Conto

Encher Tempo

1876

Encher tempo *

Capítulo primeiro

A tarde era uma tarde de dezembro - trovejada como elas eram há trinta anos -, quando o céu parecia querer vir abaixo, desfeito em raios e água. O calor fora excessivo durante a manhã toda; às duas horas o céu começou a enegrecer, às três e meia desfechou a tormenta que pouca gente apanhou na rua, porque esta sagaz população fluminense, contando com ela, houve-se de modo que estava toda recolhida na ocasião. Os que eram sinceramente piedosos acenderam uma vela benta diante do oratório e rezaram uma ladainha puxada pela dona da casa e respondida por toda a família; outros envolviam-se em cobertores de lã, outros viam cair a chuva; ninguém, absolutamente ninguém andava por fora.

Ninguém, digo mal; uma só pessoa talvez aventurara-se a andar na rua, em tão desabrida tarde; era um rapaz de cerca de dezoito anos com princípios de barba, alto e amorenado, que seguia da praia da Gamboa e entrava na rua do Livramento. Ia embuçado num capote pardo, e tinha um guarda-chuva aberto, felizmente largo, mas que, ainda assim, mal lhe preservava o corpo; todo o capote da cintura para baixo ia alagado; os pés nadavam-lhe dentro de um par de sapatos de bezerro. Vencida a praia da Gamboa, entrou o moço em uma das ruas transversais que vão dar à do Livramento; ali teve de passar contra a corrente, um rio de água barrenta que descia, graças ao declive do solo. Enfim, meteu-se pela rua do Livramento, e apertando mais o passo pôde chegar a salvo a uma casa assobradada, de três janelas, em cujo corredor entrou. Ao depois de fechar a muito custo o guarda-chuva, pôde ouvir, nos intervalos dos trovões, as vozes alternadas da família, que cantava uma ladainha a Nossa Senhora. O moço não quis bater à porta, e antes de acabada a reza, deixou-se ficar, no corredor, a ver cair a chuva, a ouvir os trovões, benzendo-se quando os relâmpagos eram mais fortes.

A trovoada daquela tarde não durou muito; trinta e cinco minutos apenas. Logo que acabou, cessou dentro a reza, e o rapaz bateu à porta de mansinho. Havia escrava para abrir a porta; mas a dona da casa veio em pessoa; - não queria saber quem era, porque adivinhava bem quem podia ser, mas abraçar o moço e "passar-lhe uma repreensão".

O abraço foi cordial e verdadeiramente de mãe, e não menos cordial e materna foi a repreensão que logo em seguida lhe deu.

- Entra, maluco! - exclamou a senhora D. Emiliana da Purificação Mendes. - Olhem em que estado vem isto?... Deixar-se ficar na rua com semelhante tempo!... E as constipações e as tísicas... Deus me perdoe! Mas cá está a mãe para cuidar da doença... E o dinheiro para a botica... E os incômodos... Tudo para que este senhorzinho ande por fora a trocar as pernas, como um vadio que é... Deixa estar! Eu não hei de durar sempre, hás de ver depois o que são elas!... Por ora é muito bom; cama e mesa...

- Mamãe - articulou o rapaz -, deixe-me ir mudar a roupa; estou todo molhado.

- Vai, vai - troou a senhora D. Emiliana -, cá tens a tua criadinha para te dar roupa lavada e enxuta, meias para os pés, e os suadouros. Anda, pelintra! Sai daqui!

Este monólogo durou ainda cerca de quinze minutos; era a diferença que, se D. Emiliana até então falara somente, dali em diante falava e tirava a roupa dos gavetões da cômoda e ia pôr tudo na alcova do filho, intercalando os adjetivos de censura com algumas recomendações higiênicas, a saber, que não deixasse enxugar a roupa no corpo, que esfregasse os pés com aguardente e não esquecesse calçar as meias de lã. Duas mocinhas, uma de quinze, outra de dezasseis anos, e um menino de oito ajudavam a mãe, calados e medrosos, posto estivessem acostumados às explosões de D. Emiliana, temperadas por enfraquecimentos de ternura.

As duas trovoadas passaram de todo; e tanto o céu como o rosto de D. Emiliana voltaram à serenidade anterior. Vestido, calçado e agasalhado, saiu da alcova o rapaz, e foi direitinho beijar a mão da mãe, e dar-lhe um abraço, que ela recusou a princípio, talvez por um sentimento de coquetice materna, que a fazia encantadora.

- Mano Pedro não tem juízo, não - dizia uma das moças -; ficar por fora com este tempo!... E mamãe a esperar por ele para jantar.

- É verdade, nem me lembrava disso! - exclamou D. Emiliana -. Já não é a primeira vez que me fazes esse desaforo!

Pedro viu iminente nova trovoada; e com arte e gesto arredou as nuvens ameaçadoras. O que ele disse foi que, a instância do padre Sá, jantara em casa dele.

- Fizeste muito bem - aprovou a mãe -; mas o que eu duvido é que, se lhe dissesses que eu não gosto de que jantes fora, ele teimasse no convite.

- Teimou.

- Deixa estar - concluiu a mãe -; eu saberei disso na missa de domingo.

Com esta ameaça terminou de todo o mau tempo doméstico. O atmosférico havia já acabado. As irmãs de Pedro, Cecília e Luísa, foram para a janela; o irmão pequeno, Luís, fez umas quatro canoas de papel e mandou pô-las na água das sarjetas da rua, indo ele vê-las da porta; enquanto D. Emiliana dava ordem para a merenda, e Pedro relia uma tradução de Gil Brás.

II

A leitura de Gil Brás não durou muito tempo, se é que durou algum, porque até hoje não está averiguado que o jovem Pedro tivesse naquela tarde o espírito na mesma direção dos olhos. Os olhos corriam pelo papel e a mão voltava tão regularmente à página que era difícil dizer que eles não liam. Há todavia razões para crer que o espírito vagueava distante do livro. Pois é pena que fizesse dessas escapulas, deixando um corpo gentil como era o dele, forte, sadio, e gracioso sem afetação; sobretudo, não se compreende que o espírito de Pedro não quisesse acompanhar no papel aquele par de olhos rasgados em forma de amêndoa, escuros e luminosos; uns olhos que tinham feito pecar a mais de uma moça do bairro e que o padre Sá namorava para o céu.

A noite veio clara e estrelada; e não tardou que a lua batesse de chapa nos telhados e calçadas úmidas da chuva da tarde. Dona Emiliana foi fazer meia na sala de costura, à luz de duas velas de espermacete, enquanto Luís recordava a lição, as meninas cosiam, e Pedro lia em voz alta uma novela que a mãe interrompia com reflexões substanciais de moral e disciplina.

No meio deste quadro caseiro bateram à porta, e um escravo veio dizer que estava ali o padre Sá! Leitura e costura foram interrompidas; D. Emiliana tirou os óculos de prata e levantou-se à pressa tanto quanto lhe permitia o anafado das formas, e saiu a receber a visita. Pedro acompanhou-a com igual solicitude.

- Seja muito bem aparecido, Reverendo - disse D. Emiliana, beijando a mão ao padre e convidando-o a entrar na sala -. Há mais de dois meses que não nos dá o prazer e a honra de vir abençoar as suas devotas.

- Deus as há de ter abençoado como merecem - respondeu o padre Sá.

Já a este tempo tinha o escravo acendido as arandelas da sala de visitas, onde o padre entrou logo depois, encostando a bengala a um canto e pondo o chapéu sobre uma cadeira. As meninas vieram beijar a mão ao sacerdote; D. Emiliana conduziu-o para o sofá; toda a família o rodeou.

- Passei por aqui - disse o sacerdote - e lembrou-me vir saber se o nosso Pedro apanhou a grande chuva desta tarde.

- Toda, padre-mestre - respondeu o moço.

- Logo vi; teimou em vir apesar de lhe dizer que não tinha tempo de chegar a casa...

- Valeu-me o seu capote.

- Não havia de valer muito.

- Chegou deveras todo molhado - observou D. Emiliana -; e, uma vez que o senhor padre te pedia que ficasses, devias ter ficado.

- A resposta que ele me deu é que a senhora estaria assustada supondo que algum desastre... Aprovei-o quando lhe ouvi esta razão.

Dona Emiliana olhou para o filho com ternura. Aquele olhar vingara-o da repreensão com que fora recebido. A conversa versou sobre assuntos gerais, mas todos de devoção e caridade. Tratou-se da próxima festa do Natal; veio a pelo mostrar ao padre Sá a toalha que D. Emiliana pretendia oferecer para o altar de Nossa Senhora das Dores, rica toalha de linho com entremeio de crivo e babadinhos de renda, não bruxelas nem malines, mas obra toda das mãos da prendada devota. Devota, era-o ela no verdadeiro e puro sentido da palavra, e nunca se dera mal com isso.

Esgotados aqueles assuntos, o padre Sá disse a D. Emiliana que tinha de lhe falar sobre cousas de igual natureza, mas que pediam menos publicidade. A dona da casa fez retirar os filhos.

- Deixe ficar o Pedro - disse baixinho o padre -; ele não é demais.

Ficaram os três. Dona Emiliana, cuja curiosidade estava aguçada, arregalou os olhos e preparou os ouvidos para saber que assunto era aquele que exigia conferência particular. Algum pecado seria, alguma culpa, embora venial, do seu querido Pedro? O padre Sá não lhe deu muito tempo às reflexões, porque, mal a porta da sala se fechou, concluiu uma pitada começada e falou nestes termos:

- Dona Emiliana, conheço-a há alguns anos, e tenho-a sempre visto pontual no serviço de Deus, e zelosa no cumprimento dos seus deveres de cristã e católica.

- Espero em Deus, que me não há de desamparar - disse D. Emiliana, curvando a cabeça.

- Não há de, que ele nunca desampara os bons...

- Mas que será, Reverendíssimo? Dar-se-á caso que o meu Pedro...

Dizendo isto, D. Emiliana voltou a cabeça para o filho, que lhe ficava à esquerda e tinha os olhos no chão.

- O seu Pedro - interrompeu o padre Sá - tem coração assaz largo para amar a duas mães: a senhora e a Igreja. A Igreja não obriga ninguém, mas aceita, chama e recebe os homens de boa vontade. Ora, eu tenho visto que há em seu filho tal ou qual tendência para a vida eclesiástica; estuda latim comigo, dou-lhe lições de teologia, que ele ouve com grande aproveitamento; pode seguir curso regular e estou que há de dar um bom padre. Está nas mãos de Deus e nas dele chegar a bispo.

As palavras do padre Sá causaram alguma estranheza em D. Emiliana, e a boa senhora não respondeu imediatamente. A educação que dera a seu filho fora toda religiosa e pia; contudo, estava longe de supor-lhe tão claros sinais de vocação sacerdotal, isto quanto às antecedências. Quanto às consequências, não as pôde calcular logo; mas, além de recear que seu filho não desse um bom sacerdote, como ela desejava que fosse, acrescia que tinha assentadas algumas ideias totalmente outras. Um seu irmão, comerciante de grosso trato, prometera-lhe admiti-lo na casa e fazê-lo sócio dentro de alguns anos. Dona Emiliana era filha de negociante e viúva de negociante; tinha ardente desejo de continuar a dinastia comercial.

Ao cabo de alguns minutos de reflexão, respondeu ao padre Sá que teria imenso gosto em que seu filho fosse consagrado ao serviço da Igreja; mas que, entretanto, era obrigada a consultar seu irmão, com quem planeara cousa diferente daquela.

- Conheço seu irmão - disse o padre -, vi-o algumas vezes; estou persuadido de que dará resposta razoável.

- Nem lhe quero negar - continuou D. Emiliana - que não imaginava da parte de Pedro esse desejo de fazer-se padre...

- Pergunte-lho.

Pedro não esperou a pergunta; confessou que o padre Sá lhe dava lições de teologia e que ele gostava muito de as ouvir.

- Mas não quereria dizer a sua missa? - perguntou o padre sorrindo benevolamente.

- Queria - articulou Pedro.

Aceitou-se que a resposta seria dada alguns dias depois; ficando igualmente aprovado um aditivo de Pedro para que, independente da resposta, continuassem as lições teológicas do padre Sá. Dona Emiliana aceitou o aditivo com este popular axioma:

- O saber não ocupa lugar.

O padre Sá extraiu da caixa uma nova pitada e deu as boas noites à família, e mais as bênçãos do costume, sendo acompanhado até à porta pelas senhoras, e até à Gamboa, onde morava, pelo filho de D. Emiliana.

- Não quero violência - dizia em caminho o padre -; examine-se ainda uma vez e diga-me depois se é resolução sua tomar ordens. O que eu quero é que me saia padre moral, instruído e religioso, entendeu? Parece-me que a sua vocação é essa, e cada um de nós deve seguir a vocação que Deus lhe dá.

Pedro deixou o padre Sá à porta da casa e voltou-se para a rua do Livramento. Da praia, via a lua bater no mar, e ergueu os olhos para o céu coalhado de estrelas. A fronte ficou pensativa; e o moço parou durante alguns instantes. O que ele pensou, naquela ocasião, estando à beira do seu destino, não sei. Se a lua o soube, não o segredou a pessoa nenhuma.

III

O padre Sá subiu as escadas da casa em que morava, depois de fechar a porta da rua, recebeu uma vela das mãos de um preto, seu criado, e foi direito ao gabinete, onde tinha os livros, a escrivaninha e uma rede e alguns móveis mais. Não tirou a batina; era o seu trajo usual, dentro ou fora de casa; considerava-a parte integrante da pessoa eclesiástica.

O padre Sá tinha cinquenta anos; era de estatura mediana, calvo, com alguns cabelos raros e brancos na nuca e em volta da cabeça. Os olhos eram azuis, de um azul desmaiado, e ainda com muita luz, mas uma luz suave e penetrante, que dominava e atraía como o sorriso que lhe pairava frequentemente nos lábios. Das palavras que lhe ouvimos no capítulo antecedente não conclua o leitor que o padre Sá não tinha alguma hora de bom humor na vida. Sua índole era jovial; mas ele sabia conciliar a natureza com a austeridade do cargo. Ria, e amiúde, mas um riso honesto e paternal, que era um encanto mais no sacerdote.

Sentou-se o padre em uma vasta cadeira rasa, tirou de cima da mesa o breviário e leu durante alguns minutos. Deram as nove no relógio da casa; veio o criado saber se o padre queria tomar chá; e recebendo resposta afirmativa, voltou pouco depois trazendo-lho em uma larga bandeja. O chá era para duas pessoas. "Onde está o companheiro do padre?", perguntaria a leitora, se não visse apontar à porta da saleta a figura risonha e esbelta de uma moça.

- Sua bênção, titio - disse a moça caminhando apressadamente para ele -; demorou-se mais do que me disse. Com um ar tão úmido! Aposto que ainda não descalçou os sapatos?

- Não, Lulu, nem é preciso - respondeu o padre Sá, pegando-lhe na mão -. Estou afeito a temporais e umidades. Anda fazer o chá, que é tempo. Nove horas, não?

- Deram agora.

Lulu aproximou-se da mesa e preparou o chá para o velho padre, que a contemplava satisfeito e feliz.

- Veja se está bom de açúcar - disse ela entregando-lhe a xícara.

- Há de estar; como está sempre - respondeu o tio -, tanto te acostumaste a servir-me, que nunca há açúcar demais ou menos. Excelente! - continuou ele, levando a colherinha à boca -. Agora faze o teu chá e ouve uma notícia.

Lulu preparou uma xícara de chá para si e sentou-se do outro lado da mesa, diante do padre. Era uma deliciosa figurinha delgada e quebradiça, cintura de vespa, mãos de criança e, sobre tudo isto, uma voz angélica e doce, que adormecia o coração. Adormecia é a expressão verdadeira; podia-se viver ao pé dela sem que o coração pulsasse de amor, tão acima e fora da realidade parecia aquela amável criatura. Não havia fogo em seus olhos claros e serenos; havia luz somente, luz branda como de luar, que se lhe derramava por todo o rosto, alvo e levemente corado. Os cabelos, penteados em bandós, iam juntar-se atrás da cabeça e caíam em duas tranças finas, atadas na ponta por laços de fita azul. Azul era a cor do cinto que trazia destacando sobre o branco do vestido de cassa, cortado e trabalhado com extrema simplicidade. Nenhum enfeite mais; e quadrava-lhe tanto aquela ausência de adornos, que parece lhe destoaria o menor deles que se lembrasse de pôr.

O padre Sá admirou durante alguns instantes a sobrinha, não ostensivamente, mas à socapa, com uma reserva e discrição, cujo sentido era fácil de adivinhar. Ele não queria acordar-lhe o sentimento da vaidade, que faria desmerecer-lhe a natural beleza, cujo maior encanto era ser inconsciente e singela. Além disso, e antes disso, a alma vaidosa ficaria mais perto do pecado; e o padre Sá tinha posto todo o seu zelo em educar aquela alma na prática das virtudes cristãs.

- A tia Mônica onde está? - perguntou o velho sacerdote depois de alguns instantes.

- Deitou-se hoje mais cedo - respondeu a moça -, dói-lhe a cabeça, creio eu. Mas que notícia é a que me quer dar, titio?

- Curiosa! - murmurou o tio sorrindo.

- A culpa é sua.

- Uma notícia agradável a Deus - disse o padre reassumindo o seu ar grave -; um servo do altar alcançado por mim. O Pedro Mendes...

- Quer ser padre? - interrompeu a moça admirada.

- Parece-me que sim. Há algum tempo notei nele certa vocação eclesiástica; ouve-me com tanta atenção e respeito, é tão curioso das cousas sagradas, aprende tão depressa as lições que lhe dou nas minhas horas vagas, que me pareceu ver nele um bom levita do Senhor. Ontem, falei-lhe francamente nisso; e obtive boa resposta... Deita mais chá.

O padre estendera a xícara; a moça obedeceu prontamente.

- Mas parece tão criança para padre! - observou Lulu, restituindo a xícara ao tio.

- Oh! Mas daqui até lá! Pensas que eu tomei ordens com esta calva e estes cabelos brancos? Certamente que ele não vai tomar ordens amanhã. A resposta que obtive foi que tinha vontade de servir a Igreja; fiquei de falar à mãe, e agora mesmo venho de lá!

- Ah!

- Dona Emiliana não me deu resposta definitiva, mas creio que não haverá obstáculo sério. Imaginas tu a minha satisfação. Os que são verdadeiramente dedicados ao serviço do altar, como eu, têm um gosto infinito em colher bons servidores para ele, almas cândidas, vocações sinceras, fortes e puras! Se me sai naquele um pregador! Um Sampaio! Um Mont`Alverne! Se me sai um bispo! Talento tem ele; muita compreensão e vontade de saber...

O padre Sá continuou a louvar o futuro colega e a falar das vantagens da vida eclesiástica, a melhor de todas, dizia ele, se há vocação. Lulu tinha acabado o chá e ouvia-o com muito menos interesse do que a princípio. Educada pelo tio, compreendia e aprazia-se naquele gênero de conversação, contudo, era necessário que ela não durasse muito para poder estar atenta. O tio percebeu finalmente, e tratou de cousas menos austeras. Veio um tabuleiro de damas, jogo inocente em que os dois concorriam às vezes alguns minutos. Jogaram até às dez horas; despediram-se e foram dormir.

- Ah! - disse o padre, depois de abençoar a sobrinha -; sabes se o Alexandre estará doente?

- Não sei.

- Há dois dias que não aparece; é preciso mandar saber dele amanhã. Bela alma, aquele rapaz!

Lulu corou um pouco; beijou-lhe outra vez a mão e saiu. O tio acompanhou-a com olhos namorados, e ficou durante algum tempo concentrado e pensativo. Depois murmurou em latim este versículo dos Cantares : "Eu me assentei debaixo da sombra daquele a quem tanto tinha desejado; e o seu fruto é doce à minha garganta".

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