Conto

Dona Mônica

1876

II

A noite foi desconsolada e triste. E tão triste como a noite foi a seguinte madrugada, que viu o nosso Gaspar de pé, com os olhos cansados de não dormir.

Não era para menos o malogro da véspera. Gaspar vivia há cerca de seis anos somente para o tio Matias, único parente seu, além de D. Mônica; cercava-o de todas as atenções, as mesmas com que se guarda na carteira um bilhete de loteria. O tio gostava dele e dizia-o e provava-o. Era um velho bom, afável, talvez caprichoso e maníaco, mas em todo caso as boas qualidades superavam as aborrecíveis. Gaspar só lhe via o melhor lado; ao menos não dizia outra cousa. Era o seu parceiro obrigado ao gamão, o seu companheiro nos passeios que ele gostava de dar às vezes de manhã; o mais fiel agente dos seus negócios, e até o leitor obrigado dos debates parlamentares. Matias não tinha partido, não o tivera nunca; mas o seu lugar, qualquer que fosse o partido dominante, era a oposição. Nasceu oposicionista, como outros nascem governistas: pura questão de temperamento. Gaspar, que entendia tanto de política como de sânscrito, mostrava-se, entretanto, interessado e curioso e dava forte apoio às objurgatórias do velho Matias.

- Há hoje muito discurso? - perguntava este.

- Página e meia de Jornal.

- Que maçada para ti!

- Maçada? Ora! Além do prazer que lhe dou, tenho eu próprio muito gosto em ver bater este governo sem critério. Já viu nada mais desconsolado?

- Não me fales nisso!

E as colunas da folha caíam todas dos lábios de Gaspar nos ouvidos de Matias, intercaladas pelas ruidosas pitadas deste ou pelos comentários de um e outro.

Ora, todo esse trabalho de tão longo tempo ficou repentinamente perdido: os juros que ele contava receber do vasto cabedal de atenções, carícias, sorrisos, enfados de toda espécie, esses gulosos juros iam-se-lhe sem deixar o mínimo rasto e o pobre Gaspar voltava aos seus ordenados de modesto empregado público.

O malogro era de afligir o mais pacato. Gaspar faltou à repartição, além dos sete dias de nojo, mais uns cinco, quase meio mês ao todo, que lhe foi descontado na folha do pagamento. Além disto, que era já bastante, aconteceu que um ou mais dos colegas souberam do testamento de Matias, da herança de Gaspar e da cláusula que aquele lhe pusera, resultando deste conjunto de fatos a convicção geral na repartição de que o casamento de Gaspar e de D. Mônica era cousa certa. Um colega imediatamente inferior a ele chegou a pedir-lhe a sua intervenção para que o ministro lhe desse o lugar no dia em que ele, endinheirado, pedisse demissão.

- Qual demissão, qual casamento! - respondeu desabridamente o pobre herdeiro, resposta que foi repetida de boca em boca entre os colegas e comentada durante três dias.

Uma só cousa podia consolar, consolar é exagerado - fazer esquecer por alguns instantes o esvaecimento da herança; era Lucinda. Lucinda era uma mocinha de dezassete anos, cabelos castanhos, olhos da mesma cor, rosto oval e pé de sílfide. O pé foi o laço em que o sobrinho de Matias caiu. A metáfora pode não ser nova nem bonita, mas é perfeitamente exata. Lucinda sabia que tinha um pé formoso, esguio, leve, como devem ser os pés dos anjos, um pé alado, quando ela valsava e deixava entrevê-lo todo no meio dos giros em que se deixava ir. Sabia disso e gostava de que lhe admirassem o pé; daí resultava que, por mais comprido que fosse o vestido de Lucinda, não havia hipótese de estar ela assentada sem mostrar a pontinha do sapato. Et tout le monde sait qu'elle a le pied charmant, podia dizer o poeta. Gaspar fazia como tout le monde; via o pé e adorava-o. Acontece que entre tantos admiradores, Lucinda só esperava um, aquele que lhe falava ao coração; esse foi Gaspar. O resto adivinha-se. Amaram-se, disseram-se e pediram-se... um ao outro. O comendador Lima, pai da moça, percebeu as conferências ideais e sentimentais entre o pé da filha e a alma do rapaz, e não lhe pareceu mau casamento.

"É bom moço", pensou ele, "empregado sério e tem cabedais no horizonte; posso dar-lhe a pequena."

Gaspar entendeu pelo rosto amável do comendador que o seu pedido não viria fora de propósito, e planeava o meio de requerer a moça com o consentimento do tio quando este se lembrou de mudar o domicílio passageiro pelo eterno, deixando-lhe o dinheiro e a tia.

A situação mudara; contudo não lhe pareceu que o comendador mudasse muito com ela. Achou-o certamente mais reservado e algo frio; mas a filha estava tão contente que ele sentiu renascer-lhe a abalada confiança.

- Já sei que me deixas - disse a moça com um tom de tristeza cômica.

- Deixar-te?

- Não te casas?

Gaspar levantou secamente os ombros.

- Isso não é resposta - disse a moça.

- Que queres que te diga?

- Que me amas... que não me hás de trair...

- Lucinda!

- Lucinda não é resposta.

- Criança!

- Ainda menos!

- Pois sim; não te hei de trair... Trair por que e por quem? Julgas-me um...

A moça desatou a rir, uma risada que fazia morrer a D. Mônica, se a ouvisse e percebera a cousa, e os dois namorados passaram a falar do seu futuro. O que os namorados dizem de seu futuro não é cousa nova para ninguém; dizem tudo e não dizem cousa nenhuma, eloquência divina, que é melhor experimentar, que julgar; mas julgue-a quem não experimentá-la.

III

Dona Mônica soube da cláusula de testamento com viva demonstração de desagrado. A disposição pareceu-lhe zombeteira e cruel a um tempo. Não era melhor, se o sobrinho queria favorecer os seus dois parentes, repartir com eles os trezentos contos? Esta foi a primeira reflexão. A segunda foi de agradecimento, porquanto a recusa da parte de Gaspar vinha constituí-la herdeira de toda a riqueza, e a cláusula testamentária redundava toda em proveito dela. Não sei se isto é interesse e egoísmo, sei que foi a reflexão de D. Mônica. Não foi porém a última; foi apenas a segunda, a que ainda sucedeu terceira e quarta. Dona Mônica refletiu que havia no testamento uma lacuna, e era o caso em que, disposto Gaspar a desposá-la, não estivesse ela disposta a aceitar-lhe a mão. A quem pertenceria nesse caso a herança? Parece que ao rapaz, visto que não casaria por motivo independente de sua vontade. Enfim, D. Mônica perguntou a si própria se o casamento, em tal idade, era cousa tão fora de propósito que a obrigasse a recuar. A resposta foi negativa, por duas razões: a primeira é que o sobrinho Matias não disporia em testamento um absurdo, uma cousa que lhe ficasse mal a ela. Sempre o conhecera respeitoso e seu amigo; a segunda é que ela mesma sentia em si alguns restos das graças de outro tempo.

Dona Mônica relanceou os olhos para o espelho, compôs as duas tranças do cabelo, presas sobre a nuca, a fim de lhes dar um ar menos sustoso, estudou-se com atenção, e concluiu que, se não era moça, não era de todo rejeitável. Uma ideia desta é mais difícil de nascer que de morrer. Uma vez nascida no espírito de D. Mônica, entranhou-se-lhe como uma verruma. Vinte e quatro horas depois era resolução assentada; mas, como a consciência busca muita vez iludir-se a si própria, D. Mônica lançava a resolução à conta da afeição que tinha ao rapaz.

"Que razão tenho eu para retardar a herança que o tio lhe deixou?", dizia ela dentro de si. "Aceitando o casamento, evito chicanas e perda de tempo. Demais é sempre digna de respeito a última vontade de um morto."

Gaspar foi ter com a tia-avó, alguns dias depois de voltar à Secretaria. Ia resolvido a dizer-lhe francamente a razão que tinha para não aceitar a condição imposta pelo tio, razão que o leitor sabe ser o amor de Lucinda, além do horror que inspirava a ideia de obedecer naquele ponto ao tio.

Dona Mônica vestira-se nesse dia com singular apuro. Tinha um vestido de gorgorão preto; sério na cor, mas risonho na forma, que era um complicado de folhos e babados. Os cabelos dobravam-se em bandós e enquadravam-lhe o rosto, cuja expressão não era severa nem desconsolada. Dona Mônica deixava-se estar na poltrona, quando lhe anunciaram o sobrinho. A poltrona era larga, pouco mais larga que a tia do capitão, que tinha as formas amplas e refeitas.

- Bem-vindo seja o senhor Gaspar! - exclamou ela logo que o viu assomar à porta. - Cuidei que nunca mais queria ver a sua única parenta.

- Que ideia! - respondeu o moço. - A senhora sabe não podia haver tal esquecimento da minha parte.

Disse, e, aproximando-se dela, beijou-lhe respeitosamente a mão. Dona Mônica deu-lha com uma graça estudada, mas que lhe não ficou mal de todo.

- Senta-te aqui - disse ela apontando para uma cadeira que lhe ficava ao lado.

Gaspar obedeceu. Apenas sentado, reconheceu que era mais fácil planear que executar. Calou-se durante algum tempo, sem saber por onde começasse. Dona Mônica veio em seu auxílio.

- Como vai o inventário do nosso pobre Matias? - perguntou ela.

- Vai andando - respondeu Gaspar escondendo um charuto que casualmente tirara da algibeira.

- Fuma, fuma - disse D. Mônica sorrindo.

Gaspar agradeceu e acendeu um fósforo continuando a resposta.

- O inventário não levará muito tempo; toda a questão será o negócio da herança...

- Da herança! Por quê? - perguntou D. Mônica -. Há algum herdeiro que reclame?

- Não há nenhum. A senhora sabe que meu tio nomeou-me seu herdeiro universal, com a condição...

- Sim... - interrompeu D. Mônica.

- Peço-lhe que acredite que eu nunca ousaria exigir da senhora um sacrifício...

- Eras capaz de sacrificar a herança? - perguntou D. Mônica olhando para ele admirada.

- Era.

Dona Mônica refletiu alguns instantes.

- Compreendo os teus sentimentos, e admiro o teu desinteresse. Espero contudo que me farás a justiça de crer que eu não consentiria nunca em deserdar-te...

Desta vez foi Gaspar que olhou admirado para D. Mônica.

- A vontade do capitão era beneficiar-nos a ambos - continuou D. Mônica -. Pareceu-lhe que o casamento correspondia às suas intenções. Não refletiu, de certo, na disparidade que há entre mim e ti; não se lembrou de que podia expor-nos um e outro aos comentários do mundo.

- Justamente - respondeu Gaspar.

- Mas o capitão morreu e não pode reparar o mal. Pela minha parte, doer-me-ia se contribuísse para que perdesses a herança... Que razão alegaria eu para fazê-lo? A tal ou qual distância entre as nossas idades; não tenho porém nenhum direito a demorar-me nessa consideração.

- Mas...

- Um casamento entre nós será uma formalidade necessária para receber a herança. Não tenho direito de recusar a formalidade como não teria de recusar a minha assinatura se esta fosse precisa.

- Oh! Minha tia! - exclamou Gaspar -. O seu coração é bom, mas posso eu abusar...

- Não há abusar...

- Nunca!

- Nunca e sempre... São duas palavras que pedem reflexão - interrompeu D. Mônica levantando a sua pachorra. - Até outro dia! Não sou tão má como poderias supor... Adeus!

- Mas...

Dona Mônica estendeu-lhe a mão sorrindo, e sorrindo com tanta arte, que só um dos dentes lhe apareceu. Gaspar beijou-lhe a mão; a boa velha encaminhou-se para uma das portas que davam para o interior. Gaspar ficou pasmado na sala. Dois minutos depois transpunha a porta que dava para o corredor e descia as escadas.

"Esta agora é melhor!", pensava ele. "De maneira que a velha sacrifica-se para me dar gosto?"

Vinte minutos depois encontrou Veloso.

- Sabes o que me acontece?

- Não.

- Acho disposições em tia Mônica para casar comigo.

Veloso encostou-se a um portal para não cair. Quando pôde recobrar a fala:

- Impossível! - disse ele.

- Parece impossível, mas é a pura verdade.

- De maneira que tu...

- Vou mandá-la ao diabo.

Tais eram efetivamente as intenções de Gaspar. Durante oito dias não voltou à casa de D. Mônica, não tanto porque as disposições da velha o irritavam, mas porque andava tomado de terror. A cada passo parecia-lhe ver um padre, um altar, a tia e o casamento celebrado sem remissão nem agravo.

IV

Entretanto, Lucinda entrou a desanimar um pouco nas suas esperanças matrimoniais. A situação de Gaspar era pior do que antes; e, sobre ser pior, não lhe falava ele em cousa que se parecesse com casamento. Quais seriam as suas intenções, e que desilusão lhe preparava o futuro? Um dia abriu-se com ele.

- Oh! Descansa! - respondeu Gaspar -. Serás minha ainda contra a vontade do céu...

- Não blasfemes!

- Falo-te assim, para te mostrar a resolução em que estou. E já que me falaste nisto, dir-te-ei que ainda é tempo de refletir. Bem sei que não amaste em mim os bens da fortuna, que aliás nunca tive. Contudo, é bom que vejas a situação em que me acho. A pouca esperança que podia haver de melhorar de sorte esvaeceu-se; nada tenho, além do meu trabalho. Queres-me assim mesmo?

A moça lançou um olhar de indignação ao rapaz.

- Não me respondes? - perguntou este.

- Com o desprezo, era a única resposta que merecias! - exclamou Lucinda.

Esta indignação da namorada foi um bálsamo suave lançado no coração do moço. Era muito melhor do que um sorriso ou um levantar de ombros, ou qualquer outra cousa menos expressiva.

- Perdoas-me? - disse ele.

- Não!

- Mas não ficas querendo mal?

- Talvez!

- Não digas isso! Reconheço que sou culpado; mas a intenção das minhas palavras era a mais pura e inocente!

Lucinda acreditou piamente na pureza da intenção do rapaz e a conversa encaminhou-se para assuntos menos ásperos, em que por enquanto os deixaremos para ir ver em que se ocupa a senhora D. Mônica durante a longa ausência de Gaspar.

Dona Mônica contou com extrema atenção e tal ou qual saudade os dias da ausência do sobrinho. Não tardou a zangar-se com tamanho prazo, até que um dia ergueu-se da cama com a resolução de o mandar chamar. Nesse dia a camareira de D. Mônica pôs em atividade todos os seus talentos de ornamentista para reparar os ultrajes dos anos, e repor a boa senhora em condições menos desfavoráveis do que a pusera a natureza. Duas horas gastaram ambas no toucador; pouco menos levou ela a espartilhar-se e a vestir-se. Ao cabo de todo esse tempo dispôs o ânimo para receber o esquivo sobrinho, a quem escrevera logo de manhã.

Todo esse trabalho, porém, foi inútil porque o mencionado sobrinho não apareceu, e D. Mônica teve de contentar-se com as despesas da toilette.

A esquivança do sobrinho pareceu-lhe de algum modo ofensiva, duplamente ofensiva, porque o era à sua pessoa como tia e como mulher. Como mulher é que ela sentiu mais. Ao mesmo tempo refletiu no caso, e hesitou em crer que o rapaz, sem forte motivo, se dispusesse a perder nada menos que uma gorda aposentadoria.

- Alguma cousa há de haver por força - dizia ela mordendo o lábio com despeito.

E a ideia de um namoro foi a primeira que lhe acudiu ao espírito como a mais natural de todas as explicações.

- É isso, algum namorico, sabe Deus com que lambisgoia! Sacrifica-se por ela, sem saber o que lhe resultará de semelhante passo. Pois que se avenham...

A reticência que aí fica não é minha, foi uma reticência nervosa que acometeu a pobre senhora, em forma de tosse, interrompendo o monólogo, a que deu fim a mucama trazendo-lhe a bandejinha de chá. Dona Mônica tomou dois ou três goles dele, e deitou-se daí a alguns minutos. O sono não veio prontamente, mas veio, enfim, cheio de sonhos cor-de-rosa em que D. Mônica viu realizados todos os seus desejos.

No dia seguinte os bons dias que recebeu foi uma carta de Gaspar. Dizia-lhe ele, respeitosamente, que era obrigado a renunciar à honra imposta por seu tio e à herança que lhe advinha dela, visto ter uma afeição anterior ao testamento do capitão Matias, afeição séria e decisiva. Consultaria, entretanto, um advogado para liquidar o ponto e saber se a tia podia ser defraudada de alguma parte da herança, cousa que ele evitaria por todos os meios possíveis. A carta era singela, nobre e desinteressada; por isso mesmo o desespero de D. Mônica foi aos últimos limites.

Gaspar não remeteu aquela carta sem consultar o seu amigo Veloso, que a ouviu ler e aprovou com restrições. A carta seguiu seu destino, e Gaspar interrogou o bacharel sobre o que achava ele que dizer ao desengano contido na epístola.

- Acho que o desengano é franco demais. Não é bem isto que eu quero dizer. Acho que não deixas nenhum caminho para voltar atrás.

- Voltar atrás? - perguntou Gaspar admirado.

- Sim.

- Mas por quê?

- Porque não se despedem tão levianamente trezentos contos. Amanhã podes pensar de modo inteiramente diverso do que pensas hoje...

- Nunca!

- Nada de afirmações temerárias.

Gaspar levantou os ombros e fez um gesto de tédio, a que Veloso respondeu sorrindo. Gaspar lembrou-lhe que, logo que fora aberto o testamento e conhecidas as disposições de seu tio, Veloso lhe aprovara a resolução de não aceitar o casamento imposto.

- É verdade - retorquiu este -; mas, se é bonito o ato, não impede que absolutamente o devas praticar, nem que seja prova de juízo seguro.

- Nesse caso, parece-te...

- Que não cedes a considerações de dinheiro, o que é prova de honestidade; mas que não há remédio se não ceder alguma vez a elas, o que é prova de reflexão. A mocidade passa e as apólices ficam.

Gaspar engoliu um discurso que lhe veio à ponta da língua, discurso de indignação, todo inspirado por seus brios ofendidos; limitou-se a dizer que no dia seguinte ia pedir a mão de Lucinda e que se casaria no mais breve prazo. Veloso deu-lhe os parabéns, e Gaspar foi dali redigir a carta do pedido ao comendador.

A carta de Gaspar não chegou à notícia do narrador do caso; mas há motivos para crer que era obra acabada como simplicidade de expressão e nobreza de pensamento. A carta foi enviada no dia seguinte; Gaspar aguardou a resposta com a ansiedade que o leitor pode imaginar.

A resposta não veio imediatamente como ele cuidava que seria. Esta demora fê-lo curtir dores cruéis. Escreveu um bilhete à namorada que lhe respondeu com três ou quatro monossílabos tétricos e misteriosos. Gaspar assustado correu à casa do comendador, e achou-a triste, abatida e reservada. Quis indagar o que havia, mas não teve ocasião.

A razão da tristeza de Lucinda foi a repreensão que o comendador lhe passou, ao ler o pedido do rapaz.

- Autorizaste semelhante carta? - perguntou o comendador fuzilando-lhe os olhos de cólera.

- Papai...

- Responde!

- Eu...

- Eu quê?

- Não sei...

- Sei eu - troou o comendador Lima indignado -; sei que não tiveste força bastante para desanimar o pretendente. Casar! Não é mais senão casar! Com que havia ele de sustentar casa? Provavelmente com o que esperava receber de mim? De maneira que eu ajuntei para que um peralvilho, que não tem onde cair morto, venha desfrutar o que me custou a haver?

Lucinda sentiu duas lágrimas borbulharem-lhe nos olhos e fez menção de retirar-se. O pai reteve-a para lhe dizer em termos menos desabridos que ele não desaprovava nenhuma afeição que ela tivesse, mas que a vida não se compunha só de afeições e suspiros, senão de interesses também e necessidades de toda a espécie.

- Esse tal Gaspar não é mau rapaz - concluiu o comendador -, mas não tem posição digna de ti, nem futuro. Por ora tudo são flores; as flores passam depressa; e quando tu quiseres um vestido novo ou uma joia, não hás de mandar à modista ou ao joalheiro um pedaço do coração de teu marido. São verdades que deves ter gravadas no espírito, em vez de te guiares somente por fantasias e sonhos. Ouviste?

Lucinda não respondeu.

- Ouviste? - repetiu o comendador.

- Ouvi.

- Não basta ouvir; é necessário digerir - disse sentenciosamente o pai.

E com este aforismo concluiu o diálogo - direi antes o monólogo, deixando na alma de Lucinda poucas esperanças de casamento, ao menos imediato como ela supunha e desejava que fosse. Tal é a explicação da tristeza e reserva com que recebeu o rapaz naquela noite. Facilmente se crê que Gaspar não saísse dali com a cara alegre. Nem acharei entre os leitores nenhum tão incrédulo que duvide de que o pobre namorado ficou tão fora de si, que não atinou com a maneira de abrir a porta, e afinal quebrou a chave, pelo quê achou-se no meio da rua, à uma hora da noite, sem ter onde ir dormir.

Sem casa nem esperanças é suplício excessivo. Gaspar teve ideia de ir ter com Veloso e passar a noite com ele, derramando no seio do amigo todas as suas queixas, e tristeza. Só ao cabo de cinco minutos é que se lembrou de que o bacharel morava no Pedregulho. Consultou a algibeira, cuja resposta foi a mais desanimadora possível.

Nestas circunstâncias ocorreu-lhe a melhor solução que podia ter naquela crise: ir pedir pousada a D. Mônica. Ela morava na rua dos Inválidos e ele achava-se na rua do Conde. Embicou para lá, tão cheio de suas mágoas, que nem lhe lembravam as que podia ter causado à tia.

Ali chegando, foi-lhe facilmente aberta a porta. Um escravo dormia no corredor, e não teve dúvida em franquear-lhe a entrada desde que reconheceu a voz de Gaspar. Este contou ao escravo o que lhe acontecera.

- À vista disto - concluiu ele - arranja-me aí um lugar com que passe a noite, mas sem acordar titia.

Dona Mônica tinha dois quartos trastejados para hóspedes; Gaspar foi acomodado em um deles.

V

A dona da casa ficou estupefacta no dia seguinte quando lhe deram conta do ocorrido. Em quaisquer outras circunstâncias, o caso lhe pareceria natural. Naquelas afigurou-se-lhe extraordinário. Ao mesmo tempo ficou singularmente satisfeita.

- Não o deixes sair sem almoçar - disse ela ao escravo.

A ordem foi cumprida; e Gaspar viu-se obrigado a faltar à repartição porque D. Mônica, que almoçava sempre cedo, determinou que naquele dia se alterasse o costume. Não me atrevo a dizer que o fim da boa senhora fosse aquilo mesmo, mas tinha ares disso. Verdade seja que a demora podia explicar-se pela necessidade que ela tinha de vestir-se e toucar-se convenientemente.

- Oh! Não preciso de explicações - disse ela quando à mesa do almoço Gaspar quis explicar-lhe a razão do incômodo que viera dar-lhe. - Vieste, é quanto basta; sempre que vieres tens aqui casa e corações amigos.

Gaspar agradeceu e almoçou. Almoçou triste e preocupado. Não reparou nas atenções da tia, no tom carinhoso com que ela lhe falava, na ternura que havia nos seus olhos; não reparou em nada. Dona Mônica, pelo contrário, reparou em tudo; viu que o sobrinho não estava senhor de si.

- Hás de me contar o que tens - disse ela quando ficaram sós os dois.

- Não tenho nada.

- Não me iludas!

- Nada tenho... passei a noite mal.

Dona Mônica não acreditou, mas não insistiu. O sobrinho, entretanto, sentia necessidade de desabafar com alguém; e não tardou em expor tudo à velha parente, que o ouviu com religiosa atenção.

- Não me admira nada disso - observou ela quando ele acabou a narração -; é naturalíssimo.

- Alguma traição?

- Podia ser; mas não é necessário suspeitar traição para explicar a mudança dessa moça.

- Parece-lhe...

- Parece-me que ela amava um herdeiro, e que...

- Oh! Impossível!

- Por que impossível?

- Se eu lhe digo que a achei triste e abatida! O pai, sim, é possível que o pai se oponha...

- Também creio.

- Mas a vontade do pai...

- A vontade do pai há de vencer a da filha; seus conselhos a persuadirão... - disse D. Mônica sorrindo -. Que admira? É o que acontece com moças que sonham no casamento um perpétuo baile.

Gaspar ouviu cabisbaixo e triste o que lhe dizia a velha parente. Seu coração batia com força, à medida que o espírito ia admitindo a plausibilidade da opinião de D. Mônica. Ao mesmo tempo surgiam-lhe na memória as provas de afeto que Lucinda sempre lhe dera, o desinteresse manifestado mais de uma vez, e enfim a indignação com que ainda recentemente lhe respondera a uma insinuação acerca da herança.

Dona Mônica, pela sua parte, mostrava os inconvenientes em certa ordem de casamentos comparados com outros, menos românticos mas muito mais sólidos. Gaspar não ouviu, ou ouviu mal a preleção da tia. Tinha perdido a repartição: saiu para ir rondar à porta da namorada.

Na primeira ocasião em que pôde falar a sós com ele (foi daí a dois dias), Lucinda referiu-lhe o discurso e os conselhos do pai, e pediu-lhe que tivesse paciência e esperasse. Gaspar jurou por todos os santos do céu que esperaria até a consumação dos séculos. A moça podia responder que provavelmente nessa época não estaria em idade de casar; não lhe acudiu porém a resposta e continuou a lastimar-se com ele do despotismo dos pais e das exigências sociais.

Gaspar saiu dali disposto "a fazer uma estralada". Vagou longo tempo nas ruas sem assentar em cousa nenhuma, até que foi acabar a noite no primeiro teatro que achou aberto. Na peça que se representava havia um namorado em condições iguais às dele, que acabava matando-se. Gaspar achou que a solução era violenta demais.

- Oh! Eu morrerei por mim mesmo! - exclamou ele saindo do espetáculo.

Talvez julgasse que entre a vida e a morte havia lugar para um bife de grelha, porque o foi comer em um hotel próximo. A ceia diminuiu-lhe o horror da situação; Gaspar dormiu tranquilo a noite inteira.

No dia seguinte acordou tarde; e faltou à repartição, como usava fazer algumas vezes e seu espírito, mais que nunca, era avesso ao expediente. Lembrou-se de ir dar um passeio a Niterói para distrair-se. Embarcou e recolheu-se todo em si, olhando para o mar e o céu. Pouca gente havia perto; ainda assim, e por mais absorto que ele estivesse, não pôde obstar que lhe chegasse aos ouvidos o seguinte pedaço de conversa entre dois sujeitos desconhecidos.

- É o que lhe digo, não caio nessa.

- Mas por quê?

- Porque não tenho certeza de ganhar um conto de réis e arrisco-me a perder dez ou doze.

- Não creio...

- É arriscadíssimo!

- Você é um medroso.

- Medroso, não; prudente. Prudente como quem lhe custou a arranjar um peculiozinho.

- Peculiozinho? Maganão! Confesse que você tem aí os seus cem contecos...

- Por aí, por aí...

Gaspar suspirou e olhou para o passageiro que dizia possuir cem contos. Era um homem de cerca de quarenta anos, vestido com asseio, mas sem apuro nem elegância. A barca chegava a São Domingos; o interlocutor do homem desembarcou, enquanto o outro ficou para ir a Niterói. Logo que a barca tomou este caminho, Gaspar aproximou-se do desconhecido:

- Não me dirá - disse ele - como é que V. Sa. arranjou cem contos de réis?

O desconhecido olhou espantado para a pessoa que lhe fazia esta pergunta e ia responder-lhe descortesmente, quando Gaspar continuou nos termos seguintes:

- Espanta-se naturalmente do que lhe digo, e tem razão; mas a explicação é simples. V.Sa. vê em mim um candidato a cem contos de réis; ou a mais...

- Mais é melhor - tornou o desconhecido sorrindo.

- Bastam-me cem.

- Pois o segredo é simples.

- Qual é?

- Ganhá-los.

- Oh! Isso!

- É difícil, bem sei; leva anos.

- Quantos anos levou o senhor?

- É muito curioso!

- Oh! Se eu lhe contar a minha situação, compreenderia a singularidade da minha conversa.

O desconhecido nenhuma necessidade sentiu de saber a vida de Gaspar, e dirigiu a conversa para as vantagens que podem dar os bens da fortuna. Foi o mesmo que lançar lenha no fogo. Gaspar sentiu arder em si, cada vez mais, a ambição de possuir.

- Se eu lhe disser que posso ter trezentos contos de réis amanhã?

Os olhos do desconhecido faiscaram.

- Amanhã?

- Amanhã.

- Como?

- De um modo simples; casando.

Gaspar não recuou em suas confidências; referiu tudo ao desconhecido que o ouvia com religiosa atenção.

- E que faz o senhor que não casa?

- Porque amo a outra pessoa; uma criatura angélica...

O desconhecido olhou para Gaspar com tanta compaixão que este sentiu-se envergonhado - envergonhado, sem saber de quê.

- Bem sei - disse ele - que não há prudência nisto; mas o coração... O que eu queria era saber como se pudesse obter cem contos, para depois...

- Casar com a outra?

- Tal qual.

- Não sei. A barca está a chegar e nós vamos separar-nos. Deixe-me dar-lhe um conselho: case com sua tia.

- Uma velha!

- Trezentos contos.

- Amando a outra!

- Trezentos contos.

A barca chegou; o desconhecido despediu-se.

Gaspar ficou só, a refletir no infinito número de homens interesseiros que há no mundo. A barca voltou daí a pouco à cidade. Gaspar viu entrar entre os passageiros um homem ainda moço pelo braço de uma senhora idosa, que ele supôs ser sua mãe, mas que soube ser sua mulher quando o rapaz a apresentou a um amigo. Vestiam com luxo. O marido, tendo de tirar um cartão de visita da algibeira, mostrou uma carteira recheada de dinheiro.

Gaspar suspirou.

Chegando à cidade foi à casa da tia; D. Mônica achou-o ainda muito triste, e lhe disse:

- Vejo que amas loucamente essa moça. Queres casar com ela?

- Titia...

- Farei o mais que posso; tentarei vencer o pai.

Gaspar ficou estupefato.

"Oh!", disse ele consigo; "Eu sou indigno desta generosidade."

A+
A-