embargo disso, sacou da algibeira um papelinho dobrado, que deu a Lulu.

- Leia para si ou para todos - disse ele -; e peça ao padre-mestre que me perdoe o pecado.

Não transcrevo aqui os versos do rapaz, que eram melhores de intenção que de execução. A moça leu-os trêmula e comovida; e estendeu depois o papel ao tio, que o não quis receber.

- Não quero - disse ele -; perdoo-lhe; vá lá; mas ainda em cima ler uma obra de intenção profana, que lhe desdoura talvez a sua vocação, é... daí, quem sabe? Podem dizer-se cousas bonitas à lua, como obra do Criador...

- Não foi nesse sentido que ele escreveu - disse Alexandre, que recebera o papel recusado pelo padre Sá, e lia os versos para si. - Não foi nesse sentido; fala em suspiros à lua, a quem pede que seja testemunha de que nada há no mundo mais doce do que o sentimento que o domina e nem maior do que o alvo de suas aspirações santas.

- Aprovo - disse o padre Sá -; mas para dizer isso, não precisava falar à lua e era indiferente a prosa ou o verso.

Lulu recebera de novo o papel que o primo lhe dera; e o padre notou nessa noite a preocupação e acanhamento da sobrinha, e a singular alegria de Alexandre. Era a primeira vez que o seu rosto severo se expandia; a primeira que lhe ouviam o riso franco e jovial.

Aqueles versos foram lidos e relidos na alcova pela inspiradora deles, que com eles sonhou durante a noite inteira, e acordou com eles na memória. No coração, leitor, no coração devo eu dizer que eles estavam, e mau é quando os versos entram pelo coração, porque atrás deles pode ir o amor. Lulu sentiu alguma cousa que se parecia com isso.

O que é triste e prosaico, o que eu devia excluir da novela, é a constipação do filho de D. Emiliana, uma forte constipação que apanhou nos seus passeios noturnos, e que o reteve em casa no dia seguinte. Fazê-lo adoecer de incerteza ou de qualquer outra cousa moral era talvez mais digno do papel; mas o rapaz constipou-se, e não há remédio senão admitir a coriza, suprimindo todavia as mezinhas que a mãe lhe deu e os discursos com que as temperou.

Os tais discursos não eram agradáveis de ouvir. Pedro não saíra ostensivamente de casa na noite sacrificada ao capricho de Lulu; deitou-se à hora de costume e meia hora depois, quando sentiu a família acomodada, levantou-se e, graças à cumplicidade de um escravo, saiu à rua. De manhã voltou, dizendo que saíra cedo. Mas os olhos com que vinha, e o longo sono que dormira em toda a manhã até às horas do jantar descobriram toda a verdade aos olhos perspicazes de D. Emiliana.

- Padre! - dizia ela -; e um mariola destes quer ser padre!

Constipado o rapaz, deixou de sair dois dias; e, não saindo ele, a moça deixou de rir ou sorrir sequer, enquanto o primo temperava a gravidade do seu aspecto com desusada alegria e singular agitação, que nada pareciam ter com Lulu. O tio aborreceu-se com esta aparência de arrufos; achou pouca generosidade da parte de Alexandre, em mostrar-se jovial e descuidado, quando a moça parecia preocupada e triste, e resolveu acarear os dois corações e dizer-lhes francamente o que a respeito deles pensava, na primeira oportunidade que se lhe oferecesse.

IX

A noite seguinte foi de amargura para Lulu, que ouviu ao primo dizer baixinho ao filho de D. Emiliana:

- Preciso falar-lhe.

- Pronto.

- A sós.

- Quando quiser.

- Esta mesma noite.

Pedro fez um gesto de assentimento.

O tom da voz de Alexandre não revelava cólera; todavia, como ele dizia gravemente as cousas mais simples, Lulu estremeceu ao ouvir aquele curto diálogo e teve medo. Que haveria entre os dois logo que dali saíssem? Receosa de algum ato de vingança, a moça tratou nessa noite o primo com tamanha afabilidade que as esperanças do padre Sá renasceram, e Pedro cuidou ter perdidas todas as que ele tinha. Ela tentou prolongar a visita dos dois; mas reconheceu que era inútil o meio e que, uma vez saídos dali, qualquer que fosse a hora, podia dar-se o que ela receava.

Teve outra ideia. Saiu repentinamente da sala e foi direito a tia Mônica.

- Tia Mônica - disse a moça -; venho pedir-lhe um grande favor.

- Um favor, nhanhã! Sua preta velha obedecerá ao que lhe mandar.

- Quando meu primo sair daqui com o senhor Pedro você vai acompanhá-los.

- Jesus! Para quê?

- Para ouvir o que eles dizem, e ver o que houver entre eles, e gritar por socorro se houver algum perigo.

- Mas...

- Por alma de minha mãe - suplicou Lulu.

- Mas não sei...

Lulu não ouviu o resto; correra à sala. Os dois rapazes, já de pé, faziam as suas despedidas ao padre e despediram-se dela até o dia seguinte; este dia seguinte ecoou funebremente no espírito da moça.

Tia Mônica vestira à pressa uma mantilha e desceu atrás dos dois rapazes. Ia resmungando, receosa do que fazia ou do que podia acontecer, nada compreendendo daquilo, e entretanto cheia do desejo de obedecer à vontade de sinhá moça.

O padre Sá estava mais jovial do que nunca. Logo que ficou a sós com a sobrinha, disse-lhe dois gracejos paternais, que ela ouviu com um sorriso à flor dos lábios; e o serão acabou logo depois.

Lulu recolheu-se ao quarto, sabe Deus e imagina o leitor com que medos no coração. Ajoelhou diante de uma imagem da Virgem e orou fervorosamente... por Pedro? Não; por um e outro, pela vida e paz dos dois moços. O que não se sabe é se pediu alguma cousa mais. Provavelmente, não; o maior perigo naquela ocasião era aquele.

A oração pacificou-lhe a alma; recurso poderoso que só conhecem as almas crentes e os corações devotos. Aquietada, esperou a volta de tia Mônica. As horas entretanto correram lentas, e desesperadoras. A moça não saiu da janela salvo duas ou três vezes para vir de novo ajoelhar-se diante da imagem. Meia-noite bateu e começou a primeira hora do dia seguinte sem que o vulto da boa preta aparecesse ou o som de seus passos interrompesse o silêncio da noite.

O coração da moça não pôde resistir mais; as lágrimas brotaram dela ardentes, precipitadas e ela atirou-se à cama toda entregue ao seu desespero. Sua imaginação pintava-lhe os quadros mais tristes; e pela primeira vez sentiu ela toda a intensidade do novo sentimento que a dominava.

Era uma hora quando o som pausado e seco de uma chinela soou nas pedras da rua. Lulu adivinhou o passo da tia Mônica; foi à janela; um vulto aproximava-se da porta, parou, abriu cautelosamente com a chave que levava e entrou. A moça respirou, mas à primeira incerteza começava uma segunda. Era muito ver a preta de volta; restava saber o que acontecera.

Tia Mônica subiu as escadas, e já achou no patamar a sinhá moça, que a fora esperar ali.

- Então? - perguntou esta.

A resposta da preta foi nenhuma; travou-lhe da mão e encaminhou-se para o quarto da moça.

- Ah! Sinhá Lulu, que noite! - exclamou tia Mônica.

- Mas dize, dize, que aconteceu?

A preta sentou-se com a liberdade de uma pessoa cansada, e velha, e quase mãe daquela filha. Lulu pediu-lhe que dissesse tudo e depressa. Depressa, era exigir muito da pobre Mônica, que, além da idade, tinha o sestro de narrar pelo miúdo os incidentes todos de um caso ou de uma aventura, sem excluir as suas próprias reflexões e as circunstâncias mais alheias ao assunto da conversação. Gastou, portanto, a tia Mônica dez compridíssimos minutos em dizer que nada ouvira aos dois rapazes desde que dali saíra; que os acompanhara até ao largo da Imperatriz e subira com eles até a um terço da ladeira do Livramento, onde morava Alexandre, em cuja casa ambos entraram e se fecharam por dentro. Ali ficou, do lado de fora, cerca de meia hora; mas não os vendo sair, perdeu as esperanças e voltou para a Gamboa.

- Fui e vim com o credo na boca - terminou tia Mônica -; e dou graças à Virgem Santíssima por me ver aqui sã e salva.

Pouco sabia a moça; ainda assim aquietou-se-lhe o espírito. Tia Mônica era um tanto curiosa, e em prêmio do seu trabalho achou natural saber a razão daquela excursão noturna.

- Oh! Não me pergunte nada, tia Mônica! - respondeu Lulu -. Amanhã lhe direi tudo.

- Já sei mais ou menos o que é - disse a preta -; negócio de paixãozinha de moça. Não faz mal; eu adivinhei tudo...

- Tudo? - perguntou maquinalmente a sobrinha do padre Sá.

- Há muito tempo - continuou tia Mônica -; há seis meses.

- Ah!

- Seu primo de vosmecê...

- Oh! Cale-se!

- Está bom, não digo mais nada. Só lhe digo que espere em Nossa Senhora, que é boa mãe e há de fazê-la feliz.

- Deus a ouça!

- Agora sua preta velha vai dormir...

- Vá, tia Mônica; Deus lhe pague!

Neste momento, ouviu-se no corredor o ruído de uns passos que se afastavam cautelosamente.

- Que foi? - disse Lulu.

- Não sei... Abrenúncio! Ouviu alguma cousa?

A moça foi resolutamente à porta, abriu-a; o corredor estava escuro. Tia Mônica saiu com a vela e não viu nada. Deram-se as boas noites; a moça voltou ao seu leito, onde, sobre a madrugada, conseguiu enfim dormir. Tia Mônica dormiu logo o sono dos anjos, ia eu dizer, e o digo porque ela foi verdadeiramente angélica naquela aventurosa noite.

X

De quem seriam os passos ouvidos no corredor, senão do padre Sá que percebera movimentos desusados na casa, ouvira a entrada da tia Mônica e quis saber a razão de tal saída a desoras? Alguma cousa soube, quanto bastou para que no dia seguinte se acordasse com a resolução feita de concluir dentro de poucas semanas o casamento da sobrinha com o sobrinho.

- Ou se a não ama, que o diga logo de uma vez - pensou o bom padre -; é melhor do que fazer padecer a minha pobre Lulu.

Ao mesmo tempo, pensou que não houvera prudência da parte da sobrinha em mandar emissários atrás do primo e fazer intervir criados em cousas de tanta monta.

- É preciso repreendê-la, porque não andou em bom caminho, nem a eduquei para leviandades tais.

Isto disse o padre Sá, mas foi só dizer, porque, logo que viu a sobrinha e lhe leu no rosto todas as amarguras da noite e os sinais de longa vigília, ficou tomado de comiseração e a severidade cedeu o passo à ternura.

Preferiu repreender a tia Mônica, depois de a interrogar acerca dos sucessos da véspera. A preta negou tudo, e mostrou-se singularmente admirada com a notícia de que ela havia saído de noite; o padre, porém, soube fazê-la confessar tudo, só com lhe mostrar o mal que havia em mentir. Nem por isso ficou sabendo muito; repreendeu a preta, e foi dali escrever uma cartinha ao sobrinho.

A carta foi escrita, mas não foi mandada. Daí a meia hora, anunciava-se nada menos que a rotunda pessoa da senhora D. Emiliana, que veio até à Gamboa arrastando a sua paciência e a sua idade, com grande espanto do padre Sá, que nunca a vira ali; D. Emiliana pediu muitas desculpas ao padre da visita importuna que lhe fazia, pediu notícias da sua obrigação, queixou-se do calor, beijou três ou quatro vezes a face de Lulu, deitando-lhe duas figas para a livrar do quebranto, e só depois destes prólogos expôs o motivo do passo que acabava de dar.

- Não admira, padre-mestre - disse ela -, não admira que eu aqui venha, porque enfim... ora, que há de ser? Cousas de rapazes...

- De rapazes?

- De rapazes e moças; ou antes, desta única moça, bonita como ela só!... Que olhos que ela tem! Dá cá outro beijo, feiticeira.

Lulu beijou a boa velha, e ficou ainda mais ansiosa que o tio por ouvir o resto da exposição. O padre fez sinal à sobrinha que se retirasse; não o consentiu D. Emiliana.

- Oh! Ela pode ficar aqui! Não vou dizer nada que ela não deva ouvir. O que eu desejava saber antes de tudo, padre-mestre, é se tem feito alguma cousa para que o meu Pedro tome ordens.

- Tenho, decerto...

- Bom.

- E que mais?

- E se é ainda na intenção casar este anjinho com o senhor Alexandre... Alexandre, creio que é o nome dele?

- Mas... não sei a que propósito...

- A propósito de que estive hoje de manhã com o futuro esposo e o futuro padre, e ambos me pediram que interviesse por eles, de maneira que não houvesse demora nem no casamento nem na entrada no seminário.

- Nenhuma demora, D. Emiliana - disse o padre -; é o meu maior desejo. Acho até esquisito que, por uma cousa tão simples...

- É menos simples do que parece.

- Ah!

- Menos simples, porque eles oferecem uma condição.

- Uma condição?

- Sim, Reverendíssimo; ambos estão prontos a satisfazer os seus desejos, com a condição de que os há de trocar, passando o marido a ser padre, e o padre, a ser marido.

O dono da casa deu um pulo na cadeira. Dona Emiliana assustou-se vendo o gesto, mas voltou logo os olhos para a moça, cujo olhar, radiante de prazer, mostrou à boa velha a excelente impressão que lhe fazia a notícia. Lulu beijou a mão de D. Emiliana, e este simples gesto revelava ao tio o estado do seu coração. O padre esteve algum tempo calado. Depois sorriu e disse:

- De maneira que tive a perspicácia de enganar-me até hoje; e ia fazer, sem consciência, um mau padre e um mau marido.

- Justamente - disse D. Emiliana.

- E cuidava ter-lhes adivinhado a vocação! Sempre lhe direi, contudo, que são dois velhaquetes os rapazes... Mas não importa; terei o padre e o esposo de Lulu, e direi a Deus como Salomão: "Duas cousas te pedi; não mas negues antes que morra!"

Não lhas negou Deus; o esposo e o padre foram exemplares; um está cônego; o outro trata de fazer o filho ministro de Estado. É possível que, a fazer as cousas como as queria o padre Sá, não houvesse nem cônego, nem ministro.

Segredo de vocação.

Mas que tem com esta história o título que lhe pus? Tudo; são umas vinte páginas para encher tempo. Em falta de cousa melhor, lê-se isto, e dorme-se.

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