Que ele era um dos primeiros gamenhos de seu bairro e outros bairros adjacentes é cousa que não sofre nem sofreu nunca a menor contestação. Podia ter competidores; teve-os; não lhe faltaram invejosos; mas a verdade, como o sol, acabou dissipando as nuvens e mostrando a face rutilante e divina, ou divinamente rutilante, como lhes parecer mais correntio e penteado. O estilo há de ir à feição do conto, que é singelo, nu, vulgar, não desses contos crespos e arrevesados com que autores de má sorte tomam o tempo e moem a paciência à gente cristã. Pois não! Eu não sei dizer cousas fabuladas e impossíveis, mas as que me passam pelos olhos, as que os leitores podem ver e terão visto. Olho, ouço e escrevo.
E é por isso que não lhes pinto o meu gamenho de olhos derreados e fronte byroniana. De Byron é que ele não tinha nada, a não ser um volume truncado, vertido em prosa francesa, volume que ele lia e relia, a ver se extraía dele e da cabeça um recitativo à dama de seus pensamentos, que pela sua parte era a mais galante do bairro.
O bairro era o espaço compreendido entre o largo da Imperatriz e o cemitério dos Ingleses. A data... há uns vinte e cinco anos. O gamenho tinha por nome Anacleto Monteiro. Era nesse tempo um rapaz de vinte e três para vinte e quatro anos, com um princípio de barba e outro de bigode, rosto moreno, olhos de azeviche, cabelo castanho, grosso, farto e comprido, que ele arranjava em caracóis, à força de pente e banha e sobre o qual punha às tardes, o melhor de seus dois chapéus brancos. Anacleto Monteiro adorava o chapéu branco e as botas de verniz. Naquele tempo alguns gamenhos usavam umas botas de verniz de cano vermelho. Anacleto Monteiro adotou esse invento como a mais sublime das invenções do século. E tão gentil lhe parecia a ideia do cano vermelho, que nunca saía de casa sem levantar uma polegada às calças para que os olhos das damas não perdessem aquela circunstância da cor de crista de galo. As calças eram finas, mas vistosas, o paletó esticado, a luva cor de canela ou de cinza, em harmonia com a gravata, que era cor de cinza ou de canela. Ponham-lhe uma bengala na mão e vê-lo-ão tal qual era, há vinte e cinco anos, o primeiro gamenho de seu bairro.
Dizendo que era o primeiro não me refiro à elegância, mas à audácia, que era verdadeiramente napoleônica. Anacleto Monteiro estava longe de competir com outros rapazes do tempo e do bairro, no capítulo da toilette e das maneiras; mas derrubava-os a todos no namoro. No namoro era um verdadeiro gênio. Namorava por necessidade, do mesmo modo que o pássaro canta: era índole, vocação, conformação do espírito. Que mérito ou que culpa há na mangueira em dar mangas? Pois era a mesma cousa Anacleto Monteiro.
- Este pelintra ainda me há de entrar em casa um dia com as costelas quebradas - dizia o tio a uma parenta -; mas, se ele pensa que chamarei médico, engana-se redondamente. Meto-lhe o côvado e meio de pano no corpo, isso sim!
- Rapaziadas... - objetava timidamente a parenta.
- Qual, rapaziadas! Desaforadas é o que deve dizer. Não respeita nada nem ninguém; é só namorar. Tudo o que ganha é para aquilo, que a senhora vê; é para adamar-se, almiscarar-se, e lá vai ele! Ah! Se ele não fosse filho daquela irmã, que Deus tem!...
E o Sr. Bento Fagundes consolava-se das extravagâncias do sobrinho inserindo no nariz duas onças de Paulo Cordeiro.
- Deixai lá; mais dia menos dia, vem o casamento e sossega.
- Qual casamento, qual carapuça! Pois como há de casar uma cabeça de vento que namora às quatro e às cinco?
- Uma das cinco fisga-o...
- Há de ser naturalmente a pior.
- Isso lá são desatinos. O que podemos ter por certo é que ele não há de gastar a vida toda nisso...
- Gasta, gasta... Olhe, o barbeiro é dessa opinião.
- Deixe lá o barbeiro... Quer que lhe diga? Eu creio que, mais dia menos dia, ele está fisgado... Já está... Há aí umas cousas que ouvi dizer na missa de domingo passado...
- Que foi?
- Umas cousas...
- Diga.
- Não digo. O que for aparecerá. Talvez tenhamos casamento mais breve do que pensa...
- Sim?
A Sra. Leonarda fez um gesto de cabeça. O Sr. Bento Fagundes esteve algum tempo a olhar as paredes; depois prorrompeu irado:
- Mas, tanto pior! Ele não está em posição de casar. Salvo se a sujeita...
E o orador concluía a frase esfregando o polegar no indicador, gesto que a Sra. D. Leonarda correspondeu com outro derreando os cantos da boca, e abanando a cabeça da direita para a esquerda.
- Pobre! - traduziu o Sr. Bento Fagundes -. Olhe! Se ele pensa que há de vir meter-me a mulher em casa, está muito enganado. Eu não fiz cinquenta e quatro anos para sustentar família nova. Talvez ele pensa que eu tenho mundos e fundos.
- Mundos, não digo, primo; mas fundos...
- Fundos! Os das gavetas.
Aqui o Sr. Bento Fagundes ia esfriando e desconversando, e a Sra. D. Leonarda traçava o xale e despedia-se.
II
Bento Fagundes da Purificação era boticário, na rua da Saúde, desde antes de 1830. Em 1852, data do conto, tinha ele vinte e três anos de botica e um pecúlio, em que todos acreditavam, posto ninguém dissesse tê-lo visto. Aparentemente havia dois escravos, comprados no Valongo, quando esses eram ainda boçais e a preço módico.
Vivia o Sr. Bento Fagundes uma vida monótona e aborrecida como a chuva miúda. Raro saía da botica. Nos domingos havia um vizinho que o ia entreter ao gamão, jogo em que ele era emérito, porque era inalterável contra as pirraças da sorte, vantagem contra o adversário, que era irritadiço e frenético. Felizmente para as botijas do Sr. Bento Fagundes, as cousas não se passavam como no soneto de Tolentino; o parceiro não atirava ao ar as tábulas, limitava-se a expectorar a cólera, derramar o rapé, assoar as orelhas, o queixo, a gravata, antes de atinar com o nariz. Às vezes acontecia brigar com o boticário e ficar mal com ele até o domingo seguinte; o gamão reconciliava-os: similia similibus curantur.
Nos demais dias, o Sr. Bento Fagundes vendia drogas, manipulava as cataplasmas, temperava e arredondava as pílulas. De manhã, lavado e enfronhado no rodaque de chita amarela, sentava-se em uma cadeira à porta, a ler o Jornal do Commercio, que lhe emprestava o padeiro da esquina. Não lhe escapava nada, desde os debates das câmaras até os anúncios teatrais, posto não fosse a espetáculos nem saísse nunca. Lia com igual pachorra todos os anúncios particulares. Os derradeiros minutos eram dados ao movimento do porto. Uma vez inteirado das cousas do dia, entregava-se todo aos mesteres da farmácia.
Esta vida tinha duas alterações durante o ano: uma na ocasião das festas do Espírito Santo, em que o Sr. Bento Fagundes ia ver as barracas, em companhia dos três parentes que tinha; outra na ocasião da procissão de Corpus Christi. Salvo essas duas ocasiões, nunca mais vinha à cidade o Sr. Bento Fagundes. Assim quê, era todo ele uma regularidade de cronômetro; um gesto compassado e um ar soturno com o qual se parecia a botica, que era uma loja escura e melancólica.
Claro é que um homem com tais hábitos longamente adquiridos mal poderia suportar a vida que levava o pintalegrete do sobrinho. Anacleto Monteiro não era só pintalegrete; trabalhava; tinha um emprego no Arsenal de Guerra; e só acabado o trabalho ou nos dias de férias, atirava-se às ruas da Saúde e adjacentes. Que ele passeasse uma vez ou outra, não lho contestava o tio; mas sempre, e de botas encarnadas, eis o escândalo. Daí a raiva, os ralhos, as explosões. E quem o obriga a alojá-lo na botica, a dar-lhe casa, cama e mesa? O coração, leitora minha, o coração de Bento Fagundes, que ainda se conservava mais puro do que suas drogas. Bento Fagundes tinha dois sobrinhos: o nosso Anacleto, que era filho de uma sua irmã muito querida, e Adriano Fagundes, filho de um irmão, a quem ele detestava enquanto vivo foi. Em Anacleto amava a lembrança da irmã; em Adriano, as qualidades pessoais; amava-os igualmente, e talvez um poucochinho mais a Adriano do que ao outro.
As boas qualidades deste eram mais conformes ao gênio do boticário. Primeiramente, não usava botas encarnadas, nem chapéu branco, nem luvas, nem qualquer outro distintivo de peraltice. Era um jarreta precoce. Não arruava, não ia a teatros, não gostava charutos. Tinha vinte e cinco anos e tomava rapé desde os vinte. Finalmente, apesar do convite que o tio lhe fez, nunca foi morar com ele; residia em casa sua, na rua do Propósito. Bento Fagundes suspeitava que ele punha dinheiro de lado, suspeita que o tornava ainda mais digno de apreço.
Não havia entre os dois primos grande afeição; mas davam-se, encontravam-se frequentes vezes ou em casa do tio, ou na casa de Adriano. Nem este podia suportar a peraltice de Anacleto; nem Anacleto, o jarretismo de Adriano e ambos tinham razão porque cada um deles via as cousas através de suas próprias preferências, que é o que acontece aos demais homens; sem embargo, porém, desse abismo que entre os dois havia, davam-se e continuavam as relações da infância.
O tio estimava vê-los mais ou menos unidos. Sua cólera a respeito de Anacleto, seus protestos de o não receber em casa quando ele casasse eram protestos ao vento, era cólera de namorado. Por outro lado, a sequidão com que tratava Adriano era apenas uma crosta, uma aparência mentirosa. Como ficou dito, os dois rapazes eram as duas únicas afeições do velho farmacêutico, e a dor única e verdadeira que ele teria era se os visse inimigos. Vendo-os amigos, não pedia Bento Fagundes nada mais ao destino do que vê-los sãos, empregados e felizes. Eles e a Sra. D. Leonarda eram seus únicos parentes; esta mesma veio a morrer antes dele, não lhe restando nos últimos dias mais do que Anacleto e Adriano, as meninas de seus olhos.
III
Ora, é de saber que justamente no tempo em que a Sra. D. Leonarda fez meia confidência ao boticário, era esta nada menos que verídica. Entre os dez ou doze namoros que o jovem Anacleto entretinha nessa ocasião, havia um que ameaçava internar-se pelos domínios conjugais.
A donzela que assim queria cortar as asas ao volúvel Anacleto morava na praia da Gamboa. Era um demoninho de olhos pretos, que é a cor infernal por excelência. Dizia-se na vizinhança que em matéria de namoro ela pedia meças ao sobrinho de Bento Fagundes. Devia ser assim, porque muita sola de sapato era gasta na referida praia, só por motivo dela, sem que nenhum dos pretendentes desanimasse, o que é prova de que se a boa menina lhes não respondia que sim, também lhes não dizia que não.
Carlota era o nome desta volúvel criatura. Tinha perto de dezenove anos e não possuía dezenove mil-réis. Os pretendentes não olhavam a isso; gostavam dela pelos olhos, pela figura, por todas as graças que viam nela, e nada mais. As vizinhas, suas naturais competidoras, não podiam perdoar-lhe a espécie de monopólio que ela exercia em relação aos pintalegretes do bairro. Poucas eram as que prendiam algum deles e estes eram quase todos, não rapazes desenganados, mas precavidos, que depois de muito tempo, sem largar Carlota, iniciavam alguns namoros suplementares.
Quando Anacleto Monteiro se dignou baixar os olhos a Carlota foi com a intenção feita de derrubar todos os pretendentes, fazer-se amado e romper depois o namoro, como era costume seu; restituiria as cartas, ficando com duas, e a trança de cabelo, escondendo alguns fios.
Um domingo de tarde Anacleto Monteiro vestiu a melhor das roupas, empomadou-se, almiscarou-se, enfeitou-se, pôs na cabeça o mais alvo dos chapéus e saiu na direção da Gamboa. Um general não dispõe melhormente as suas tropas. A peleja era de honra; ele afiançara a alguns amigos, em uma loja de barbeiro, que deitaria ao chão todos os que pretendiam o coração da pequena; cumpria dirigir o ataque em regra.
Nessa tarde houve só um reconhecimento, e completo.
Ele passou, fitando na moça uns olhos lânguidos, depois intimidativos, depois misteriosos. A vinte passos parou, olhando para o mar, tirou o lenço, chegou aos lábios, e guardou-o depois de o agitar um pouco em forma de adeus. Carlota, que percebera tudo, curvou muito o corpo, a brincar com um dos cachos. Usava cachos. Era uma de suas armas.
No dia seguinte, prosseguiu no reconhecimento, mas então mais próximo à fortaleza; Anacleto passou duas ou três vezes pela porta, sorriu, contraiu as sobrancelhas, piscou um olho. Ela sorriu também, mas sem olhar para ele, com um gesto muito disfarçador e gracioso. Ao cabo de quatro dias estavam esgotados estes preliminares amatórios, e Anacleto convencido de que podia empreender um ataque à viva força. A fortaleza pedia isso mesmo; a pontualidade com que o esperava à janela, o interesse com que o seguia, o sorriso que lhe guardava no canto do lábio eram tudo sintomas de que a fortaleza estava prestes a render-se.
Anacleto aventurou a primeira carta. A primeira carta de Anacleto era sempre a mesma. "Senhora! Desde o primeiro instante em que meus olhos tiveram a ventura, etc." Duas páginas deste chavão insípido, mas eficaz. Escrita a carta, dobrou-a, fechou-a em forma de laço, meteu-a no bolso e saiu. Passou; deixou cair a noite; voltou a passar e, cosendo-se com a parede e a rótula, deu-lhe a carta com uma arte só comparável à arte com que ela a recebeu. Carlota foi lê-la daí a alguns minutos.
Leu-a, mas não escreveu logo a resposta. Era um de seus artifícios; nem escreveu a resposta, nem chegou à janela nos dois dias posteriores.
Anacleto foi às nuvens quando, no dia seguinte, ao passar-lhe pela porta não viu a deusa da Gamboa, como os rapazes lhe chamavam. Era a primeira que lhe resistia ao estilo e ao almíscar. Repetiu-se-lhe o caso no outro dia, e ele sentiu alguma cousa semelhante ao amor-próprio ofendido.
- Ora dá-se! - dizia ele consigo mesmo -. Uma lambisgoia que... Daí, pode ser que esteja doente. É isso; está doente... Se pudesse saber alguma cousa! Mas como?
Não indagou nada e esperou mais vinte e quatro horas; resolução acertada, porque, vinte e quatro horas depois, tinha ele a fortuna de ver a deusa, logo que apontou ao longe.
- Lá está ela.
Carlota tinha-o visto e olhava para o mar. Anacleto aproximou-se; ela fitou-o; trocaram uma chispa. Justamente ao passar pela rótula, Anacleto sussurrou com voz trêmula e puxada do coração:
- Ingrata!
Ao que ela retorquiu:
- Às ave-marias.
Não havia já para o sobrinho de Bento Fagundes comoções novas. O dito de Carlota não lhe fez ferver o sangue. Sentiu-se porém lisonjeado. A praça estava rendida.
Logo depois das ave-marias voltou o petimetre, encostadinho à parede, a passo curto e demorado. Carlota deixou cair um papel, ele deixou cair o lenço e abaixou-se para apanhar o lenço e o papel. Quando ergueu a cabeça, a moça tinha desaparecido.
A carta era também um chavão. Carlota dizia sentir igual sentimento ao de Anacleto Monteiro, mas pedia-lhe que, se não fosse intenção dele amá-la deveras, melhor era deixá-la entregue à solidão e às lágrimas. Estas lágrimas, as mais hipotéticas do mundo, engoliu-as o sobrinho do boticário, porque era a primeira vez que lhe falavam delas logo na primeira epístola. Concluiu que o coração da pequena devia arder como um Vesúvio.
A isto seguiu-se uma orgia de cartas e passeios, de lencinho na boca, e de paradas à porta. Antes de parar à porta, Anacleto Monteiro aventurou um aperto de mão, cousa fácil, porque ela não a tinha pendurado para outra cousa.
Logo no dia seguinte passou; estiveram alguns instantes sem dizer nada; depois disseram ainda menos, porque falaram da lua e do calor. Foi só o introito. Está provado que a lua é o caminho do coração. Não tardou que começassem a repetir de viva voz tudo o que tinham escrito nas cartas. Juras eternas, saudades, paixão invencível. No ponto agudo do casamento nenhum deles tocou, ela por modéstia, ele por prudência; e assim correram as duas primeiras semanas.
IV
- Mas, deveras, você gosta de mim?
- Céus! Por que me fazes essa pergunta? - dizia pasmado Anacleto Monteiro.
- Eu sei! Você é tão volúvel!
- Volúvel, eu!
- Sim, você. Já me avisaram a seu respeito.
- Ah!
- Já me disseram que você gasta o seu tempo a namorar, a enganar as moças, e depois...
- Quem foi esse caluniador?
- Foi uma pessoa que você não conhece.
- Carlota, bem sabes que meu coração palpita por ti e somente por ti... Pelo contrário, você é que me parece não gostar nada... Não abane a cabeça; eu posso dar-lhe provas.
- Provas! Venha uma.
- Posso dar vinte. Em primeiro lugar, ainda não pude obter que você me desse um beijo. Que quer dizer isso, seria que você quer só passar o tempo?
Carlota fez uma careta.
- Que tem? Que é? - disse Anacleto Monteiro angustiado.
- Nada; uma pontada.
- Costumas a ter isso?
- Não, só ontem é que me apareceu... Há de ser a morte.
- Não digas semelhante cousa!
A dor passara e o beijo não viera. Anacleto Monteiro suspirava pelo beijo desde o sexto dia de palestra e Carlota com muita arte ia transferindo a dádiva para as calendas gregas.
Naquela noite saiu dali Anacleto um pouco picado de despeito, que era já um princípio de amor sério. Caminhou pela praia adiante, sem reparar em um vulto que a trinta ou quarenta passos estivera a espreitá-lo; um vulto que ali ficou ainda por espaço de meia hora.
Não reparou Anacleto, seguiu para casa e entrou zangado e melancólico. Fumou dez ou doze cigarros para distrair-se; leu duas ou três páginas do Carlos Magno; por fim deitou-se e só tarde conseguiu dormir. A figura de Carlota saía-lhe dos cigarros, das folhas do livro e de dentro dos lençóis. Na botica, logo que entrou, pareceu-lhe vê-la entre dois frascos de ipecacuanha. Começava a ser ideia fixa.
Surgiu o dia seguinte.
"Nada! É preciso cortar este negócio antes que vá mais longe", dizia ele consigo.
Dizê-lo era fácil; cumpri-lo era um pouco mais duro. Ainda assim, teve Anacleto forças para não ir nessa tarde à Gamboa; mas tão cruel foi a noite, e tão longo o dia seguinte, que na outra tarde, ainda o sol ardia longe do poente, e já o sobrinho do boticário palmilhava pela praia adiante.
Nestas negaças, neste ir e vir, zangar-se e reconciliar-se, perdia ele o tempo e perdia também a liberdade. O amor verdadeiro apoderou-se dele. As outras damas foram abandonadas aos demais pretendentes, que folgaram com a incompatibilidade moral de Anacleto Monteiro, por mais momentânea que ela fosse.
Antes de ir adiante, importa explicar que nenhuma pessoa havia dito a Carlota o que ela alegou que lhe disseram; era um recurso de namorada, uma peta inocente. Anacleto, na qualidade de varão, engoliu a caraminhola. Os homens neste caso são uma verdadeira lástima.
Desde que sentiu amar deveras, o sobrinho de Bento Fagundes pensou seriamente no casamento. Sua posição não era brilhante; mas nem a noiva exigira muito, nem seu coração tinha liberdade de refletir. Demais, havia para ele certa esperança nos xaropes do tio. Também ele cria que Bento Fagundes possuía algum pecúlio. Isto, o amor, a beleza de Carlota, a pobreza desta eram motivos poderosos para levá-lo a falar desde logo no desenlace religioso.
Uma noite aventurou o pedido.
Carlota ouviu-o com palpites; mas sua resposta foi uma evasiva, um adiamento.
- Mas por que não me responde já? - dizia ele desconfiado.
- Quero...
- Diga.
- Quero primeiro sondar mamãe.
- Sua mãe não se oporá à nossa felicidade.
- Creio que não; mas não desejo dar palavra sem estar certa de a poder cumprir.
- Logo não me ama.
- Que exageração!
Anacleto Monteiro mordeu a ponta do lenço.
- Não me ama! - gemeu ele.
- Amo, sim.
- Não! Se me amasse, outra seria sua resposta. Adeus, Carlota! Adeus para sempre!
E deu alguns passos...
Carlota não lhe respondeu nada. Deixou-se ficar à janela até que ele voltasse, o que não demorou muito. Anacleto voltou.
- Jura que me ama? - disse ele.
- Juro.
- Vou mais tranquilo. Só desejo saber quando poderei obter sua resposta.
- Dentro de uma semana; talvez antes.
- Adeus!
- Adeus!
Dessa vez o vulto que o espreitara em uma das noites anteriores estava no mesmo lugar, e quando o viu afastar-se caminhou para ele. Caminhou e parou; olharam-se: foi um lance teatral.
O vulto era Adriano.
Vai o leitor vendo que o conto não se parece com outros de água morna. Neste há inclinação trágica. Um leitor atilado vê já ali uma espécie de fratricídio moral, um produto do destino antigo. Não é bem isso; mas podia ser. Adriano não sacou um punhal do bolso, nem Anacleto recorreu à espada, que aliás nem trazia nem possuía. Digo mais: Anacleto nem suspeitou nada.
- Tu por aqui!
- Ando a tomar fresco.
- Tens razão; faz um calor!
Os dois seguiram; falaram de várias cousas estranhas até chegarem à porta da casa de Adriano. Cinco minutos depois, Anacleto despedia-se.
- Onde vais?
- Para casa; são nove horas.
- Podes dispensar alguns minutos? - disse Adriano em tom sério.
- Pois não.
- Entra.
Entraram.
Anacleto ia meio intrigado, como dizem os franceses; o tom do primo, seus modos, tudo tinha um ar misterioso e aguçava a curiosidade.
Adriano não o fez demorar muito, nem deu lugar a conjecturas. Logo que entraram, acendeu uma vela, convidou-o a sentar-se e falou por este modo:
- Você gosta daquela moça?
Anacleto estremeceu.
- Que moça? - perguntou ele depois de curto silêncio.
- A Carlota.
- A da praia da Gamboa?
- Sim.
- Quem lhe disse isso?
- Responda: gosta?
- Creio que sim.
- Mas... deveras?
- Essa agora!
- A pergunta é natural - disse Adriano com tranquilidade -. Você é conhecido por gostar de namorar umas e outras. Não há motivo de censura, porque assim fazem muitos rapazes. Por isso desejo saber se gosta deveras, ou se é um simples passatempo.
Anacleto refletiu alguns instantes.
- Desejava saber qual será sua conclusão em qualquer dos casos.
- Simplíssima. No caso de ser passatempo, pedir-lhe-ei que não ande a iludir uma pobre moça que lhe não fez mal nenhum.
Anacleto já estava sério.
- E no caso de gostar deveras? - disse ele.
- Nesse caso, dir-lhe-ei que também gosto dela deveras e que, sendo ambos competidores, poderemos resolver este conflito por algum modo.
Anacleto Monteiro bateu com a bengala no chão e ergueu-se fazendo um arremesso, enquanto Adriano, pacificamente sentado, aguardava a resposta do primo. Este passeou de um lado para outro sem saber que lhe respondesse e desejoso de o deitar pela janela fora. O silêncio foi longo. Anacleto rompeu-o, detendo-se de súbito:
- Mas não me dirá qual será o modo de resolver o conflito? - disse ele.
- Vários.
- Vejamos - disse Anacleto, sentando-se de novo.
- Primeiro: você desiste de a pretender; é o mais fácil e simples.
Anacleto contentou-se com sorrir.
- O segundo?
- O segundo é retirar-me eu.
- É o melhor.
- É o impossível, nunca o farei.
- Ah! Então sou eu que devo retirar-me e deixá-lo... Na verdade!
- Terceiro modo - continuou pacificamente Adriano -: ela escolher entre ambos.
- Isso é ridículo.
- Justamente: é ridículo... E é por ser destes três modos, um ridículo e outro impossível, que eu lhe proponho o mais praticável dos três: sua retirada. Você tem namorado muitas sem casar; será mais uma. E eu, que não uso namorar, gostei desta e espero chegar ao casamento.
Só então lembrou a Anacleto fazer-lhe a mais natural pergunta do mundo:
- Mas tem você certeza de ser amado por ela?
- Não.
Anacleto não se pôde conter; levantou-se, soltou dois impropérios e dirigiu-se para a porta. O primo foi ter com ele.
- Venha cá - disse -; resolvamos primeiro este negócio.
- Resolver o quê?
- Quer então ficar mal comigo?
Anacleto ergueu secamente os ombros.
- Quer a luta? - tornou o outro -. Pois lutaremos, pelintra!
- Não luto com jarretas!
- Tolo!
- Malcriado!
- Sai daqui, pateta!
- Saio, sim; mas não é por causa de seus berros, ouviu?
- Gabola!
- Grosseirão!
Anacleto saiu; o primo soltou-lhe ainda um adjetivo através das persianas, a que ele respondeu com outro, e foi o último.