Conto

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1876

V

Naquela mesma tarde, dirigiu-se Pedro à casa do padre Sá, levando na ponta da língua uma lição latina que o padre lhe dera na véspera, e saboreando de antemão os aplausos do mestre. Ia lépido e risonho, pela Gamboa fora, com a alma ainda mais azul do que estava o céu naquele momento, e o coração a bater-lhe tão forte como as vagas na areia da praia. O padre Sá, se o visse naquele estado, se pudesse adivinhar todo o júbilo daquele coração, daria graças ao céu pela rara pérola que lhe fora dado achar para a coroa mística da Igreja.

Entretanto, o discípulo tinha outra cara, quando ali entrou. A comoção ou acanhamento ou o que quer que fosse tirava-lhe o tom expansivo do semblante.

- Ora, venha cá, meu futuro bispo! - exclamou o padre Sá, logo que o viu entrar -; não core, que ainda o há de ser, se tiver juízo e Deus o ajudar. Resposta nenhuma?

- Nenhuma.

- Oh! Mas eu estou certo de que há de ser favorável. Seu tio é homem de juízo.

Pedro fez um gesto de assentimento, e estendeu a mão à sobrinha do padre, que entrava nesse momento no gabinete. A moça assistiu à lição de Pedro; e a sua presença foi antes prejudicial que benéfica. O discípulo sentiu-se acanhado, esqueceu o que sabia, e recebeu alguns conselhos paternais do padre, sem ousar dar nenhuma desculpa.

- Não o censure, titio - disse a moça -; fui eu a causa de alguns esquecimentos do senhor Mendes; devia ter-me retirado.

- Oh! Não! - murmurou Pedro.

- Devia.

- Confesso que ontem não pude estudar a lição - disse Pedro com a voz trêmula.

- Basta - declarou enfim o padre -; sair-se-á melhor amanhã.

Havia já dois meses que o filho de D. Emiliana frequentava a casa do padre Sá, e ia regularmente receber as lições que ele lhe dava. A compostura do moço era exemplar; o gosto com que o ouvia, a facilidade com que retinha o que ele lhe ensinava, a vocação enfim que o padre lhe achou foram outros tantos laços que mais intimamente os prenderam um ao outro. Além daquelas qualidades, Pedro era bom conversador, dotado de maneiras afáveis, e tinha a pachorra (dizia o padre Sá) de aturar uma companhia aborrecida como a dele.

Verdade é que a companhia era aumentada com a de Lulu, que, se raras vezes assistia às lições do moço, vinha conversar com eles o resto do tempo, bem como Alexandre, que um dia teve igualmente ideia de acompanhar o curso particular do padre Sá. O padre deliciava-se com aquele quadro; e as suas lições de filosofia ou de história sacra, de teologia ou de latim saíam-lhe menos da cabeça que do coração.

É de crer que se o padre Sá soubesse que o seu discípulo Pedro - futuro bispo - gastava alguma hora vaga na leitura do Gil Brás ou outros livros menos piedosos, é de crer, digo eu, que lhe fizesse amigável repreensão; mas o padre nada via nem sabia; e o discípulo não ia mal de todo. Demais, um por um ia-lhe Pedro lendo grande número de seus livros, que eram todos de boa doutrina e muita piedade. Ultimamente emprestara-lhe um Santo Agostinho; Pedro devorara-o e deu boa conta de suas impressões. A alegria do padre era sem mescla.

Naquela tarde, não houve trovoada; Pedro conservou-se lá até à noite. Às ave-marias chegou Alexandre; os dois moços estavam ligados pela afeição do mestre e tal ou qual analogia de sentimentos. Alexandre deu os parabéns a Pedro, que os recebeu com um modo modesto e grave. Saíram juntos, mau grado os olhares de Lulu, que pediam ao primo ficasse alguns minutos mais.

Iam calados a princípio; ao cabo de alguns minutos, Pedro rompeu o silêncio; louvou a alma, os sentimentos e as maneiras do padre, a felicidade que se respirava naquela casa, a boa educação de Lulu; finalmente tratou do seu futuro e da carreira que se lhe ia abrir.

Alexandre ouviu-o calado, mas não distraído; concordou em tudo com ele, e quando veio o ponto da carreira eclesiástica, perguntou:

- Aceita essa profissão por seu gosto?

Pedro hesitou um minuto.

- Aceito - disse enfim.

- Pergunto se por seu gosto - tornou Alexandre.

- Por meu gosto.

- É vocação?

- Que outra cousa seria? - observou Pedro.

- Tem razão. Sente um pendor irresistível para a vida da Igreja, uma voz interior que lhe fala, que o atrai violentamente...

- Como o amor.

- Oh! Deve ser mais forte do que o amor! - emendou Alexandre.

- Deve ser tão forte. O coração humano, quando alguma força o solicita, qualquer que ela seja, creio que recebe igual impressão. O amor é como a vocação religiosa; como qualquer outra vocação, exerce no homem o mesmo poder...

- Não, não creio - interrompeu Alexandre -. A vocação religiosa, por isso mesmo que chama o homem a uma missão mais elevada, deve exercer influência maior. O amor divino não pode comparar-se ao amor humano. Soube de nenhum sacrifício igual ao dos mártires da fé?

Pedro refutou, como pôde, a opinião do companheiro; e este redarguiu com argumentos novos, falando ambos com igual calor e interesse. A conversa parou quando ambos chegaram à porta da casa de D. Emiliana; Pedro entrou e o outro seguiu caminho.

Dona Emiliana não pôde atinar com a razão por que o filho naquela noite parecia tão preocupado. A verdade é que Pedro tomou o chá distraidamente; não leu nem conversou, retirou-se cedo para o quarto, e só muito tarde conseguiu dormir.

- Vou hoje decidir o teu negócio - disse-lhe D. Emiliana no dia seguinte.

- Ah!

- Teu tio vem cá hoje - continuou ela -. Entender-me-ei com ele...

- Sim; o amor divino...

- O amor divino? - repetiu D. Emiliana espantada.

- E o amor humano - continuou Pedro.

- Que é?

- A vocação religiosa é superior a qualquer outra.

- Compreendo; tens razão.

Pedro só ouvira estas últimas palavras da mãe; e olhou para ela com ar de quem saía de um estado de sonambulismo. Procurou lembrar-se do que acabava de dizer; e só muito confusamente repetiu mentalmente as palavras vocação religiosa, amor divino e amor humano. Viu que a conversa da noite anterior lhe ficara gravada na memória. Entretanto respondeu à mãe que efetivamente o estado eclesiástico era o melhor e mais puro de todos os estados.

Suas irmãs aplaudiram de coração a ideia de fazer-se padre o rapaz; e o irmão mais moço aproveitou o caso para manifestar o desejo de ser sacristão, desejo que fez rir a toda a família.

Restava a opinião do tio, que se não fez esperar e foi de todo o ponto conforme com o gosto dos demais parentes. Estava padre o moço; só lhe restavam os estudos regulares e a sagração final.

A notícia foi recebida pelo padre Sá com verdadeira satisfação, tanto mais sincera quanto que recebeu a resposta de D. Emiliana em momentos dolorosos para ele. Sua sobrinha jazia na cama; fora acometida de uma intensa febre de caráter grave. O velho padre deu um apertado abraço no moço.

- Oh! Eu bem sabia que não havia nenhuma dúvida! - exclamou ele.

Pedro soube que a moça estava enferma, e empalideceu quando o padre lhe deu esta triste notícia.

- Doença de perigo? - perguntou o futuro seminarista.

- Grave - respondeu o padre.

- Mas ainda ontem...

- Ontem estava de perfeita saúde. Era impossível contar com semelhante acontecimento. Entretanto, que há mais natural? Seja feita a vontade de Deus. Estou que ele há de ouvir as minhas orações.

O padre Sá, dizendo isto, sentiu uma lágrima borbulhar-lhe nos olhos; enxugou-a disfarçadamente. Contudo, Pedro viu-lhe o gesto e abraçou-o.

- Descanse, não há de ser nada - disse ele.

- Deus te ouça, filho!

VI

A tia Mônica, de quem se falou em um dos capítulos anteriores, era uma preta velha que havia criado a sobrinha do padre, e a amava como se fora sua mãe. Era liberta; o padre deu-lhe a liberdade logo que morrera a mãe de Lulu, e Mônica ficou servindo de companheira e protetora da menina, que não tinha outro parente, além do padre e do primo. Lulu nunca adoecera gravemente; ao vê-la naquele estado, a tia Mônica ficou desatinada. Passado o primeiro momento, foi um modelo de paciência, dedicação e amor. Velava as noites junto da cabeceira da doente, e apesar de estar toda entregue aos cuidados de enfermeira ainda lhe sobrava tempo para tratar da direção da casa.

A doença foi longa; durou cerca de quinze dias. A moça ergueu-se enfim da cama, pálida e abatida, mas livre de todo o mal. A alma do tio sentiu-se renascer. A certeza de que a moléstia desaparecera de todo dera-lhe vida nova. Ele padecera muito durante aqueles quinze mortais dias; e Pedro fora testemunha de sua longa aflição. Não foi só testemunha impassível, nem o consolou com palavras triviais; tomou boa parte nas dores do velho, fez-lhe companhia durante as noites de maior perigo.

Alexandre não foi menos assíduo nem menos dedicado à família; seu rosto austero e frio não revelava a dor íntima; mas ele sentia, decerto, a doença da prima e a aflição do padre. Suas consolações eram antes religiosas do que puramente humanas.

- Descanse, que ela há de viver - dizia ele -; mas dado que o Senhor a leve, podemos ter a certeza de que leva um anjo mais para o coro celeste. De lá veio, para lá tornará, tão puro como os que rodeiam o trono de Deus.

Pedro repelia esta ideia.

- Muitos são os anjos que estão no céu - dizia -; e poucos, raríssimos, os que Deus consente que desçam a este mundo. Por que há de levar aquele que é a felicidade e a glória de nosso bom mestre?

As palavras de ambos entravam no coração do padre; mas, por mais cristão que ele fosse, e era-o muito, as do filho de D. Emiliana iam-lhe mais direitas ao coração. O natural egoísmo da afeição humana dominava por instantes o sentimento religioso e a resignação cristã.

No dia em que a moça foi declarada sem perigo, Pedro chegara à Gamboa, não estando o padre em casa. A tia Mônica deu-lhe a agradável notícia. O rosto do moço expandiu-se; sua alegria fê-lo corar.

- Livre! - exclamou ele.

- Livre.

- Quem o disse?

- O doutor.

- Ela está mais animada?

- Muito animada.

- Oh! Diga-lhe de minha parte que dou graças a Deus pelo seu restabelecimento.

Cinco dias depois, Lulu saiu do quarto. A figura delicada da moça parecia mais bela e adorável depois da enfermidade. Um largo roupão branco envolvia-lhe o corpo emagrecido pela doença; os olhos amortecidos e a palidez do rosto davam-lhe um aspecto delicado e triste ao mesmo tempo. Vivia a moça; e não só a saúde voltara, mas com a saúde uma alegria não sentida até aquele dia, alegria toda filha do regozijo das pessoas que a amavam, da dedicação e zelo de que fora objeto durante os dias de perigo.

A convalescença foi rápida; durou cerca de oito dias. Durante esse tempo frequentou Pedro a casa do mestre, como nos dias anteriores, sem nada lhe perguntar acerca de seus próprios negócios, não só porque era indiscrição fazê-lo em momento como aquele, e quando o padre apenas começara a saborear o restabelecimento da sobrinha, como porque esta fazia com que as horas passassem depressa. Não se tratam negócios sérios sem tempo, e Pedro não tinha tempo.

Lulu não podia ler; e nem sempre a entretinham as histórias da tia Mônica. Pedro lia para ela ouvir alguns livros morais que achava na estante do padre, ou algum menos austero, ainda que honesto, que de casa levava para aquele fim. Sua conversa, além disso, era extremamente agradável; a dedicação, sem limites. Lulu via nele uma criatura boa e santa; e o hábito de todos os dias veio a torná-lo necessário.

No primeiro dia em que ela pôde chegar à janela, Pedro arrastou para ali uma poltrona de couro, deu o braço à moça e fê-la sentar-se. Eram onze horas da manhã; a atmosfera estava limpa e clara e o mar, tranquilo. A moça respirou a largos haustos, enquanto Pedro ia buscar o banquinho em que ela pousasse os pés.

- Pensei nunca mais ver isto - disse ela, agradecendo-lhe com um sorriso que fez baixar os olhos ao moço.

- Não fale assim! - suplicou este depois de algum tempo.

- Agora não há perigo; estou boa. Haviam de sentir a minha morte, creio; mas eu sentiria igualmente se deixasse a vida. Morrer moça deve ser triste!

Pedro pediu-lhe que mudasse de assunto, ameaçando-a de ir dizer tudo ao tio.

- Não é preciso! - exclamou uma voz.

Voltaram-se.

Era o padre que entrara na sala desde algum tempo e ouvia a conversa dos dois.

- E não lhe parece que tenho razão? - perguntou Pedro.

- Toda. Agora só se deve pensar na vida.

- Vê? - disse o moço, voltando-se para Lulu.

- O Alexandre já veio? - perguntou o padre Sá, depois de beijar a testa à sobrinha e abençoá-la como de costume.

Lulu ficou séria.

Aquela pergunta avivou-lhe a tristeza que lhe causava a ausência do primo, ausência de dezoito horas, o que era enorme, se atendermos ao estado da moça e às relações de suas almas. O tio notou-lhe a impressão e ficou igualmente sério.

"Nem tudo sai à medida dos nossos desejos", pensou ele; "não verei realizados os meus dois sonhos! Se sai dali um peralta..."

O pensamento foi interrompido pela entrada de Alexandre.

Lulu sorriu de contentamento ao ver o primo; mas reprimiu aquela expressão para de algum modo puni-lo do esquecimento em que a deixara. O velho padre foi menos diplomata; recebeu-o com a alma nas mãos.

Alexandre não reparou nem na dissimulação dela, nem na expansão dele; seus olhos foram direitos ao filho de D. Emiliana. Pedro sustentou o olhar com tranquilidade; e se houvesse menos comoção da parte das testemunhas daquele olhar, veriam que ambos pareciam querer sondar um ao outro.

A moça esperou que o primo, em desconto de seus pecados, a tratasse com a ternura a que o seu coração tinha jus; mas Alexandre parecia preocupado; e ela entregou-se toda à conversação do outro. Uma canoa que cortava as águas tranquilas do mar serviu de pretexto e começo à palestra. O que eles disseram da canoa, do mar, da vida marítima, e mais ideias correlativas dificilmente caberia neste capítulo, e com certeza exigia alguns comentários, visto que algumas frases tinham tanto com o assunto como a leitora com o doge de Veneza. Alexandre contemplava-os sem morder o lábio com raiva, nem dar o menor sinal de despeito. Seu rosto marmóreo não revelava o que se passava no coração. Não tardou que ele próprio interviesse na conversa. O padre Sá aproveitou a ocasião para chamar o filho de D. Emiliana à explicação de um ponto teológico. Pedro afastou-se do grupo com dificuldade; mas a conversa entre os dois morreu, como lâmpada a que faltou óleo.

VII

Lulu notou a esquivança do primo e a frieza que lhe mostrava. Certo é que nunca lhe achara a expansão, nem a ternura que era natural exigir de um namorado. Alexandre era sóbrio de palavras e seco de sentimentos. Os olhos com que a via eram sérios, sem flama nem viveza - "olhos de imagem", dizia-lhe ela um dia gracejando. Mas se ele fora sempre assim, agora parecia mais frio do que nunca, e a moça procurou saber a causa daquela agravação de impassibilidade.

- Ciúmes? - pensou ela.

Ciúmes de Pedro, devia dizer; mas nem ela nem a leitora precisam de nada mais para completar o pensamento. De quem seriam os ciúmes senão daquele rapaz, que se mostrava assíduo, afável, dedicado, que a tratava com esmero e afeição?

A moça riu da descoberta.

- Um quase padre! - exclamou ela.

Daí a poucos dias o padre Sá disse ao filho de D. Emiliana que os seus negócios iam perfeitamente e que dentro de pouco tempo devia dizer adeus a quaisquer ocupações estranhas aos preparatórios eclesiásticos.

- Faça exame de consciência - disse a moça, que estava presente à conversa dos dois -; e prepare-se para...

- Para casar-te? - perguntou sorrindo o tio.

Lulu corou ouvindo aquelas palavras. Sua ideia não era casamento: era um gracejo fúnebre e tão descabido que a frase lhe morrera nos lábios. O que ela queria dizer era que Pedro se preparasse para rezar-lhe o responso. A interrupção do tio desviou-lhe o pensamento do gracejo para dirigi-lo ao primo. Corou, como disse, e refletiu um instante.

"Oh! Se ele me amasse com o mesmo ardor com que este ama a Igreja!", pensou ela.

Depois:

- Falemos de cousas sérias - continuou ela em voz alta -: desejo vê-lo em breve cantar uma missa ao lado de titio.

Na noite desse mesmo dia, Alexandre foi à casa do padre Sá. Ia preocupado e pouco se demorou. O tio notou-lhe a diferença e ficou preocupado. Conjecturou mil cousas para aquela mudança do sobrinho, sem atinar qual delas era a verdadeira. Lulu ficou igualmente triste; não digo bem, havia tristeza, mas havia outra cousa também, havia despeito; e menos o amor do que o amor-próprio começava a sentir-se ofendido.

Pedro aproveitou a primeira ocasião em que o padre saiu da sala para lhe perguntar o motivo daquela súbita melancolia.

A moça estremeceu como se acordasse sobressaltada de um sono.

- Não ouvi - murmurou ela.

- Perguntava-lhe por que motivo ficou assim pensativa.

- Um capricho - respondeu a moça.

- Um capricho satisfaz-se.

- Nem todos.

- Quase todos. Não pede decerto a lua?

- A lua... não - respondeu ela procurando sorrir e esquecer -; mas alguma cousa que tem relação com ela.

- Diga o que é.

- Estava desejando... que o senhor ficasse esta noite ali fora a contemplar a lua e a fazer-lhe versos - disse ela rindo -. Nunca fez versos?

- Um hexâmetro apenas.

- Não sei o que é; mas não importa. Era capaz disso?

- Suprima os versos e a cousa é fácil - respondeu Pedro sorrindo.

- Fácil! - exclamou Lulu.

E depois de alguns instantes de silêncio:

- Não era bem isso que eu desejava - continuou ela -; mas alguma cousa análoga, algum sacrifício... tolice de moça...

Lulu ergueu-se e foi à janela para disfarçar a comoção; Pedro deixou-se ficar na cadeira. Daí a pouco, ouviram-se os passos do padre Sá; o moço pegou num livro e abriu-o ao acaso e entrou a ler. A tristeza de Lulu foi observada pelo tio, que assentou de si para si convidar o sobrinho a uma conferência, resoluto a conhecer o estado das cousas.

"Amam-se, não há dúvida", pensava o velho; "mas há alguma cousa, decerto, que eu não posso descobrir. É necessário sabê-lo."

Pedro demorou-se em casa do padre até depois de nove horas. A moça presidiu ao chá com a graça habitual, e um pouco mais livre das comoções daquela noite. Acabado o chá, Pedro despediu-se do velho sacerdote e da sobrinha. A moça acompanhou-o até à porta do gabinete, enquanto o tio preparava o tabuleiro das damas para a partida de costume.

- Boa noite - disse Lulu apertando a mão ao filho de D. Emiliana.

- Boa noite - respondeu este.

E mais baixo:

- Verá hoje mesmo que lhe satisfaço o capricho.

Lulu ficou estupefacta ao ouvir aquelas palavras; mas não pôde pedir maior explicação, não só porque o tio ficava a poucos passos, como porque o moço só lhe dera tempo de ouvi-lo; saíra imediatamente.

A partida de damas foi aborrecida e não durou muito. Ambos os contendores estavam preocupados de cousas mais sérias. Às nove e meia despediram-se para ir dormir.

- Vê se o sono te dá melhor aspecto - disse o padre Sá dando a mão a beijar à sobrinha.

- Estou hoje mais feia que de costume?

- Não; mais triste.

- Não é tristeza, é cansaço - respondeu a moça -; dormi pouco a noite passada.

Despediram-se.

Lulu, apenas entrou no quarto, correu à janela; fê-lo com a curiosidade vaga de saber se o filho de D. Emiliana realizara a promessa de satisfazer-lhe o capricho. A praia estava deserta.

"Naturalmente!",disse ela consigo. "Para obedecer a uma tolice minha era necessário cometer tolice maior."

Lulu entrou, destoucou-se, deixou os vestidos, envolveu-se em um roupão e sentou-se ao pé da janela. Ali ficou cerca de meia hora absorvida em seus pensamentos; a figura de Alexandre flutuava-lhe no espírito, confundindo-se às vezes com a de Pedro. Ela comparava a assiduidade de um com a frieza do outro; frieza que ela atribuía ora a um sentimento de ciúme, ora ao amortecimento da antiga afeição. Esta mesma afeição, a moça entrou a analisá-la, a estudá-la no passado sem lhe achar intensidade igual à sua. Nunca duvidara do amor de Alexandre; mas agora que o dissecava reconhecia que era um amor grave e refletido demais, sem aquela exuberância própria da mocidade e do coração.

Lulu não reparava que esta mesma segurança de vista com que apreciava o estado do coração do primo era prova de que o seu estava menos alienado pela paixão. O que ela de todo ignorava era que aquele primeiro afeto, nascido do costume, nutrido da convivência, era menos espontâneo e irresistível do que parecia. Suas alegrias e tristezas não vinham das raízes do coração, não lhe estremeciam a alma, nem a cobriam de luto.

Nisto não pensava ela; mas começou-o a sentir naquela noite, e pela primeira vez o coração pediu alguma cousa mais do que um afeto mal sentido e mal correspondido.

No meio dessas sensações vagas, sonhos indecisos, aspirações e ânsias sem objeto, ergueu-se a moça disposta a recolher-se. Ia cerrar as venezianas da janela, quando viu um vulto na praia, a passear lentamente, parando às vezes de costas para o mar. Apesar da lua, que então começava a surgir brilhante e clara, Lulu não pôde conhecer quem era, todavia as palavras de Pedro estavam-lhe na memória. Afirmou a vista; e o talhe e o andar pareceram-lhe do moço. Seria ele? A ideia era tão extravagante que a moça repeliu-a imediatamente; esperou algum tempo à janela. Quinze minutos decorreram sem que o vulto, quem quer que fosse, se retirasse dali. Tudo parecia dizer que era o filho de D. Emiliana; contudo, a moça quis prolongar a experiência; fechou a janela e retirou-se.

Meia hora decorreu - meia hora de relógio, mas uma eternidade para a alma curiosa da moça, lisonjeada com aquele ato do rapaz, lastimando e desejando o sacrifício.

- Impossível! - dizia ela -. É impossível que uma brincadeira... Mas aquela é a figura dele; e demais quem viria colocar-se ali, a esta hora, a passear solitário...

Lulu abriu de novo a janela; o vulto lá estava, desta vez sentado em uma pedra, fumando um charuto. Logo que ela abriu a janela, o vulto, que parecia olhar para lá, ergueu-se e entrou a passear de novo, com o mesmo passo tranquilo de um homem disposto a velar a noite na praia. Há de ser por força um passo diferente dos outros; pelo menos, assim o achou a sobrinha do padre Sá.

A certeza de que era o filho de D. Emiliana produziu no espírito da moça uma revolução. Que razão havia para aquele sacrifício, sacrifício inconfessável, tão ridículo havia de parecer aos olhos dos outros, sacrifício solitário e estéril? Lulu acostumara-se a ver no moço um futuro padre, um homem que ia romper com todas as paixões terrenas, e surgia-lhe, quando menos esperava, uma figura de novela antiga, cumpridor exato de uma promessa fútil, obediente a um capricho manifestado por ela em hora de despeito.

Lulu fechou de novo a janela e dispôs-se a dormir; fê-lo por pena do rapaz; uma vez fechada a casa, era provável que o seu fiel cavaleiro se fosse deitar também, apesar do calor que fazia e da vantagem que há em passear à lua numa cálida noite de fevereiro. Foi esta a esperança; mas nem por isso a moça dormiu logo. A aventura espertara-a. Contudo, não se atreveu a erguer-se de novo, com medo de animar o sacrifício do moço.

Dormiu.

O sono não foi seguido nem tranquilo; ela acordou dez vezes; dez vezes reconciliou o sono a muito custo. Sobre a madrugada, ergueu-se e foi à janela. Não a abriu; enfiou os olhos por uma fresta. O vulto lá estava na praia sentado, a fumar, com a cabeça nas mãos como a ampará-la de pesada que havia de estar com a longa vigília.

A leitora poderia achar extravagante a ação do rapaz; mas estou convencido de que não conseguiria mais reconciliar o sono.

Foi o que aconteceu à sobrinha do padre Sá.

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