Conto

Dívida Extinta

1878

II

Bento Fagundes da Purificação era boticário, na rua da Saúde, desde antes de 1830. Em 1852, data do conto, tinha ele vinte e três anos de botica e um pecúlio, em que todos acreditavam, posto ninguém dissesse tê-lo visto. Aparentemente havia dois escravos, comprados no Valongo, quando esses eram ainda boçais e a preço módico.

Vivia o Sr. Bento Fagundes uma vida monótona e aborrecida como a chuva miúda. Raro saía da botica. Nos domingos havia um vizinho que o ia entreter ao gamão, jogo em que ele era emérito, porque era inalterável contra as pirraças da sorte, vantagem contra o adversário, que era irritadiço e frenético. Felizmente para as botijas do Sr. Bento Fagundes, as cousas não se passavam como no soneto de Tolentino; o parceiro não atirava ao ar as tábulas, limitava-se a expectorar a cólera, derramar o rapé, assoar as orelhas, o queixo, a gravata, antes de atinar com o nariz. Às vezes acontecia brigar com o boticário e ficar mal com ele até o domingo seguinte; o gamão reconciliava-os: similia similibus curantur.

Nos demais dias, o Sr. Bento Fagundes vendia drogas, manipulava as cataplasmas, temperava e arredondava as pílulas. De manhã, lavado e enfronhado no rodaque de chita amarela, sentava-se em uma cadeira à porta, a ler o Jornal do Commercio, que lhe emprestava o padeiro da esquina. Não lhe escapava nada, desde os debates das câmaras até os anúncios teatrais, posto não fosse a espetáculos nem saísse nunca. Lia com igual pachorra todos os anúncios particulares. Os derradeiros minutos eram dados ao movimento do porto. Uma vez inteirado das cousas do dia, entregava-se todo aos mesteres da farmácia.

Esta vida tinha duas alterações durante o ano: uma na ocasião das festas do Espírito Santo, em que o Sr. Bento Fagundes ia ver as barracas, em companhia dos três parentes que tinha; outra na ocasião da procissão de Corpus Christi. Salvo essas duas ocasiões, nunca mais vinha à cidade o Sr. Bento Fagundes. Assim quê, era todo ele uma regularidade de cronômetro; um gesto compassado e um ar soturno com o qual se parecia a botica, que era uma loja escura e melancólica.

Claro é que um homem com tais hábitos longamente adquiridos mal poderia suportar a vida que levava o pintalegrete do sobrinho. Anacleto Monteiro não era só pintalegrete; trabalhava; tinha um emprego no Arsenal de Guerra; e só acabado o trabalho ou nos dias de férias, atirava-se às ruas da Saúde e adjacentes. Que ele passeasse uma vez ou outra, não lho contestava o tio; mas sempre, e de botas encarnadas, eis o escândalo. Daí a raiva, os ralhos, as explosões. E quem o obriga a alojá-lo na botica, a dar-lhe casa, cama e mesa? O coração, leitora minha, o coração de Bento Fagundes, que ainda se conservava mais puro do que suas drogas. Bento Fagundes tinha dois sobrinhos: o nosso Anacleto, que era filho de uma sua irmã muito querida, e Adriano Fagundes, filho de um irmão, a quem ele detestava enquanto vivo foi. Em Anacleto amava a lembrança da irmã; em Adriano, as qualidades pessoais; amava-os igualmente, e talvez um poucochinho mais a Adriano do que ao outro.

As boas qualidades deste eram mais conformes ao gênio do boticário. Primeiramente, não usava botas encarnadas, nem chapéu branco, nem luvas, nem qualquer outro distintivo de peraltice. Era um jarreta precoce. Não arruava, não ia a teatros, não gostava charutos. Tinha vinte e cinco anos e tomava rapé desde os vinte. Finalmente, apesar do convite que o tio lhe fez, nunca foi morar com ele; residia em casa sua, na rua do Propósito. Bento Fagundes suspeitava que ele punha dinheiro de lado, suspeita que o tornava ainda mais digno de apreço.

Não havia entre os dois primos grande afeição; mas davam-se, encontravam-se frequentes vezes ou em casa do tio, ou na casa de Adriano. Nem este podia suportar a peraltice de Anacleto; nem Anacleto, o jarretismo de Adriano e ambos tinham razão porque cada um deles via as cousas através de suas próprias preferências, que é o que acontece aos demais homens; sem embargo, porém, desse abismo que entre os dois havia, davam-se e continuavam as relações da infância.

O tio estimava vê-los mais ou menos unidos. Sua cólera a respeito de Anacleto, seus protestos de o não receber em casa quando ele casasse eram protestos ao vento, era cólera de namorado. Por outro lado, a sequidão com que tratava Adriano era apenas uma crosta, uma aparência mentirosa. Como ficou dito, os dois rapazes eram as duas únicas afeições do velho farmacêutico, e a dor única e verdadeira que ele teria era se os visse inimigos. Vendo-os amigos, não pedia Bento Fagundes nada mais ao destino do que vê-los sãos, empregados e felizes. Eles e a Sra. D. Leonarda eram seus únicos parentes; esta mesma veio a morrer antes dele, não lhe restando nos últimos dias mais do que Anacleto e Adriano, as meninas de seus olhos.

III

Ora, é de saber que justamente no tempo em que a Sra. D. Leonarda fez meia confidência ao boticário, era esta nada menos que verídica. Entre os dez ou doze namoros que o jovem Anacleto entretinha nessa ocasião, havia um que ameaçava internar-se pelos domínios conjugais.

A donzela que assim queria cortar as asas ao volúvel Anacleto morava na praia da Gamboa. Era um demoninho de olhos pretos, que é a cor infernal por excelência. Dizia-se na vizinhança que em matéria de namoro ela pedia meças ao sobrinho de Bento Fagundes. Devia ser assim, porque muita sola de sapato era gasta na referida praia, só por motivo dela, sem que nenhum dos pretendentes desanimasse, o que é prova de que se a boa menina lhes não respondia que sim, também lhes não dizia que não.

Carlota era o nome desta volúvel criatura. Tinha perto de dezenove anos e não possuía dezenove mil-réis. Os pretendentes não olhavam a isso; gostavam dela pelos olhos, pela figura, por todas as graças que viam nela, e nada mais. As vizinhas, suas naturais competidoras, não podiam perdoar-lhe a espécie de monopólio que ela exercia em relação aos pintalegretes do bairro. Poucas eram as que prendiam algum deles e estes eram quase todos, não rapazes desenganados, mas precavidos, que depois de muito tempo, sem largar Carlota, iniciavam alguns namoros suplementares.

Quando Anacleto Monteiro se dignou baixar os olhos a Carlota foi com a intenção feita de derrubar todos os pretendentes, fazer-se amado e romper depois o namoro, como era costume seu; restituiria as cartas, ficando com duas, e a trança de cabelo, escondendo alguns fios.

Um domingo de tarde Anacleto Monteiro vestiu a melhor das roupas, empomadou-se, almiscarou-se, enfeitou-se, pôs na cabeça o mais alvo dos chapéus e saiu na direção da Gamboa. Um general não dispõe melhormente as suas tropas. A peleja era de honra; ele afiançara a alguns amigos, em uma loja de barbeiro, que deitaria ao chão todos os que pretendiam o coração da pequena; cumpria dirigir o ataque em regra.

Nessa tarde houve só um reconhecimento, e completo.

Ele passou, fitando na moça uns olhos lânguidos, depois intimidativos, depois misteriosos. A vinte passos parou, olhando para o mar, tirou o lenço, chegou aos lábios, e guardou-o depois de o agitar um pouco em forma de adeus. Carlota, que percebera tudo, curvou muito o corpo, a brincar com um dos cachos. Usava cachos. Era uma de suas armas.

No dia seguinte, prosseguiu no reconhecimento, mas então mais próximo à fortaleza; Anacleto passou duas ou três vezes pela porta, sorriu, contraiu as sobrancelhas, piscou um olho. Ela sorriu também, mas sem olhar para ele, com um gesto muito disfarçador e gracioso. Ao cabo de quatro dias estavam esgotados estes preliminares amatórios, e Anacleto convencido de que podia empreender um ataque à viva força. A fortaleza pedia isso mesmo; a pontualidade com que o esperava à janela, o interesse com que o seguia, o sorriso que lhe guardava no canto do lábio eram tudo sintomas de que a fortaleza estava prestes a render-se.

Anacleto aventurou a primeira carta. A primeira carta de Anacleto era sempre a mesma. "Senhora! Desde o primeiro instante em que meus olhos tiveram a ventura, etc." Duas páginas deste chavão insípido, mas eficaz. Escrita a carta, dobrou-a, fechou-a em forma de laço, meteu-a no bolso e saiu. Passou; deixou cair a noite; voltou a passar e, cosendo-se com a parede e a rótula, deu-lhe a carta com uma arte só comparável à arte com que ela a recebeu. Carlota foi lê-la daí a alguns minutos.

Leu-a, mas não escreveu logo a resposta. Era um de seus artifícios; nem escreveu a resposta, nem chegou à janela nos dois dias posteriores.

Anacleto foi às nuvens quando, no dia seguinte, ao passar-lhe pela porta não viu a deusa da Gamboa, como os rapazes lhe chamavam. Era a primeira que lhe resistia ao estilo e ao almíscar. Repetiu-se-lhe o caso no outro dia, e ele sentiu alguma cousa semelhante ao amor-próprio ofendido.

- Ora dá-se! - dizia ele consigo mesmo -. Uma lambisgoia que... Daí, pode ser que esteja doente. É isso; está doente... Se pudesse saber alguma cousa! Mas como?

Não indagou nada e esperou mais vinte e quatro horas; resolução acertada, porque, vinte e quatro horas depois, tinha ele a fortuna de ver a deusa, logo que apontou ao longe.

- Lá está ela.

Carlota tinha-o visto e olhava para o mar. Anacleto aproximou-se; ela fitou-o; trocaram uma chispa. Justamente ao passar pela rótula, Anacleto sussurrou com voz trêmula e puxada do coração:

- Ingrata!

Ao que ela retorquiu:

- Às ave-marias.

Não havia já para o sobrinho de Bento Fagundes comoções novas. O dito de Carlota não lhe fez ferver o sangue. Sentiu-se porém lisonjeado. A praça estava rendida.

Logo depois das ave-marias voltou o petimetre, encostadinho à parede, a passo curto e demorado. Carlota deixou cair um papel, ele deixou cair o lenço e abaixou-se para apanhar o lenço e o papel. Quando ergueu a cabeça, a moça tinha desaparecido.

A carta era também um chavão. Carlota dizia sentir igual sentimento ao de Anacleto Monteiro, mas pedia-lhe que, se não fosse intenção dele amá-la deveras, melhor era deixá-la entregue à solidão e às lágrimas. Estas lágrimas, as mais hipotéticas do mundo, engoliu-as o sobrinho do boticário, porque era a primeira vez que lhe falavam delas logo na primeira epístola. Concluiu que o coração da pequena devia arder como um Vesúvio.

A isto seguiu-se uma orgia de cartas e passeios, de lencinho na boca, e de paradas à porta. Antes de parar à porta, Anacleto Monteiro aventurou um aperto de mão, cousa fácil, porque ela não a tinha pendurado para outra cousa.

Logo no dia seguinte passou; estiveram alguns instantes sem dizer nada; depois disseram ainda menos, porque falaram da lua e do calor. Foi só o introito. Está provado que a lua é o caminho do coração. Não tardou que começassem a repetir de viva voz tudo o que tinham escrito nas cartas. Juras eternas, saudades, paixão invencível. No ponto agudo do casamento nenhum deles tocou, ela por modéstia, ele por prudência; e assim correram as duas primeiras semanas.

IV

- Mas, deveras, você gosta de mim?

- Céus! Por que me fazes essa pergunta? - dizia pasmado Anacleto Monteiro.

- Eu sei! Você é tão volúvel!

- Volúvel, eu!

- Sim, você. Já me avisaram a seu respeito.

- Ah!

- Já me disseram que você gasta o seu tempo a namorar, a enganar as moças, e depois...

- Quem foi esse caluniador?

- Foi uma pessoa que você não conhece.

- Carlota, bem sabes que meu coração palpita por ti e somente por ti... Pelo contrário, você é que me parece não gostar nada... Não abane a cabeça; eu posso dar-lhe provas.

- Provas! Venha uma.

- Posso dar vinte. Em primeiro lugar, ainda não pude obter que você me desse um beijo. Que quer dizer isso, seria que você quer só passar o tempo?

Carlota fez uma careta.

- Que tem? Que é? - disse Anacleto Monteiro angustiado.

- Nada; uma pontada.

- Costumas a ter isso?

- Não, só ontem é que me apareceu... Há de ser a morte.

- Não digas semelhante cousa!

A dor passara e o beijo não viera. Anacleto Monteiro suspirava pelo beijo desde o sexto dia de palestra e Carlota com muita arte ia transferindo a dádiva para as calendas gregas.

Naquela noite saiu dali Anacleto um pouco picado de despeito, que era já um princípio de amor sério. Caminhou pela praia adiante, sem reparar em um vulto que a trinta ou quarenta passos estivera a espreitá-lo; um vulto que ali ficou ainda por espaço de meia hora.

Não reparou Anacleto, seguiu para casa e entrou zangado e melancólico. Fumou dez ou doze cigarros para distrair-se; leu duas ou três páginas do Carlos Magno; por fim deitou-se e só tarde conseguiu dormir. A figura de Carlota saía-lhe dos cigarros, das folhas do livro e de dentro dos lençóis. Na botica, logo que entrou, pareceu-lhe vê-la entre dois frascos de ipecacuanha. Começava a ser ideia fixa.

Surgiu o dia seguinte.

"Nada! É preciso cortar este negócio antes que vá mais longe", dizia ele consigo.

Dizê-lo era fácil; cumpri-lo era um pouco mais duro. Ainda assim, teve Anacleto forças para não ir nessa tarde à Gamboa; mas tão cruel foi a noite, e tão longo o dia seguinte, que na outra tarde, ainda o sol ardia longe do poente, e já o sobrinho do boticário palmilhava pela praia adiante.

Nestas negaças, neste ir e vir, zangar-se e reconciliar-se, perdia ele o tempo e perdia também a liberdade. O amor verdadeiro apoderou-se dele. As outras damas foram abandonadas aos demais pretendentes, que folgaram com a incompatibilidade moral de Anacleto Monteiro, por mais momentânea que ela fosse.

Antes de ir adiante, importa explicar que nenhuma pessoa havia dito a Carlota o que ela alegou que lhe disseram; era um recurso de namorada, uma peta inocente. Anacleto, na qualidade de varão, engoliu a caraminhola. Os homens neste caso são uma verdadeira lástima.

Desde que sentiu amar deveras, o sobrinho de Bento Fagundes pensou seriamente no casamento. Sua posição não era brilhante; mas nem a noiva exigira muito, nem seu coração tinha liberdade de refletir. Demais, havia para ele certa esperança nos xaropes do tio. Também ele cria que Bento Fagundes possuía algum pecúlio. Isto, o amor, a beleza de Carlota, a pobreza desta eram motivos poderosos para levá-lo a falar desde logo no desenlace religioso.

Uma noite aventurou o pedido.

Carlota ouviu-o com palpites; mas sua resposta foi uma evasiva, um adiamento.

- Mas por que não me responde já? - dizia ele desconfiado.

- Quero...

- Diga.

- Quero primeiro sondar mamãe.

- Sua mãe não se oporá à nossa felicidade.

- Creio que não; mas não desejo dar palavra sem estar certa de a poder cumprir.

- Logo não me ama.

- Que exageração!

Anacleto Monteiro mordeu a ponta do lenço.

- Não me ama! - gemeu ele.

- Amo, sim.

- Não! Se me amasse, outra seria sua resposta. Adeus, Carlota! Adeus para sempre!

E deu alguns passos...

Carlota não lhe respondeu nada. Deixou-se ficar à janela até que ele voltasse, o que não demorou muito. Anacleto voltou.

- Jura que me ama? - disse ele.

- Juro.

- Vou mais tranquilo. Só desejo saber quando poderei obter sua resposta.

- Dentro de uma semana; talvez antes.

- Adeus!

- Adeus!

Dessa vez o vulto que o espreitara em uma das noites anteriores estava no mesmo lugar, e quando o viu afastar-se caminhou para ele. Caminhou e parou; olharam-se: foi um lance teatral.

O vulto era Adriano.

Vai o leitor vendo que o conto não se parece com outros de água morna. Neste há inclinação trágica. Um leitor atilado vê já ali uma espécie de fratricídio moral, um produto do destino antigo. Não é bem isso; mas podia ser. Adriano não sacou um punhal do bolso, nem Anacleto recorreu à espada, que aliás nem trazia nem possuía. Digo mais: Anacleto nem suspeitou nada.

- Tu por aqui!

- Ando a tomar fresco.

- Tens razão; faz um calor!

Os dois seguiram; falaram de várias cousas estranhas até chegarem à porta da casa de Adriano. Cinco minutos depois, Anacleto despedia-se.

- Onde vais?

- Para casa; são nove horas.

- Podes dispensar alguns minutos? - disse Adriano em tom sério.

- Pois não.

- Entra.

Entraram.

Anacleto ia meio intrigado, como dizem os franceses; o tom do primo, seus modos, tudo tinha um ar misterioso e aguçava a curiosidade.

Adriano não o fez demorar muito, nem deu lugar a conjecturas. Logo que entraram, acendeu uma vela, convidou-o a sentar-se e falou por este modo:

- Você gosta daquela moça?

Anacleto estremeceu.

- Que moça? - perguntou ele depois de curto silêncio.

- A Carlota.

- A da praia da Gamboa?

- Sim.

- Quem lhe disse isso?

- Responda: gosta?

- Creio que sim.

- Mas... deveras?

- Essa agora!

- A pergunta é natural - disse Adriano com tranquilidade -. Você é conhecido por gostar de namorar umas e outras. Não há motivo de censura, porque assim fazem muitos rapazes. Por isso desejo saber se gosta deveras, ou se é um simples passatempo.

Anacleto refletiu alguns instantes.

- Desejava saber qual será sua conclusão em qualquer dos casos.

- Simplíssima. No caso de ser passatempo, pedir-lhe-ei que não ande a iludir uma pobre moça que lhe não fez mal nenhum.

Anacleto já estava sério.

- E no caso de gostar deveras? - disse ele.

- Nesse caso, dir-lhe-ei que também gosto dela deveras e que, sendo ambos competidores, poderemos resolver este conflito por algum modo.

Anacleto Monteiro bateu com a bengala no chão e ergueu-se fazendo um arremesso, enquanto Adriano, pacificamente sentado, aguardava a resposta do primo. Este passeou de um lado para outro sem saber que lhe respondesse e desejoso de o deitar pela janela fora. O silêncio foi longo. Anacleto rompeu-o, detendo-se de súbito:

- Mas não me dirá qual será o modo de resolver o conflito? - disse ele.

- Vários.

- Vejamos - disse Anacleto, sentando-se de novo.

- Primeiro: você desiste de a pretender; é o mais fácil e simples.

Anacleto contentou-se com sorrir.

- O segundo?

- O segundo é retirar-me eu.

- É o melhor.

- É o impossível, nunca o farei.

- Ah! Então sou eu que devo retirar-me e deixá-lo... Na verdade!

- Terceiro modo - continuou pacificamente Adriano -: ela escolher entre ambos.

- Isso é ridículo.

- Justamente: é ridículo... E é por ser destes três modos, um ridículo e outro impossível, que eu lhe proponho o mais praticável dos três: sua retirada. Você tem namorado muitas sem casar; será mais uma. E eu, que não uso namorar, gostei desta e espero chegar ao casamento.

Só então lembrou a Anacleto fazer-lhe a mais natural pergunta do mundo:

- Mas tem você certeza de ser amado por ela?

- Não.

Anacleto não se pôde conter; levantou-se, soltou dois impropérios e dirigiu-se para a porta. O primo foi ter com ele.

- Venha cá - disse -; resolvamos primeiro este negócio.

- Resolver o quê?

- Quer então ficar mal comigo?

Anacleto ergueu secamente os ombros.

- Quer a luta? - tornou o outro -. Pois lutaremos, pelintra!

- Não luto com jarretas!

- Tolo!

- Malcriado!

- Sai daqui, pateta!

- Saio, sim; mas não é por causa de seus berros, ouviu?

- Gabola!

- Grosseirão!

Anacleto saiu; o primo soltou-lhe ainda um adjetivo através das persianas, a que ele respondeu com outro, e foi o último.

V

Adriano, logo que ficou só, aplacou a cólera com uma pitada, monologou um pouco e refletiu longo tempo. De todas as injúrias que o primo lhe dissera, a que mais o impressionou foi o epíteto de jarreta, evidentemente cabido. Adriano viu-se ao espelho e concluiu que, efetivamente, uma gravata com menos voltas não lhe iria mal. A roupa, em vez de comprada em um adelo, podia ser mandada fazer por algum alfaiate. Só não sacrificou ao chapéu branco.

- O chapéu branco é a pacholice do vestuário - disse ele.

Depois, lembrou-se de Carlota, de seus olhos negros, dos gestos de desdém que lhe fazia quando ele lhe cravava uns olhos mortos. Seu coração palpitava com uma força incrível; era amor, cólera, despeito, desejo de triunfar. O sono dessa noite foi entremeado de sonhos agradáveis e terríveis pesadelos. Um destes foi imenso. Adriano sonhou que o primo lhe arrancava os olhos com a ponta da bengala, depois de lhe pôr na cara o par de botas, em um dia de chuva miúda, testemunha desse espetáculo, que fazia lembrar os mais belos dias de Calígula; Carlota ria às gargalhadas. O pregão de uma quitandeira arrancou-o felizmente ao suplício; eram sete horas da manhã.

Adriano não perdeu tempo. Logo nesse dia tratou de melhorar a toilette, abrindo um pouco os cordões da bolsa. A que não obriga o amor? Adriano encomendou umas calças menos irrisórias, um paletó mais sociável; muniu-se de outro chapéu; sacrificou os sapatos de dous mil e quinhentos. Quando estes utensílios lhe foram entregues, Adriano investiu denodadamente à praia da Gamboa, onde não fora desde a noite do último encontro com Anacleto.

Pela sua parte, o primo não perdera tempo. Não receava a competência de Adriano Fagundes, mas tinha para si que se desforraria das pretensões deste, apressando o casamento. E, conquanto nada receasse do outro, de quando em quando lhe soava no coração a palavra imperiosa do primo, e, incerto das predileções de Carlota, não sabia às vezes em que daria o duelo.

Vendo-o triste e preocupado, o boticário lembrou-se das palavras da Sra. D. Leonarda, e, como tinha grande afeto ao sobrinho, sentia cócegas de lhe dizer alguma cousa, de o interrogar a respeito da mudança que lhe notava. Não se atrevia. A Sra. D. Leonarda, com quem conferenciou a tal respeito, acudiu logo:

- Não lhe dizia eu? Não é nada; são amores. O rapaz está pelo beiço...

- Pelo beiço de quem? - perguntou Bento Fagundes.

- Isso... não sei... ou... não posso dizer... Há de ser ali para os lados da Gamboa...

Bento Fagundes não pôde obter mais. Continuou aborrecido. Anacleto Monteiro não voltava a ser o que era antes; ele temia alguma pretensão mal acertada, e pensava já em intervir, se fosse caso disso e valesse a pena.

- Que tens tu, rapaz? Andas melancólico...

- Não tenho nada; ando constipado - dizia Anacleto Monteiro sem atrever-se a encarar o tio.

Metade dos motivos da constipação de Anacleto, já o leitor os conhece; a outra metade vou dizer-lha.

Insistira o rapaz no casamento, e Carlota continuava a negacear. A razão deste proceder explica-se dizendo que ela queria fazer-se rogada, prender mais fortemente o coração de Anacleto, despeitá-lo; e a razão da razão era que mais de uma vez prometera a mão, desde o primeiro dia, a sujeitos que não se lembravam mais de ir buscá-la. Carlota namorava desde os quinze anos e estava cansada de esperar um noivo. Agora, seu plano era despeitar o pretendente, certa de que os homens nada desejam mais ardentemente do que o amor que se lhes nega desde logo. Carlota era um principezinho de Metternich.

Irritado com a recusa e o adiamento da moça, Anacleto cometeu um erro monumental: aventurou a ideia de que houvesse algum rival, e, negando-o ela, retorquiu o pascácio:

- Tenho, tenho... Não há muitos dias escapei de me perder por sua causa.

- Minha causa?

- É verdade. Um bigorrilhas, que, por minha desgraça, é meu primo, espreitou-me uma noite inteira e depois foi provocar-me.

- Sim?

- Provocar-me, é verdade. Estivemos a ponto de pegar-nos. Ele escumava de raiva, chorava, rasgava-se, mas eu, que lhe sou superior em tudo, não lhe dei trela e saí.

- Ora essa!

- Sabes o que me propôs?

- Que foi?

- Que eu desistisse de tua mão em favor dele.

- Tolo!

- Não achas?

- Sem dúvida!

- Jura-me que não és dele!

- Juro!

- Vou mais contente. Mas quando falarás a tua mãe?

- Hoje; hoje ou amanhã.

- Fala hoje mesmo.

- Pode ser.

Depois de um instante disse Carlota:

- Mas eu nem me lembro de o ter visto! Que figura tem ele?

- Um jarreta.

E Anacleto Monteiro, com aquela ternura que a situação lhe metia na alma, descreveu a figura do primo, de quem Carlota se lembrou logo perfeitamente.

Fisicamente, não ficou a moça lisonjeada; mas a ideia de ser loucamente amada, ainda por um jarreta, foi-lhe muito agradável ao coração. As mulheres são principalmente sensíveis. Demais, Anacleto Monteiro cometera erro crasso sobre erro crasso: além de referir a paixão do primo, exagerou-lhe os efeitos; e dizer a Carlota que um rapaz chorara por ela e se arrepelara era o mesmo que recomendar-lho à imaginação.

Carlota pensou efetivamente no jarreta, cuja paixão lhe parecia senão mais sincera, pelo menos mais ardente que a do elegante. Tinha lido romances; gostava dos amores que saem do vulgar. A figura porém de Adriano temperava cruelmente essas impressões. Quando lhe lembrava o trajo e o desalinho do rapaz, sentia-se algo vexada; mas ao mesmo tempo perguntava a si própria se o apuro de Anacleto não orçava pelo ridículo. As gravatas deste, se não eram amarrotadas como as de Adriano, eram vistosas demais. Ela não sabia ainda o nome do jarreta, mas já o nome de Anacleto lhe não parecia bonito.

Estas imaginações de Carlota coincidiram com a pontualidade do alfaiate de Adriano, por modo que no dia seguinte ao da notícia que Anacleto lhe dera, viu Carlota aparecer o seu amador silencioso, melhormente encadernado. A moça estremeceu ao vê-lo e quando ele lhe passou pela porta, a olhar para ela, Carlota não retirou os olhos nem lhes deu má expressão. Adriano passou, olhou duas vezes para trás sem que ela saísse da janela. Longe disso! Estava tão encantada com a ideia de que aquele homem chorava por ela e se finava de amores, que ele lhe pareceu melhor do que estava.

Ambos ficaram satisfeitos um do outro.

Este é o ponto agudo da narração; repouse a leitora um instante e verá cousas espantosas.

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