IV
- Mas, deveras, você gosta de mim?
- Céus! Por que me fazes essa pergunta? - dizia pasmado Anacleto Monteiro.
- Eu sei! Você é tão volúvel!
- Volúvel, eu!
- Sim, você. Já me avisaram a seu respeito.
- Ah!
- Já me disseram que você gasta o seu tempo a namorar, a enganar as moças, e depois...
- Quem foi esse caluniador?
- Foi uma pessoa que você não conhece.
- Carlota, bem sabes que meu coração palpita por ti e somente por ti... Pelo contrário, você é que me parece não gostar nada... Não abane a cabeça; eu posso dar-lhe provas.
- Provas! Venha uma.
- Posso dar vinte. Em primeiro lugar, ainda não pude obter que você me desse um beijo. Que quer dizer isso, seria que você quer só passar o tempo?
Carlota fez uma careta.
- Que tem? Que é? - disse Anacleto Monteiro angustiado.
- Nada; uma pontada.
- Costumas a ter isso?
- Não, só ontem é que me apareceu... Há de ser a morte.
- Não digas semelhante cousa!
A dor passara e o beijo não viera. Anacleto Monteiro suspirava pelo beijo desde o sexto dia de palestra e Carlota com muita arte ia transferindo a dádiva para as calendas gregas.
Naquela noite saiu dali Anacleto um pouco picado de despeito, que era já um princípio de amor sério. Caminhou pela praia adiante, sem reparar em um vulto que a trinta ou quarenta passos estivera a espreitá-lo; um vulto que ali ficou ainda por espaço de meia hora.
Não reparou Anacleto, seguiu para casa e entrou zangado e melancólico. Fumou dez ou doze cigarros para distrair-se; leu duas ou três páginas do Carlos Magno; por fim deitou-se e só tarde conseguiu dormir. A figura de Carlota saía-lhe dos cigarros, das folhas do livro e de dentro dos lençóis. Na botica, logo que entrou, pareceu-lhe vê-la entre dois frascos de ipecacuanha. Começava a ser ideia fixa.
Surgiu o dia seguinte.
"Nada! É preciso cortar este negócio antes que vá mais longe", dizia ele consigo.
Dizê-lo era fácil; cumpri-lo era um pouco mais duro. Ainda assim, teve Anacleto forças para não ir nessa tarde à Gamboa; mas tão cruel foi a noite, e tão longo o dia seguinte, que na outra tarde, ainda o sol ardia longe do poente, e já o sobrinho do boticário palmilhava pela praia adiante.
Nestas negaças, neste ir e vir, zangar-se e reconciliar-se, perdia ele o tempo e perdia também a liberdade. O amor verdadeiro apoderou-se dele. As outras damas foram abandonadas aos demais pretendentes, que folgaram com a incompatibilidade moral de Anacleto Monteiro, por mais momentânea que ela fosse.
Antes de ir adiante, importa explicar que nenhuma pessoa havia dito a Carlota o que ela alegou que lhe disseram; era um recurso de namorada, uma peta inocente. Anacleto, na qualidade de varão, engoliu a caraminhola. Os homens neste caso são uma verdadeira lástima.
Desde que sentiu amar deveras, o sobrinho de Bento Fagundes pensou seriamente no casamento. Sua posição não era brilhante; mas nem a noiva exigira muito, nem seu coração tinha liberdade de refletir. Demais, havia para ele certa esperança nos xaropes do tio. Também ele cria que Bento Fagundes possuía algum pecúlio. Isto, o amor, a beleza de Carlota, a pobreza desta eram motivos poderosos para levá-lo a falar desde logo no desenlace religioso.
Uma noite aventurou o pedido.
Carlota ouviu-o com palpites; mas sua resposta foi uma evasiva, um adiamento.
- Mas por que não me responde já? - dizia ele desconfiado.
- Quero...
- Diga.
- Quero primeiro sondar mamãe.
- Sua mãe não se oporá à nossa felicidade.
- Creio que não; mas não desejo dar palavra sem estar certa de a poder cumprir.
- Logo não me ama.
- Que exageração!
Anacleto Monteiro mordeu a ponta do lenço.
- Não me ama! - gemeu ele.
- Amo, sim.
- Não! Se me amasse, outra seria sua resposta. Adeus, Carlota! Adeus para sempre!
E deu alguns passos...
Carlota não lhe respondeu nada. Deixou-se ficar à janela até que ele voltasse, o que não demorou muito. Anacleto voltou.
- Jura que me ama? - disse ele.
- Juro.
- Vou mais tranquilo. Só desejo saber quando poderei obter sua resposta.
- Dentro de uma semana; talvez antes.
- Adeus!
- Adeus!
Dessa vez o vulto que o espreitara em uma das noites anteriores estava no mesmo lugar, e quando o viu afastar-se caminhou para ele. Caminhou e parou; olharam-se: foi um lance teatral.
O vulto era Adriano.
Vai o leitor vendo que o conto não se parece com outros de água morna. Neste há inclinação trágica. Um leitor atilado vê já ali uma espécie de fratricídio moral, um produto do destino antigo. Não é bem isso; mas podia ser. Adriano não sacou um punhal do bolso, nem Anacleto recorreu à espada, que aliás nem trazia nem possuía. Digo mais: Anacleto nem suspeitou nada.
- Tu por aqui!
- Ando a tomar fresco.
- Tens razão; faz um calor!
Os dois seguiram; falaram de várias cousas estranhas até chegarem à porta da casa de Adriano. Cinco minutos depois, Anacleto despedia-se.
- Onde vais?
- Para casa; são nove horas.
- Podes dispensar alguns minutos? - disse Adriano em tom sério.
- Pois não.
- Entra.
Entraram.
Anacleto ia meio intrigado, como dizem os franceses; o tom do primo, seus modos, tudo tinha um ar misterioso e aguçava a curiosidade.
Adriano não o fez demorar muito, nem deu lugar a conjecturas. Logo que entraram, acendeu uma vela, convidou-o a sentar-se e falou por este modo:
- Você gosta daquela moça?
Anacleto estremeceu.
- Que moça? - perguntou ele depois de curto silêncio.
- A Carlota.
- A da praia da Gamboa?
- Sim.
- Quem lhe disse isso?
- Responda: gosta?
- Creio que sim.
- Mas... deveras?
- Essa agora!
- A pergunta é natural - disse Adriano com tranquilidade -. Você é conhecido por gostar de namorar umas e outras. Não há motivo de censura, porque assim fazem muitos rapazes. Por isso desejo saber se gosta deveras, ou se é um simples passatempo.
Anacleto refletiu alguns instantes.
- Desejava saber qual será sua conclusão em qualquer dos casos.
- Simplíssima. No caso de ser passatempo, pedir-lhe-ei que não ande a iludir uma pobre moça que lhe não fez mal nenhum.
Anacleto já estava sério.
- E no caso de gostar deveras? - disse ele.
- Nesse caso, dir-lhe-ei que também gosto dela deveras e que, sendo ambos competidores, poderemos resolver este conflito por algum modo.
Anacleto Monteiro bateu com a bengala no chão e ergueu-se fazendo um arremesso, enquanto Adriano, pacificamente sentado, aguardava a resposta do primo. Este passeou de um lado para outro sem saber que lhe respondesse e desejoso de o deitar pela janela fora. O silêncio foi longo. Anacleto rompeu-o, detendo-se de súbito:
- Mas não me dirá qual será o modo de resolver o conflito? - disse ele.
- Vários.
- Vejamos - disse Anacleto, sentando-se de novo.
- Primeiro: você desiste de a pretender; é o mais fácil e simples.
Anacleto contentou-se com sorrir.
- O segundo?
- O segundo é retirar-me eu.
- É o melhor.
- É o impossível, nunca o farei.
- Ah! Então sou eu que devo retirar-me e deixá-lo... Na verdade!
- Terceiro modo - continuou pacificamente Adriano -: ela escolher entre ambos.
- Isso é ridículo.
- Justamente: é ridículo... E é por ser destes três modos, um ridículo e outro impossível, que eu lhe proponho o mais praticável dos três: sua retirada. Você tem namorado muitas sem casar; será mais uma. E eu, que não uso namorar, gostei desta e espero chegar ao casamento.
Só então lembrou a Anacleto fazer-lhe a mais natural pergunta do mundo:
- Mas tem você certeza de ser amado por ela?
- Não.
Anacleto não se pôde conter; levantou-se, soltou dois impropérios e dirigiu-se para a porta. O primo foi ter com ele.
- Venha cá - disse -; resolvamos primeiro este negócio.
- Resolver o quê?
- Quer então ficar mal comigo?
Anacleto ergueu secamente os ombros.
- Quer a luta? - tornou o outro -. Pois lutaremos, pelintra!
- Não luto com jarretas!
- Tolo!
- Malcriado!
- Sai daqui, pateta!
- Saio, sim; mas não é por causa de seus berros, ouviu?
- Gabola!
- Grosseirão!
Anacleto saiu; o primo soltou-lhe ainda um adjetivo através das persianas, a que ele respondeu com outro, e foi o último.
V
Adriano, logo que ficou só, aplacou a cólera com uma pitada, monologou um pouco e refletiu longo tempo. De todas as injúrias que o primo lhe dissera, a que mais o impressionou foi o epíteto de jarreta, evidentemente cabido. Adriano viu-se ao espelho e concluiu que, efetivamente, uma gravata com menos voltas não lhe iria mal. A roupa, em vez de comprada em um adelo, podia ser mandada fazer por algum alfaiate. Só não sacrificou ao chapéu branco.
- O chapéu branco é a pacholice do vestuário - disse ele.
Depois, lembrou-se de Carlota, de seus olhos negros, dos gestos de desdém que lhe fazia quando ele lhe cravava uns olhos mortos. Seu coração palpitava com uma força incrível; era amor, cólera, despeito, desejo de triunfar. O sono dessa noite foi entremeado de sonhos agradáveis e terríveis pesadelos. Um destes foi imenso. Adriano sonhou que o primo lhe arrancava os olhos com a ponta da bengala, depois de lhe pôr na cara o par de botas, em um dia de chuva miúda, testemunha desse espetáculo, que fazia lembrar os mais belos dias de Calígula; Carlota ria às gargalhadas. O pregão de uma quitandeira arrancou-o felizmente ao suplício; eram sete horas da manhã.
Adriano não perdeu tempo. Logo nesse dia tratou de melhorar a toilette, abrindo um pouco os cordões da bolsa. A que não obriga o amor? Adriano encomendou umas calças menos irrisórias, um paletó mais sociável; muniu-se de outro chapéu; sacrificou os sapatos de dous mil e quinhentos. Quando estes utensílios lhe foram entregues, Adriano investiu denodadamente à praia da Gamboa, onde não fora desde a noite do último encontro com Anacleto.
Pela sua parte, o primo não perdera tempo. Não receava a competência de Adriano Fagundes, mas tinha para si que se desforraria das pretensões deste, apressando o casamento. E, conquanto nada receasse do outro, de quando em quando lhe soava no coração a palavra imperiosa do primo, e, incerto das predileções de Carlota, não sabia às vezes em que daria o duelo.
Vendo-o triste e preocupado, o boticário lembrou-se das palavras da Sra. D. Leonarda, e, como tinha grande afeto ao sobrinho, sentia cócegas de lhe dizer alguma cousa, de o interrogar a respeito da mudança que lhe notava. Não se atrevia. A Sra. D. Leonarda, com quem conferenciou a tal respeito, acudiu logo:
- Não lhe dizia eu? Não é nada; são amores. O rapaz está pelo beiço...
- Pelo beiço de quem? - perguntou Bento Fagundes.
- Isso... não sei... ou... não posso dizer... Há de ser ali para os lados da Gamboa...
Bento Fagundes não pôde obter mais. Continuou aborrecido. Anacleto Monteiro não voltava a ser o que era antes; ele temia alguma pretensão mal acertada, e pensava já em intervir, se fosse caso disso e valesse a pena.
- Que tens tu, rapaz? Andas melancólico...
- Não tenho nada; ando constipado - dizia Anacleto Monteiro sem atrever-se a encarar o tio.
Metade dos motivos da constipação de Anacleto, já o leitor os conhece; a outra metade vou dizer-lha.
Insistira o rapaz no casamento, e Carlota continuava a negacear. A razão deste proceder explica-se dizendo que ela queria fazer-se rogada, prender mais fortemente o coração de Anacleto, despeitá-lo; e a razão da razão era que mais de uma vez prometera a mão, desde o primeiro dia, a sujeitos que não se lembravam mais de ir buscá-la. Carlota namorava desde os quinze anos e estava cansada de esperar um noivo. Agora, seu plano era despeitar o pretendente, certa de que os homens nada desejam mais ardentemente do que o amor que se lhes nega desde logo. Carlota era um principezinho de Metternich.
Irritado com a recusa e o adiamento da moça, Anacleto cometeu um erro monumental: aventurou a ideia de que houvesse algum rival, e, negando-o ela, retorquiu o pascácio:
- Tenho, tenho... Não há muitos dias escapei de me perder por sua causa.
- Minha causa?
- É verdade. Um bigorrilhas, que, por minha desgraça, é meu primo, espreitou-me uma noite inteira e depois foi provocar-me.
- Sim?
- Provocar-me, é verdade. Estivemos a ponto de pegar-nos. Ele escumava de raiva, chorava, rasgava-se, mas eu, que lhe sou superior em tudo, não lhe dei trela e saí.
- Ora essa!
- Sabes o que me propôs?
- Que foi?
- Que eu desistisse de tua mão em favor dele.
- Tolo!
- Não achas?
- Sem dúvida!
- Juro!
- Vou mais contente. Mas quando falarás a tua mãe?
- Hoje; hoje ou amanhã.
- Fala hoje mesmo.
- Pode ser.
Depois de um instante disse Carlota:
- Mas eu nem me lembro de o ter visto! Que figura tem ele?
- Um jarreta.
E Anacleto Monteiro, com aquela ternura que a situação lhe metia na alma, descreveu a figura do primo, de quem Carlota se lembrou logo perfeitamente.
Fisicamente, não ficou a moça lisonjeada; mas a ideia de ser loucamente amada, ainda por um jarreta, foi-lhe muito agradável ao coração. As mulheres são principalmente sensíveis. Demais, Anacleto Monteiro cometera erro crasso sobre erro crasso: além de referir a paixão do primo, exagerou-lhe os efeitos; e dizer a Carlota que um rapaz chorara por ela e se arrepelara era o mesmo que recomendar-lho à imaginação.
Carlota pensou efetivamente no jarreta, cuja paixão lhe parecia senão mais sincera, pelo menos mais ardente que a do elegante. Tinha lido romances; gostava dos amores que saem do vulgar. A figura porém de Adriano temperava cruelmente essas impressões. Quando lhe lembrava o trajo e o desalinho do rapaz, sentia-se algo vexada; mas ao mesmo tempo perguntava a si própria se o apuro de Anacleto não orçava pelo ridículo. As gravatas deste, se não eram amarrotadas como as de Adriano, eram vistosas demais. Ela não sabia ainda o nome do jarreta, mas já o nome de Anacleto lhe não parecia bonito.
Estas imaginações de Carlota coincidiram com a pontualidade do alfaiate de Adriano, por modo que no dia seguinte ao da notícia que Anacleto lhe dera, viu Carlota aparecer o seu amador silencioso, melhormente encadernado. A moça estremeceu ao vê-lo e quando ele lhe passou pela porta, a olhar para ela, Carlota não retirou os olhos nem lhes deu má expressão. Adriano passou, olhou duas vezes para trás sem que ela saísse da janela. Longe disso! Estava tão encantada com a ideia de que aquele homem chorava por ela e se finava de amores, que ele lhe pareceu melhor do que estava.
Ambos ficaram satisfeitos um do outro.
Este é o ponto agudo da narração; repouse a leitora um instante e verá cousas espantosas.
VI
Carlota está a duas amarras. Adriano declarou-se por meio de uma carta, em que lhe disse tudo o que sentia; a moça, vendo que os dois amadores eram parentes e sabiam mutuamente o que sentiam, receou escrever-lhe. Resolveu-se, porém, a fazê-lo, mudando um pouco a letra e esfriando a frase mais que pôde. Adriano ficou satisfeito com esse primeiro resultado, e insistiu com outra epístola, a que ela respondeu, e desde logo se estabeleceu ativa correspondência.
Não deixou Anacleto de suspeitar alguma cousa. Primeiramente, viu a mudança que se operara nas roupas do primo; encontrou-o na praia algumas vezes; finalmente, Carlota parecia-lhe às vezes distraída; via-a menos; recebia menos cartas.
"Dar-se-á caso que o pelintra...?", pensou ele.
E meditou uma vingança.
Não atinou com ela, cogitou um suplício entre os maiores possíveis e não encontrou nenhum. Nenhum estava na altura de seus brios.
Eu sinto dizer a verdade à leitora, se alguma simpatia lhe merece este namorado: Anacleto... tinha medo. De bom grado cederia todas as Carlotas do mundo se corresse algum risco corporal. Num momento de raiva era capaz de soltar algum impropério; era até capaz de fazer algum gesto de ameaça; chegaria até a um princípio de realização. Mas o medo dominaria logo. Ele tinha medo do primo.
"Infame!", dizia ele com os seus botões.
Os botões, que não eram aliados ao primo nem tinham que ver com os interesses dele, mantinham-se com exemplar discrição.
Anacleto Monteiro adotou a política da defensiva. Era a única. Tratou de conservar as posições conquistadas, não sem tentar tomar de assalto o reduto matrimonial, reduto que forcejava por não cair.
Os encontros dos dois na praia eram frequentes; um empatava o outro. Adriano conseguira chegar-se à fala, mas o outro não o percebeu logo nos primeiros dias. Foi só ao cabo de uma semana que ele descobriu esse progresso do inimigo. Passou; viu um vulto à porta; atentou nele; era Adriano.
- Meu Deus! - exclamou Carlota -. Aquele moço me conhece...
- Já sei - replicou Adriano com pausa -. Ele gosta da senhora.
- Oh! Mas eu...
- Não se importe com isso; eu saberei ensiná-lo.
- Pelo amor de Deus!
- Descanse; é só se bulir comigo.
Anacleto Monteiro afastava-se dali com a morte na alma e o cérebro em ebulição. Parou ao longe, disposto a esganar o primo, quando ele se aproximasse. Chegou a querer voltar, mas recuou diante da necessidade de um escândalo. Todo ele tremia de cólera. Encostou-se à parede, disposto a esperar até à meia-noite, até o outro dia, se necessário fosse. Não era. Adriano, ao cabo de meia hora, despediu-se de Carlota e seguiu na mesma direção do primo. Este hesitou entre uma afronta e uma retirada; preferia a primeira e esperou. Adriano veio a passo lento, encarou-o e seguiu. Anacleto ficou pregado à parede. No fim de cinco minutos recobrou todo o sangue, por haver ficado sem pinga dele, e foi para casa a passo lento e cauteloso.
Naturalmente este episódio não podia ir além. Desenganado Anacleto por seus próprios olhos, não tinha mais que esperar. Assim foi por algumas horas. Anacleto recorreu à pena logo que chegou a casa, e numa carta longa e chorosa disse à namorada todas as queixas de seu coração. Carlota redigiu uma resposta em que lhe dizia que a pessoa com quem ela estivera falando da janela era visita da casa. Ele insistiu: ela ratificou as primeiras declarações até que três dias depois ocorreu em plena tarde, e em plena rua, um episódio que regozijou singularmente a vizinhança.
Nessa tarde encontraram-se os dois perto da casa da namorada. Anacleto teve a infelicidade de um pigarro; consequentemente tossiu. A tosse pareceu escarninha a Adriano, que, estacando o passo, disse-lhe uma injúria em alta voz. Anacleto teve a infelicidade de retorquir com outra. O sangue subiu à cabeça do primo, que lhe lançou a mão ao paletó! Nesta situação não há covardia que resista. Por mal de pecados, Carlota apareceu à janela: a luta era inevitável.
Há de desculpar o leitor se lhe dou esta cena de pugilato; mas repare bem, e verá que ela é romântica, de um romântico baixo. Na Idade Média, as cousas não se passavam de outro modo. A diferença é que os cavaleiros lutavam com outras armas e outra solenidade, e a castelã era diferente de uma vulgar namoradeira. Mas só o quadro era outro; o fundo era o mesmo.
A castelã da Gamboa assistiu à luta dos dois pretendentes meia penalizada, meia lisonjeada e meia remordida. Viu ir pelos ares o chapéu branco de Anacleto, desfazer-se-lhe a cabeleira, desarranjar-se-lhe a gravata. Adriano, por sua parte, recebia algum pontapé avulso do adversário e pagava-lho em bons cachações. Rolaram os dois por terra, no meio da gente que se juntava e que não podia ou não ousava separá-los; um gritava, outro bufava; os vadios riam, a poeira cercava-os a todos, como uma espécie de nuvem misteriosa.
No fim de dez minutos, conseguiram os passantes separar os dois inimigos. Um e outro tinham sangue. Anacleto perdera um dente; Adriano recebera uma mordidela na face. Assim desfeitos, feridos, empoeirados, apanharam os chapéus e estiveram a ponto de travarem nova luta. Dois estranhos caridosos impediram a repetição e levaram-nos para casa.
Carlota não pudera ver o resto; retirara-se para dentro, acusando-se a si própria. Foi dali rezar a uma imagem de Nossa Senhora, pedindo-lhe a reconciliação dos dois e prometendo não atender a mais nenhum deles para os não irritar um contra o outro.
Ao mesmo tempo em que ela solicitava a reparação do mal que fizera, cada um deles jurava entre si matar o outro.
VII
Aquele lance da praia da Gamboa foi motivo das palestras do bairro durante alguns dias. A causa da luta foi logo conhecida; e, como é natural em tais casos, aos fatos reais vieram juntar-se muitas circunstâncias de pura imaginação. O principal é que os belos olhos de Carlota tinham tornado irreconciliáveis inimigos os dois primos. Haverá melhor anúncio do que este?
Bento Fagundes soube do caso e do motivo. Pesaroso, quis reconciliar os rapazes, falou-lhes com autoridade e com brandura; mas nem um nem outro modo, nem conselhos nem pedidos, tiveram que fazer com eles. Cada um dos dois meditava a morte do outro, e só recuavam diante dos meios e da polícia.
- Tio Bento - dizia Anacleto Monteiro -, eu não poderei decentemente viver enquanto aquele mau coração palpitar...
- Perdoa-lhe...
- Não há perdão para semelhante monstro!
Bento Fagundes ficara aflito, ia de um para outro, sem alcançar mais resultado com este que com aquele; caía-lhe o rosto, sombreava-se-lhe o espírito; terrível sintoma: o gamão foi posto de lado.
Enquanto não punham em execução o plano trágico, cada um dos dois rivais lançou mão de outro, menos trágico e mais seguro: a calúnia. Anacleto escreveu a Carlota dizendo que Adriano, se se casasse com ela, pôr-lhe-ia às costas quatro filhos que já tinha de uma mulher ínfima. Adriano denunciou o primo à namorada como um dos mais insignes beberrões da cidade.
Carlota recebeu as cartas no mesmo dia, e não soube desde logo se devia crer ou não. Inclinou-se ao segundo alvitre, mas os dois rivais não ganharam com essa disposição da moça, porque, recusando dar crédito aos filhos de um e ao vinho do outro, acreditou somente que ambos tinham sentimentos morais singularmente rasteiros.
"Creio que são dois peraltas", disse ela com seus colchetes.
Esta foi a oração fúnebre dos dois namoros.
Posto que ambos os primos calcassem o pó da praia da Gamboa para ver a moça e disputá-la, perdiam o tempo, porque Carlota teimava em não aparecer. O caso irritou-os ainda mais um contra o outro, e por pouco não vieram de novo às mãos.
Nisto interveio um terceiro namorado, que em poucos dias deu conta da mão, casando com a bela Carlota. Ocorreu o fato três semanas depois do duelo manual dos dois parentes. A notícia foi um pouco mais de combustível lançado na fogueira de ódios acesos entre eles; nenhum dos dois acusou Carlota ou o destino, mas o adversário.
A morte da Sra. D. Leonarda trouxe um intervalo às dissensões domésticas da casa de Bento Fagundes, cujos últimos dias eram assim bastante amargurados; mas foram apenas tréguas.
O desgosto profundo, de mãos dadas com uma víscera inflamada, puseram o pobre boticário na cama um mês depois do casamento de Carlota e na sepultura cinquenta dias mais tarde. A doença de Bento Fagundes foram novas tréguas e desta vez mais sinceras, porque a cousa era mais importante.
Prostrado na cama, o boticário via os dois sobrinhos servirem-no com muita docilidade e brandura, mas via também que um abismo os separava eternamente. Esta dor era a que mais o pungia naquela ocasião. Quisera reconciliá-los, mas não tinha esperança de o conseguir.
- Vou morrer - dizia ele a Anacleto Monteiro -, e levo a maior mágoa...
- Tio Bento, deixe-se de ideias negras.
- Negras são, é verdade; bem negras e assim...
- Qual morrer! Há de ir comigo passar uns dias na Tijuca...
- Contigo e o Adriano - dizia Bento Fagundes, cravando no sobrinho uns olhos perscrutadores.
Aqui fechava-se o rosto de Anacleto, onde o ódio, só o ódio, transluzia com um reflexo infernal.
Bento Fagundes suspirava.
A Adriano dizia ele:
- Sabes tu, meu rico Adriano, qual é a maior dor que eu levo para a sepultura?
- Sepultura? - interrompia Adriano -. Falemos de cousas mais alegres.
- Sinto que morro. A dor maior que eu levo é que tu e Anacleto...
- Não se exalte, tio Bento; pode fazer-lhe mal.
Era inútil.
Três dias antes de morrer, Bento Fagundes, vendo-os juntos no quarto, chamou-os e pediu-lhes que fizessem as pazes. Recusaram ambos; a princípio desconversando; depois abertamente. O boticário insistiu; travou da mão de um e de outro e uniu-as. Foi um simulacro. As mãos dos dois tremiam, e ambos ficaram lívidos de cólera.
Entre eles, era tal o receio que nenhum ousava comer em casa de Bento Fagundes por medo de que o cozinheiro, peitado, lhes propinasse uma dose de arsênico. Não se falavam, é claro; não se olhavam; tremiam quando se achavam a sós e fugiam para evitar o escândalo de uma nova luta, a dois passos do enfermo.
A moléstia era mortal; Bento Fagundes expirou entre os dois parentes. Estes o amortalharam silenciosamente, fizeram os convites, trataram o enterro, sem trocar a mínima palavra.
Se a Sra. D. Leonarda fosse viva teria ocasião de ver que não se enganava quando atribuía algumas economias ao velho boticário. O testamento foi a confissão pública. Bento Fagundes declarou possuir, no estabelecimento, escravos, prédios e não sei que títulos, uns trinta e oito contos. Seus herdeiros universais eram Anacleto e Adriano, últimos parentes.
Havia, entretanto, uma cláusula no testamento, redigido um mês antes de morrer, que deu alguma cousa que falar no bairro. Dizia Bento Fagundes:
Os ditos meus herdeiros universais, que por tais os declaro, serão obrigados a usufruir juntos os meus bens ou continuando o meu negócio da botica, ou estabelecendo qualquer outro, sem divisão da herança que passará dividida a seus filhos, se os houver, caso se recusem ao cumprimento desta minha última vontade.
A cláusula era singular; era, mas toda a gente compreendeu que era um derradeiro esforço do finado para reconciliar os sobrinhos.
- Trabalho perdido - dizia o barbeiro de Anacleto -; eles estão como cão e gato.
Esta opinião do barbeiro era a mais geral. Efetivamente, logo que ouviram ler semelhante cláusula, os dois herdeiros fizeram um gesto como protestando contra a ideia de uma reconciliação. Seus brios não consentiam nessa venalidade do mais nobre dos ódios.
"Tinha que ver", dizia consigo Adriano, "se eu consentia que um biltre..."
Ecoava Anacleto:
"Um biltre daquele jaez reconciliado comigo! Não faltava mais nada. Ainda que fique a pedir esmolas..."
No segundo dia da leitura do testamento trataram ambos de pôr em ordem as cousas em casa de Bento Fagundes, cuja lembrança os enchia de exemplar piedade. A missa do sétimo dia foi concorrida. Ambos receberam os pêsames de todos, sem os darem um ao outro, sem trocarem uma palavra de saudade...
- Que corações de ferro! - dizia uma senhora indignada.
Aconteceu, porém, que ao saírem da igreja, um tropeçasse no outro:
- Perdão! - disse Adriano.
- Não foi nada! - acudiu Anacleto.
No outro dia Anacleto escreveu ao primo: "Não lhe parece que seria conveniente mandar abrir um epitáfio para o nosso chorado tio?".
Respondeu Adriano: "Aprovo cordialmente a sua ideia; ele o merece e muito mais". Os dois foram juntos à casa do marmorista; trataram com ele; discutiram o preço; assentaram na redação do epitáfio, que lembrava não só o morto, mas sobretudo os dois vivos. Saíram juntos; toda a vida do finado foi rememorada entre eles, com a mais ardente piedade. Um e outro lembraram-se da estima que ele sempre lhes tivera. Nesse dia jantaram juntos: um jantar fúnebre, mas cordial.
Dois meses depois chegaram à fala sobre a necessidade de obedecer ao desejo do morto, "que devia ser sagrado", dizia Anacleto. "Sacratíssimo", emendava Adriano.
Quando se completaram cinco meses depois da morte do boticário, Carlota e o marido entraram em uma loja de fazendas, a comprar não sei quantos côvados de chita de algodão. Não repararam na firma social pintada na porta, mas ainda reparando, podiam eles atinar quem seriam Fagundes & Monteiro? Fagundes e Monteiro, a firma toda, estavam na loja e voltaram-se para servir a freguesa. Carlota empalideceu, mas dominou-se. Pediu o que queria com voz trêmula, e os dois apressaram-se a servi-la não sei se comovidos, mas em todo o caso corteses.
- A senhora não acha melhor fazenda do que esta.
- Pode ser... É muito cara?
- Baratíssima - disse Fagundes -: dois mil-réis...
- É caro!
- Podemos deixá-la por mil e oitocentos - acudiu Monteiro.
- Mil e seiscentos - propôs o marido de Carlota.
Os dois fizeram a careta do estilo e simularam uma hesitação, que não foi longa.
- Vá - disseram eles.
A fazenda foi medida e paga. Carlota, que não ousava encará-los, fez um leve gesto de cabeça e saiu com o marido. Ficaram silenciosos os primos por alguns instantes. Um dobrava a fazenda, enquanto o outro fechava o dinheiro na caixa. Interiormente estavam radiantes: tinham ganho seiscentos réis em côvado!