Conto

Casa Velha

1885

IX

No dia 20 achei, com efeito, tudo mudado, Lalau suspeitosa e triste, Félix retraído e seco. Este veio contar-me o que se passara, e acabou dizendo que o estado moral da menina pedia a minha intervenção. Pela sua parte não queria mudar de maneiras com ela, para não entreter um sentimento condenado; não ousava também dar-lhe notícia da situação nova. Mas eu podia fazê-lo, sem constrangimento, e com vantagem para todos.

- Não sei - disse eu depois de alguns instantes de reflexão -; não sei... Sua mãe?

- Mamãe está perfeitamente bem com ela; parece até que a trata com muito mais ternura. Não lhe dizia eu? Mamãe é muito amiga dela.

- Não lhe terá dito nada?

- Creio que não.

E depois de algum silêncio:

- Nem lho diria ela mesma. Há confissões difíceis de fazer a outros, e impossíveis a ela; digo fazê-las diretamente à pessoa interessada. Vamos lá; tire-nos desta situação duvidosa.

- Bem; verei. Não afirmo nada; verei.

Estávamos na sala dos livros; Lalau apareceu à porta. Parou alguns instantes, depois veio afoutamente a mim, expansiva e ruidosa, mas de propósito, por pirraça; tanto que não me falava com a atenção em mim, mas dispersa, e olhando de modo que pudesse apanhar os gestos do rapaz. Este não dizia nada, olhava para os livros. Lalau perguntou-me o que era feito de mim, por onde tinha andado, se era ingrato para ela, se a esquecia, afirmando que também estava disposta a esquecer-me, e já tinha um padre em vista, um cônego, tabaquento, muito feio, cabeça grande. Tudo isso era dito por modo que me doía, e devia doer a ele também; certo é que ele não se demorou muito na sala; foi até a janela, por alguns instantes; depois disse-me que ia ver os cavalos e saiu.

Lalau não pôde mais conter-se; logo que ele saiu, deixou-se cair numa cadeira, ao canto da sala, e rompeu em lágrimas. A explosão atordoou-me, corri para ela, peguei-lhe nas mãos, ela pegou nas minhas, disse que era desgraçada, que ninguém mais lhe queria, que tinha padecido muito naquele dia, muito, muito... Nunca falamos do sentimento que a acabrunhava agora; mas não foi preciso começar por nenhuma confissão.

- Não compreendo nada - dizia ela -; sei só que sofro, que choro, e que me vou embora. Por quê? Sabe que há?

Não lhe dei resposta.

- Ninguém sabe nada, naturalmente - continuou ela.

Quem sabe tudo já lá vai caminhando para a roça. Devia ser assim mesmo; eu não valho nada, não sou nada, não tenho avó baronesa, sou uma agregadazinha... Mas então por que enganar-me tanto tempo? Para caçoar comigo?

E chorava outra vez, por mais que eu defronte dela, em pé, lhe dissesse que não fizesse barulho, que podiam ouvir; ela, porém, durante alguns minutos não atendia a nada. Quando cansou de chorar, e enxugou os olhos, estava realmente digna de lástima. A expressão agora era só de dor e de abatimento; desaparecera a indignação da moça obscura que se vê preterida por outra de melhor posição. Sentei-me ao lado dela, disse-lhe que era preciso ter paciência, que os desgostos eram a parte principal da vida; os prazeres eram a exceção; disse-lhe tudo o que a religião lhe poderia lembrar para obter que se resignasse. Lalau ouvia com os olhos parados, ou olhando vagamente; às vezes interrompia com um sorriso. Urgia contar-lhe tudo; mas aqui confesso que não achava palavras. Era grave a notícia; o efeito devia ser violento, porque, conquanto ela cuidasse estar abandonada por outra, a esperança lá se aninharia nalgum recanto do coração, e nada está perdido enquanto o coração espera alguma cousa. Mas a notícia da filiação era decisiva.

Não sabendo como dizê-lo, prossegui na minha exortação vaga. Ela, que a princípio ouvia sem interesse, olhou de repente para mim, e perguntou-me se realmente estava tudo perdido. Vendo que lhe não dizia nada:

- Diga, por esmola, diga tudo.

- Vamos lá, sossegue...

- Não sossego, diga.

- Enquanto não sossegar não digo nada. Escute, Deus escreve direito por linhas tortas. Quem sabe o que estaria no futuro?

- Não entendo; diga.

Em verdade, não se podia ser menos hábil, ou mais atado que eu. Não ousava dizer a cousa, e não fazia mais que aguçar o desejo de a ouvir. Lalau instou ainda comigo, pegou-me nas mãos, beijou-mas, e esse gesto fez-me mal, muito mal. Ergui-me, dei dous passos, e voltei dizendo que, não agora, por estar tão fora de si, mas depois lhe contaria tudo, tudo, que era uma cousa grave...

- Grave? Diga-me já, já.

E pegou-se a mim, que lhe dissesse tudo, jurava não contar nada a ninguém, se era preciso guardar segredo; mas não queria ignorar o que era. Não me dava tempo; se eu abria a boca para adiar, interrompia-me que não, que havia de ser logo, logo; e falava-me em nome de Deus, de Nossa Senhora, e perguntava-me se era assim que dizia ser padre.

- Promete ouvir-me quieta?

- Prometo - disse ela depressa, ansiosa, pendendo-me dos olhos.

- É bem grave o que lhe vou dizer.

- Mas diga.

Peguei-lhe na mão, e levei-a para defronte do retrato do finado conselheiro. Era teatral o gesto, mas tinha a vantagem de me poupar palavras; disse-lhe simplesmente que ali estava alguém que não queria: o pai de ambos. Lalau empalideceu, fechou os olhos e ia a cair; pude sustê-la a tempo.

Lalau tinha o sentimento das situações graves. Aquela era excepcional. Não me disse nada, depois da minha revelação, não me fez pergunta nenhuma; apertou-me a mão e saiu.

Dous dias depois foi para casa da tia, a pretexto de não sei que negócio de família, mas realmente era uma separação. Fui ali vê-la; achei-a abatida. A tia falou-me em particular; perguntou-me se houvera alguma cousa em casa de D. Antônia; a sobrinha, interrogada por ela, respondera que não; quis ir à Casa Velha, mas foi a própria sobrinha que a dissuadiu, ou antes, que lhe impôs que não fosse.

- Não houve nada - foi a sua última palavra -. O que há é que é tempo de viver em nossa casa, e não na casa dos outros. Estou moça, preciso de cuidar da minha vida.

Dona Mafalda não achava própria esta razão. A sobrinha era tão amiga da Casa Velha, e a família de D. Antônia queria-lhe tanto, que não se podia explicar daquele modo uma retirada tão repentina. Nunca lhe ouvira o menor projeto a tal respeito. Acresce que, desde que viera, andava triste, muito triste...

Todas essas reflexões eram justas; entretanto, para que ela não chegasse a ir à Casa Velha, disse-lhe que a razão dada por Lalau, se não era sincera, era em todo caso boa. Pensava muito bem querendo vir para casa; eram pobres; ela devia acostumar-se à vida pobre, e não à outra, que era abundante e larga, e podia criar-lhe hábitos perigosos.

Nada lhe disse a ela mesma, nem era possível; falamos juntos os três na sala de visitas, que era também a de trabalho. Lalau procurou disfarçar a tristeza, mas a indiferença aparente não chegou a persuadir-me; concluí que o amor lhe ficara no coração, a despeito do vínculo de sangue, e tive horror à natureza. Não foi só à natureza. Continuei a aborrecer a memória do homem, causa de tal situação e de tais dores.

Na Casa Velha fui igualmente discreto. Dona Antônia não me perguntou o que se passara com elas, nem com o filho, e pela minha parte não lhe disse nada. O que ela me confiou, dias depois, é que a viagem de Félix à Europa era já desnecessária; cuidava agora de casá-lo; falou-me claramente nos seus projetos relativos a Sinhazinha. Parecera-lhe a escolha excelente; eu inclinei-me, aprovando.

Passaram-se muitos dias. O meu trabalho estava no fim. Tinha visto e revisto muitos papéis, e tomara muitas notas. O coronel voltou à Corte no meado de setembro; vinha tratar de umas escrituras. Notou a diferença da casa, onde faltava a alegria da moça, e sobrava a tristeza ou alguma cousa análoga do sobrinho. Não lhe disse nada; parece que D. Antônia também não.

Félix passava uma parte do dia comigo, sempre que eu ali ia; falava-me de alguns planos relativamente a indústrias, ou mesmo a lavoura, não me lembra bem; provavelmente, era tudo misturado, nada havia nele ainda definido; lembremo-nos que já andara com ideias de ser deputado. O que ele queria agora era fazer alguma cousa que o aturdisse, que lhe tirasse a dor do recente desastre. Neste sentido, aprovava-lhe tudo.

Pareceu-me que o tempo ia fazendo algum efeito em ambos. Lalau não ria ainda, nem tinha a mesma conversação de outrora; começava a apaziguar-se. Ia ali muita vez, às tardes; ela agradecia-me evidentemente a fineza. Não só tinha afeição, como achava na minha pessoa um pedaço das outras afeições, da outra casa e do outro tempo. Demais, era-me grata, posto que o destino me tivesse feito portador de más novas, e destruidor de suas mais íntimas esperanças.

A ideia de casá-la entrou desde logo no meu espírito; e nesse sentido falei à tia, que aprovou tudo, sem adiantar mais nada. Não conhecia o Vitorino, filho do segeiro, e perguntei-lhe que tal seria para marido.

- Muito bom - disse-me ela -. Rapaz sério, e tem alguma cousa por morte do pai.

- Tem alguma educação?

- Tem. O pai até queria fazê-lo doutor, mas o rapaz é que não quis; disse que se contentava com outra cousa; parece que está escrevente de cartório... escrevente não sei como se diz... mentado... paramentado...

- Juramentado.

- Isso mesmo.

- Bem, se puder falar com ela... sem dizer tudo... assim a modo de indagação...

- Verei; deixe estar.

Dias depois, D. Mafalda deu-me conta da incumbência: a sobrinha nem queria ouvir falar em casar. Achava o Vitorino muito bom noivo, mas o seu desejo era ficar solteira, trabalhar em costura, para ajudar a tia e não depender de ninguém; mas casar nunca.

Esta conversa trouxe-me a ideia de ponderar a D. Antônia que, uma vez que Lalau era filha de seu marido, ficava-lhe bem fazer uma pequena doação que a resguardava da miséria. Dona Antônia aceitou a lembrança sem hesitar. Estava tão contente com o resultado obtido, que podia fazê-lo. Confessou-me, porém, que o melhor de tudo seria, feita a doação, passados os tempos, e casado o filho, voltar a menina para a Casa Velha. Tinha grandes saudades dela; não podia viver muito tempo sem a sua companhia. Repeti a última parte a Lalau, que a escutou comovida. Creio até que ia a brotar-lhe uma lágrima; mas reprimiu-a depressa, e falou de outra cousa.

Era uma terça feira. Na quarta, devia eu ultimar os meus trabalhos na Casa Velha, e restituir os papéis, quando fiz um achado que transtornou tudo.

X

Estava recolhendo tudo, quando dei por falta de uma nota tomada naquele dia; não era fácil reproduzir a nota, pois não a havia tirado de uma só página nem de um só livro, mas de muitos livros diferentes. O caso aborreceu-me; procurei o papel atabalhoadamente; depois recomecei com cuidado. Abria os livros com que trabalhara nesse dia, um por um, mas não achava nada. Vim achar a nota, depois, ao pé da grade da janela, prestes a cair.

Entre os livros que folheei, procurando, achava-se um relatório manuscrito, que eu lera apenas em parte, não o tendo feito na que continha tão somente a transcrição de documentos públicos. Pegando no livro pela lombada, e agitando-o para fazer cair a nota, se ali estivesse, vi que efetivamente caía um papelinho.

Vinha dobrado, e vi logo que era por letra do ex-ministro. Podia ser alguma cousa interessante, para os meus fins. Era um trecho de bilhete a alguma mulher, cujo nome não estava ali, e referia-se a uma criança, com palavras de tristeza. Podiam ser outros amores; podiam ser os próprios amores da mãe de Lalau. Hesitei em guardar o papel, e cheguei a pô-lo dentro das folhas do relatório; mas tornei a tirá-lo, e guardei-o comigo.

Reli-o em casa; dizia esse trecho do bilhete, que provavelmente nunca foi acabado nem remetido:

Tenha confiança em mim, e ouça o que lhe digo. Não faça barulho, sossegue e não fale sempre no meu nome. Venha cá o menos que puder; e não pense mais no anjinho. Deus é bom.

Não achava nada que me explicasse cousa nenhuma; mas insisti em guardá-lo. De noite pensei que o bilhete podia relacionar-se com a família da Lalau; e, como nunca tivesse dito à tia desta o motivo que a separara da Casa Velha, resolvi pedir-lhe uma conferência, e contá-lo.

Pedi-lhe a conferência no dia seguinte, e obtive-a no outro, muito cedo, enquanto Lalau dormia. Não hesitei em ir logo ao fim. Contei-lhe tudo, menos o amor da sobrinha e do filho de D. Antônia, que ela, aliás, fingia ignorar. D. Mafalda ouviu-me pasmada, curiosa, querendo por fim que lhe dissesse se D. Antônia ficara irritada com a descoberta.

- Não, perdoou tudo.

- Então por que houve logo esta separação?

Hesitei na resposta.

- Entendo - disse ela -, entendo.

Vi que sabia tudo; mas não se consternou por isso. Ao contrário, disse-me alegremente que, se não era mais que essa a causa da separação, tudo estava remediado.

- Conto-lhe tudo - disse-me ela no fim de alguns instantes -. Não diria nada em outras circunstâncias, nem sei mesmo se diria alguma cousa a outra pessoa.

Dona Mafalda confirmou os amores da cunhada; mas o ex-ministro viu-a pela primeira vez, quando eles vieram da roça, tinha Lalau três meses. Não era absolutamente o pai da menina. Compreende-se o meu alvoroço; pedi-lhe todas as circunstâncias de que se lembrasse, e ela referiu-as todas, e todas eram a confirmação da notícia que acabava de dar; datas, pessoas, acidentes, nada discordava da mesma versão. Ela própria apelou para os apontamentos da freguesia onde nascera a menina, e para as pessoas do lugar, que me diriam isto mesmo. Pela minha parte, não queria outra cousa, senão o desaparecimento do obstáculo e a felicidade das duas criaturas. De repente, lembrou-me do trecho do bilhete que tinha comigo, e disse-lhe que, em todo caso, mal se podia explicar a crença em que estava D. Antônia; havia por força uma criança.

- Houve uma criança - interrompeu-me D. Mafalda -; mas essa morreu com poucos meses.

Tinha o bilhete na algibeira, tirei-o e reli-o; estas palavras confirmavam a versão da morte: "não pense mais no anjinho..."

Dona Mafalda contou-me então a circunstância do nascimento da criança, que viveu apenas quatro meses; depois, referiu-me a longa história da paixão da cunhada, que ela descobriu um dia, e que a própria cunhada lhe confiou mais tarde, em ocasião de desespero.

Tudo parecia-lhe claro e definitivo; restava agora repor as cousas no estado anterior. Mas, ao pensar nisso, adverti que, transmitida esta versão a D. Antônia, ouviria as razões que ela teria para a sua, e combiná-las-ia todas. Fui à Casa Velha, e pedi a D. Antônia que me desse também uma conferência particular. Desconfiada, respondeu que sim, e foi na sala dos livros, enquanto Félix estava fora, que lhe contei o que acabava de saber.

Dona Antônia escutou-me a princípio curiosa, depois ansiosa, e afinal atordoada e prostrada. Não compreendi esse efeito; acabei, disse-lhe que a Providência se encarregara de levar o fruto do pecado, e nada impedia que o casamento do filho com a moça o fizesse esquecer a todos. Mas D. Antônia, agitada, não podia responder seguidamente. Não entendendo esse estado, pedi que mo explicasse.

Dona Antônia negou-me tudo a princípio, mas acabou confessando o que ninguém poderia então supor. Ela ignorava os amores do marido; inventara a filiação de Lalau, com o único fim de obstar ao casamento. Confessou tudo, francamente, alvoroçada, sem saber de si. Creio que, se repousasse por algumas horas, não me diria nada; mas apanhada de supetão, não duvidou expor os seus atos e motivos. A razão é que o golpe recebido fora profundo. Vivera na fé do amor conjugal; adorava a memória do marido, como se pode fazer a uma santa de devoção íntima. Tinha dele as maiores provas de constante fidelidade. Viúva, mãe de um homem, vivia da felicidade extinta e sobrevivente, respeitando morto o mesmo homem que amara vivo. E vai agora uma circunstância fortuita mostra-lhe que, inventando, acertara por outro modo, e que o que ela considerava puro na terra trouxera em si uma impureza.

Logo que a primeira comoção passou, D. Antônia disse-me com muita dignidade que o passado estava passado, que se arrependia da invenção, mas enfim estava meia punida. Era preciso que o castigo fosse inteiro; e a outra parte dele não era mais que unir os dous em casamento. Opôs-se por soberba; agora, por humildade, consentia em tudo.

Dona Antônia, dizendo isto, forcejava por não chorar, mas a voz trêmula indicava que as lágrimas não tardavam a vir; lágrimas de vencida, duas vezes vencida - no orgulho e no amor. Consolei-a, e pedi-lhe perdão.

- De quê? - perguntou ela.

- Do que fiz. Creia que sinto o papel desastrado que o destino me confiou em tudo isto. Agora mesmo, quando vinha alegre, supondo concertar todas as cousas, concerto-as com lágrimas.

- Não há lágrimas - disse D. Antônia esfregando os olhos.

Daí a nada estava tranquila, e pedia-me que acabasse tudo. Não podia mais tolerar a situação que ela mesma criara; tinha pressa de afogar na afeição sobrevivente algumas tristezas novas. Instou comigo para que fosse ter com a moça naquele mesmo dia, ou no outro, e que a trouxesse para a Casa Velha, mas depois de saber tudo; pedia também que me incumbisse de retificar a revelação feita ao filho. Ela, pela sua parte, não podia entrar em tais minúcias; eram-lhe penosas e indecentes. Esta palavra fez-me, creio eu, empalidecer; ela apressou-se em explicá-la; não me encarregava de cousa indigna, mas pouco ajustada entre um filho e sua mãe. Era só por isso.

Aceitei a explicação e a incumbência. Não me demorei muito em pôr o filho na confidência da verdade, contando-lhe os últimos incidentes, e a face nova da situação. Félix ouviu-me alvoroçado; não queria crer, inquiria uma e muitas vezes se a verdade era realmente esta ou outra, se a tia da moça não se enganara, se a nota achada... Mas eu interrompi-o confirmando tudo.

- E mamãe?

- Sua mãe?

- Naturalmente, já sabe...

Hesitei em dizer-lhe tudo o que se passara entre mim e ela; era revelar-lhe a invenção da mãe, sem necessidade. Respondi-lhe que sabia tudo, porque mo dissera, que estava enganada, e estimara o desengano.

Tudo parecia caminhar para a luz, para o esquecimento, e para o amor. Após tantos desastres que este negócio me trouxera, ia enfim compor a situação, e tinha pressa de o fazer e de os deixar felizes. Restava Lalau; fui lá ter no dia seguinte.

Lalau notou a minha alegria; eu, sem saber por onde começasse, disse-lhe que efetivamente tinha uma boa notícia. Que notícia? Contei-lha com as palavras idôneas e castas que a situação exigia. Acabei, referi o que se passara com D. Antônia, o pedido desta, a esperança de todos. Ela ouviu ansiosa - a princípio, aflita - e no fim, quando soube a verdade retificada, deixou cair os olhos e não me respondeu.

- Vamos, senhora - disse-lhe -; o passado está passado.

Lalau não se moveu. Como eu instasse, abanou a cabeça; instando mais, respondeu que não, que nada estava alterado, a situação era a mesma. Espantado da resposta, pedi-lhe que ma explicasse; ela pegou da minha mão, e disse-me que não a obrigasse a falar de cousas que lhe doíam.

- Que lhe doem?

- Falemos de outra cousa.

Confesso que fiquei exasperado; levantei-me, mostrei-me aborrecido e ofendido. Ela veio a mim, vivamente, pediu-me desculpa de tudo. Não tinha intenção de ofensa, não podia tê-la; só podia agradecer tudo o que fizera por ela. Sabia que a estimava muito.

- Mas não compreendo...

- Compreende, se quiser.

- Venha explicar-se com a sua velha amiga; ela lhe dirá que estimou muito não ser verdadeira a sua primeira suposição.

- Para ela, creio.

- E para todos.

- Para mim, não. Seja como for, não poderia casar-me com o filho do mesmo homem que envergonhou minha família... Perdão; não falemos nisto.

Olhei assombrado para ela.

- Essa palavra é de orgulho - disse-lhe no fim de alguns instantes.

- Orgulho, não; eu não sei que cousa é orgulho. Sei que nunca estimei tanto a ninguém como a minha mãe. Não lhe disse isso mesmo uma vez? Gostava muito de mamãe; era para mim na terra como Nossa Senhora no céu. E esta santa tão boa como a outra, esta santa é que... Não; perdoe-me. Orgulho? Não é orgulho; é vergonha; creia que estou muito envergonhada. Sei que era estimada na Casa Velha; e seria ali feliz, se pudesse sê-lo; mas não posso, não posso...

- Reflita um pouco.

- Está refletido.

- Reflita ainda uma noite ou duas; virei amanhã ou depois. Repare que a sua obstinação pode exprimir, relativamente à memória de sua mãe, uma censura ou uma afronta...

Lalau interrompeu-me; não censurava a mãe; amava-a tanto ou mais que dantes. E concluiu dizendo que, por favor, não falássemos mais de tal assunto. Respondi-lhe que ainda lhe falaria uma vez única; pedi-lhe que refletisse. Contei tudo a D. Mafalda, e disse-lhe que, na minha ausência, trabalhasse no mesmo sentido que eu.

- Tudo deve voltar ao que era; eles gostam muito um do outro; D. Antônia estima-a como filha; o passado é passado. Cuidemos agora do presente e do futuro.

Lalau não cedeu nada à tia, nem a mim. Não cedeu nada ao filho de D. Antônia, que a foi visitar, e a quem não pôde ver sem comoção, e grande; mas resistiu. Afinal, oito dias depois, D. Antônia mandou aprontar a sege, e foi buscá-la.

- Uma vez aqui, verá que arranjamos tudo - disse-lhe ela.

Entrava já no espírito de D. Antônia um pouco de amor-próprio ofendido com a recusa. Lalau parece que a princípio não a quis acompanhar; nunca soube bem deste ponto, mas é natural que fosse assim. Consentiu, finalmente, e foi por um só dia; jantou lá e voltou às ave-marias.|

Voltei à casa delas, e instei novamente, ou só com ela, ou com a tia; ela mantinha-se no mesmo pé, e, para o fim, com alguma impaciência. Um dia recebi recado de D. Mafalda; corri a ver o que era, disse-me que o filho do segeiro, Vitorino, fora pedi-la em casamento, e que a moça, consultada, respondeu que sim. Soube depois que ela mesma o incitara a fazê-lo. Compreendi que tudo estava acabado. Félix padeceu muito com esta notícia; mas nada há eterno neste mundo, e ele próprio acabou casando com Sinhazinha. Se ele e Lalau foram felizes, não sei; mas foram honestos, e basta.

A+
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