Conto

Dona Mônica

1876

Dona Mônica *

Capítulo primeiro

E, reconhecendo as boas qualidades do dito meu sobrinho Gaspar, declaro que o nomeio meu universal herdeiro, com duas condições essenciais; a primeira (deixada ao seu critério) é que há de relar os cabedais que lhe lego como os relei durante a minha vida; a segunda (cujo cumprimento precederá a execução desta parte do meu testamento) é que há de casar com minha tia D. Mônica, senhora de altas e respeitáveis virtudes...

A leitura das linhas transcritas acima e fielmente copiadas do testamento com que morreu o capitão Matias do Nascimento, no dia 2 de novembro de 1857, produziu no sobrinho Gaspar duas impressões tão profundas quão diferentes. A alma de Gaspar subiu ao sétimo céu e desceu para o último abismo: de um lance fez toda a jornada de Dante, ao invés, subindo ao Paraíso e caindo de lá no derradeiro círculo do Inferno onde o diabo lhe apareceu, não com as três cabeças que o poeta lhe dá, mas com pouco mais de três dentes, que tantos possuía a tia de seu tio.

Não traiu, entretanto, o rosto do rapaz aquela impressão diferente; a situação pedia um ar compungido, e Gaspar estava ao nível da situação. Ouviu a leitura até o fim, levantou-se, e foi desafogar a cólera consigo mesmo. Digo a cólera porque o mancebo de quem se trata contava a morte do capitão Matias como um dos sucessos mais afortunados da vida; esperava por ele imenso tempo, na doce confiança de um legado volumoso. Em vez de simples deixa, caiu-lhe nas mãos a herança toda. O tio fora além do que ele supunha merecer: era um tio digno de um mar de lágrimas. Gaspar não tinha lágrimas, mas tinha um lenço, músculos obedientes, e toda a escala dos sentimentos nos olhos, que eram negros, rasgados e verdadeiramente bonitos. Mediante o lenço, os músculos e os olhos, pôde suprir as lágrimas e compungiu a todos pela dor que aparentemente lhe rasgava as entranhas.

Tudo isto era de efeito salutar se pudesse suprimir D. Mônica. Mas D. Mônica existia, com os seus sessenta anos, os seus cabelos apenas grisalhos, as suas flores no chapéu, a sua elegância de 1810. Gaspar conhecia perfeitamente o abismo a cuja beira o lançara o capricho do tio; capricho sagaz e previdente, porque dispunha as cousas para o caso em que o herdeiro recusasse adotar a condição imposta: nesse caso, dizia o testamento, toda a herança caberia à mencionada D. Mônica.

- Deus o tenha consigo! - exclamou Gaspar, sozinho no quarto -. Mas não há negar que tinha tanto juízo como este chapéu de sol. Que quer dizer semelhante condição de amarrar-me a tia Mônica? Realmente, só por zombaria ou cousa análoga; suponho que estava a caçoar de mim...

Este monólogo que aí fica em resumo foi interrompido pela entrada de um amigo de Gaspar, o bacharel Veloso, rapaz de trinta anos, frio, pacato, sem ilusões nem estudos. Veloso era companheiro de infância de Gaspar, seu confidente, e não poucas vezes seu Mentor ao pé das Calipsos de arribação.

- Será certo o que me disseram agora? - perguntou Veloso apertando a mão ao companheiro. - Teu tio nomeou-te seu herdeiro universal...

- É certo.

- Mas com a condição de te casares com D. Mônica.

- Tal qual.

- Se recusares, perdes tudo?

- Se recusar, a tia Mônica virá a ser herdeira - respondeu Gaspar passeando no quarto. - Nada menos que um modo de obrigar-me a casar.

Veloso sentara-se sacudindo a cinza do charuto e sorrindo da condição da herança. Houve alguns instantes de silêncio. O primeiro que o rompeu foi o bacharel.

- Não - disse ele respondendo à última reflexão do amigo -; não é isso. O que ele quer é deixar D. Mônica sua universal herdeira. É claro que, se recusar, recebe tudo. Muito tola será se consentir em casar contigo, fazendo uma ridícula figura. Poupar-se aos comentários do mundo e receber ainda em cima trezentos contos...

Gaspar estacou no meio da sala. A observação de Veloso pareceu-lhe exatíssima; ao passo que a soma da herança produziu nele violentíssimo abalo.

- Tens razão - disse Gaspar ao cabo de alguns minutos -; há de ser isso. O que ele queria era favorecer a tia Mônica, levando a minha gratidão. Dois reconhecimentos de um golpe: não era mal calculado.

Gaspar arrependeu-se logo deste necrológio, em que entrava muito pouco reconhecimento. Intercalou no discurso um elogio às qualidades morais do tio, discurso interrompido por alguns apartes restritivos do bacharel, os quais apartes não eram refutados com a força que era de esperar da parte do orador. O que se podia concluir do discurso e dos apartes é que o tio Matias não passara nunca de um estimável paspalhão.

- Há alguém que sente mais do que tu a cláusula do testamento - disse Veloso sorrindo -, adivinhas, não?

- Lucinda? É impossível.

- O pai dela.

- Acreditas que o comendador?

- Acredito que entrava muito nos cálculos dele a provável herança de teu tio. Não direi que te recuse agora a filha; ainda que não seria para admirar...

- Pode ser que lhe não fosse indiferente um genro com dinheiro - observou Gaspar -; não creio, porém, que a cláusula do testamento o leve a opor-se aos desejos da filha.

- Não digo que não. Pela tua parte estás resolvido a abrir mão da herança?

- Oh! De certo!

Veloso levantou-se.

- Muito bem! - disse ele.

- Aprovas-me?

- De todo o coração; tanto mais que...

- Que...

- Que esperava outra cousa.

- Ofendes-me.

- Sou apenas prático - respondeu Veloso sorrindo -. Eu creio pouco no desinteresse, sobretudo ao pé de trezentos contos. Vejo que és exceção; tanto melhor para ti... e para ela.

- Obrigado!

Gaspar estendeu a mão a Veloso, que a apertou com efusão. Veio o moleque chamá-los para jantar. O jantar foi melancólico e silencioso; a presença dos criados não exigia outra cousa. Além disso, não é certo que tenham bom sabor as sopas de um deserdado.

II

A noite foi desconsolada e triste. E tão triste como a noite foi a seguinte madrugada, que viu o nosso Gaspar de pé, com os olhos cansados de não dormir.

Não era para menos o malogro da véspera. Gaspar vivia há cerca de seis anos somente para o tio Matias, único parente seu, além de D. Mônica; cercava-o de todas as atenções, as mesmas com que se guarda na carteira um bilhete de loteria. O tio gostava dele e dizia-o e provava-o. Era um velho bom, afável, talvez caprichoso e maníaco, mas em todo caso as boas qualidades superavam as aborrecíveis. Gaspar só lhe via o melhor lado; ao menos não dizia outra cousa. Era o seu parceiro obrigado ao gamão, o seu companheiro nos passeios que ele gostava de dar às vezes de manhã; o mais fiel agente dos seus negócios, e até o leitor obrigado dos debates parlamentares. Matias não tinha partido, não o tivera nunca; mas o seu lugar, qualquer que fosse o partido dominante, era a oposição. Nasceu oposicionista, como outros nascem governistas: pura questão de temperamento. Gaspar, que entendia tanto de política como de sânscrito, mostrava-se, entretanto, interessado e curioso e dava forte apoio às objurgatórias do velho Matias.

- Há hoje muito discurso? - perguntava este.

- Página e meia de Jornal.

- Que maçada para ti!

- Maçada? Ora! Além do prazer que lhe dou, tenho eu próprio muito gosto em ver bater este governo sem critério. Já viu nada mais desconsolado?

- Não me fales nisso!

E as colunas da folha caíam todas dos lábios de Gaspar nos ouvidos de Matias, intercaladas pelas ruidosas pitadas deste ou pelos comentários de um e outro.

Ora, todo esse trabalho de tão longo tempo ficou repentinamente perdido: os juros que ele contava receber do vasto cabedal de atenções, carícias, sorrisos, enfados de toda espécie, esses gulosos juros iam-se-lhe sem deixar o mínimo rasto e o pobre Gaspar voltava aos seus ordenados de modesto empregado público.

O malogro era de afligir o mais pacato. Gaspar faltou à repartição, além dos sete dias de nojo, mais uns cinco, quase meio mês ao todo, que lhe foi descontado na folha do pagamento. Além disto, que era já bastante, aconteceu que um ou mais dos colegas souberam do testamento de Matias, da herança de Gaspar e da cláusula que aquele lhe pusera, resultando deste conjunto de fatos a convicção geral na repartição de que o casamento de Gaspar e de D. Mônica era cousa certa. Um colega imediatamente inferior a ele chegou a pedir-lhe a sua intervenção para que o ministro lhe desse o lugar no dia em que ele, endinheirado, pedisse demissão.

- Qual demissão, qual casamento! - respondeu desabridamente o pobre herdeiro, resposta que foi repetida de boca em boca entre os colegas e comentada durante três dias.

Uma só cousa podia consolar, consolar é exagerado - fazer esquecer por alguns instantes o esvaecimento da herança; era Lucinda. Lucinda era uma mocinha de dezassete anos, cabelos castanhos, olhos da mesma cor, rosto oval e pé de sílfide. O pé foi o laço em que o sobrinho de Matias caiu. A metáfora pode não ser nova nem bonita, mas é perfeitamente exata. Lucinda sabia que tinha um pé formoso, esguio, leve, como devem ser os pés dos anjos, um pé alado, quando ela valsava e deixava entrevê-lo todo no meio dos giros em que se deixava ir. Sabia disso e gostava de que lhe admirassem o pé; daí resultava que, por mais comprido que fosse o vestido de Lucinda, não havia hipótese de estar ela assentada sem mostrar a pontinha do sapato. Et tout le monde sait qu'elle a le pied charmant, podia dizer o poeta. Gaspar fazia como tout le monde; via o pé e adorava-o. Acontece que entre tantos admiradores, Lucinda só esperava um, aquele que lhe falava ao coração; esse foi Gaspar. O resto adivinha-se. Amaram-se, disseram-se e pediram-se... um ao outro. O comendador Lima, pai da moça, percebeu as conferências ideais e sentimentais entre o pé da filha e a alma do rapaz, e não lhe pareceu mau casamento.

"É bom moço", pensou ele, "empregado sério e tem cabedais no horizonte; posso dar-lhe a pequena."

Gaspar entendeu pelo rosto amável do comendador que o seu pedido não viria fora de propósito, e planeava o meio de requerer a moça com o consentimento do tio quando este se lembrou de mudar o domicílio passageiro pelo eterno, deixando-lhe o dinheiro e a tia.

A situação mudara; contudo não lhe pareceu que o comendador mudasse muito com ela. Achou-o certamente mais reservado e algo frio; mas a filha estava tão contente que ele sentiu renascer-lhe a abalada confiança.

- Já sei que me deixas - disse a moça com um tom de tristeza cômica.

- Deixar-te?

- Não te casas?

Gaspar levantou secamente os ombros.

- Isso não é resposta - disse a moça.

- Que queres que te diga?

- Que me amas... que não me hás de trair...

- Lucinda!

- Lucinda não é resposta.

- Criança!

- Ainda menos!

- Pois sim; não te hei de trair... Trair por que e por quem? Julgas-me um...

A moça desatou a rir, uma risada que fazia morrer a D. Mônica, se a ouvisse e percebera a cousa, e os dois namorados passaram a falar do seu futuro. O que os namorados dizem de seu futuro não é cousa nova para ninguém; dizem tudo e não dizem cousa nenhuma, eloquência divina, que é melhor experimentar, que julgar; mas julgue-a quem não experimentá-la.

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