Conto

Casa, Não Casa...

1875
Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em dezembro de 1875 e janeiro de 1876, assinado por Machado de Assis. O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.

IV

Três dias depois da conversa de Júlio com Luísa, foi esta passar o dia em casa de Isabel, acompanhada de sua mãe.

A mãe de Luísa era de opinião que a filha era o seu retrato vivo, cousa que ninguém acreditava por mais que ela o repetisse. A mãe de Isabel não ousava ir tão longe, mas afirmava que, no tempo de sua mocidade, fora ela muito parecida com Isabel. Esta opinião era recebida com incredulidade pelos rapazes e com resistência pelos velhos. Até o major Soares, que fora o primeiro namorado da mãe de Isabel, insinuava que essa opinião devia ser recebida com extrema reserva.

Oxalá porém fossem as duas moças como suas mães eram, dois corações de pomba, que amavam estremecidamente as filhas, e que eram com justiça dois tipos de austeridade conjugal.

As duas velhas entregaram-se às suas conversas e considerações sobre arranjos de casa ou assuntos de pessoas conhecidas, enquanto as duas moças tratavam de modas, músicas, e um pouco de amores.

- Então o teu tenente não volta do Sul? - disse Luísa.

- Eu sei! Parece que não.

- Tens saudades dele?

- E terá ele saudades de mim?

- Isso é verdade. Todos esses homens são assim - disse Luísa com convicção -; muita festa quando se acham presentes, mas ausentes são temíveis... valem tanto como o nome que se escreve na areia: vem a água e lambe tudo.

- Bravo, Luísa! Estás poeta! - exclamou Isabel -. Já falas em areias do mar!

- Pois olha, não namoro nenhum poeta nem homem do mar.

- Quem sabe?

- Sei eu.

- É então?...

- Um rapaz que tu conheces!

- Já sei; é o Avelar.

- Deus nos acuda! - exclamou Luísa -. Um homem vesgo.

- O Rocha?

- O Rocha anda todo caído pela Josefina.

- Sim?

- É uma lástima.

- Nasceram um para o outro.

- Sim, ela é uma moleirona como ele.

As duas moças gastaram assim algum tempo a tasquinhar na pele de pessoas que nós não conhecemos nem precisamos disso, até que voltaram ao assunto capital da conversa.

- Já vejo que não pode adivinhar quem é o meu namorado - disse Luísa.

- Nem você o meu - observou Isabel.

- Bravo! Então o tenente...

- O tenente está pagando. É muito natural que as rio-grandenses o tenham encantado. Pois aguente-se...

Enquanto Isabel dizia estas palavras, Luísa ia folheando o álbum de retratos que estava sobre a mesa. Chegando à folha onde sempre vira o seu retrato, a moça estremeceu. Isabel notou-lhe o movimento.

- Que é? - disse ela.

- Nada - respondeu Luísa fechando o álbum -. Tiraste o meu retrato daqui?

- Ah! - exclamou Isabel -. Isso é uma história singular. O retrato foi passar às mãos de terceira pessoa, a qual afirma que fui eu que lho levei alta noite... Ainda não pude descobrir esse mistério...

Luísa já ouviu de pé estas palavras. Seus olhos, muito abertos, fitaram-se no rosto da amiga.

- Que é? - disse esta.

- Sabes bem o que estás dizendo?

- Eu?

- Mas isso foi o que me aconteceu também com o teu retrato... Naturalmente era zombaria comigo e contigo... Essa pessoa...

- Foi o Júlio Simões, o meu namorado...

Aqui devia eu pôr uma linha de pontos para significar o que se não pode pintar, o espanto das duas amigas, as diferentes expressões que tomou a fisionomia de cada uma delas. Não tardaram as explicações; as duas rivais reconheceram que o seu namorado comum era pouco mais ou menos um patife, e que o dever de honra e de coração era tomar dele uma vingança.

- A prova de que ele nos enganava uma à outra - observava Isabel - é que os nossos retratos apareceram lá e foi ele naturalmente quem os tirou.

- Sim - respondeu Luísa -, mas é certo que eu sonhei alguma cousa que combina com a cena que ele alega.

- Também eu...

- Sim? Eu sonhei que me haviam falado do namoro dele com você, e que, tirando o retrato do álbum, fora levá-lo à casa dele.

- Não é possível! - exclamou Isabel -. O meu sonho foi quase assim, ao menos no final. Não me disseram que ele tinha namoro com você; mas eu mesma vi e então fui levar o retrato...

O espanto aqui foi ainda maior que da primeira vez. Nem estavam só espantadas as duas amigas; estavam aterradas. Embalde procuravam explicar a identidade do sonho, e mais que tudo a coincidência dele com a presença dos retratos em casa de Júlio e a narração que este fizera da noturna aventura.

Estavam assim nesta duvidosa e assustadora situação, quando as mães vieram em auxílio delas. As duas moças, estando à janela, ouviram-lhes dizer:

- Pois é verdade, minha rica Sra. Anastácia, estou no mesmo caso da senhora. Creio que a minha filha é sonâmbula, como a sua.

- Tenho uma pena com isto!

- E eu então!

- Talvez casando-as...

- Sim, pode ser que banhos de igreja...

Informadas assim as duas moças da explicação do caso, ficaram um tanto abaladas; mas a ideia de Júlio e suas travessuras tomou logo o lugar que lhe competia na conversa das duas rivais.

- Que pelintra! - exclamavam as duas moças -. Que velhaco! Que pérfido!

O coro de maldições foi ainda mais longe. Mas tudo acaba neste mundo, principalmente um coro de maldições; o jantar interrompeu aquele; as duas moças foram de braço dado para a mesa e afogaram as suas mágoas num prato de sopa.

V

Júlio, sabendo da visita, não se atreveu a ir encontrar as duas moças juntas. No pé em que as cousas se achavam era impossível evitar que descobrissem tudo, pensava ele.

No dia seguinte porém foi de tarde à casa de Isabel, que o recebeu com muita alegria e ternura.

"Bom!", pensou o namorado, "nada contaram uma à outra."

- Engana-se - disse Isabel adivinhando pela alegria do rosto dele qual era a reflexão que fazia -. Pensa naturalmente que Luísa nada me disse? Disse-me tudo, e eu nada lhe ocultei...

- Mas...

- Não me queixo do senhor - continuou Isabel com indignação -; queixo-me dela, que devia ter percebido e percebeu o que entre nós havia, e apesar disso aceitou a sua corte.

- Aceitou; não; posso dizer que fui compelido.

- Sim?

- Agora posso falar-lhe com franqueza; a sua amiga Luísa é uma namoradeira desenfreada. Eu sou rapaz; a vaidade, a ideia de passatempo, tudo isso me arrastou, não a namorá-la, porque eu era incapaz de esquecer a minha formosa Isabel; mas a perder algum tempo...

- Ingrato!

- Oh! Não! Nunca, minha boa Isabel!

Aqui começou uma renovação de protestos da parte do namorado, que declarou amar mais que nunca a filha de D. Anastácia.

Para ele a cousa estava resolvida. Depois da explicação dada e dos termos em que falara da outra, a escolha natural era Isabel.

Sua ideia foi não procurar mais a outra. Não o pôde fazer à vista de um bilhete que no fim de três dias recebeu da moça. Pedia-lhe ela que fosse lá instantemente. Júlio foi. Luísa recebeu-o com um sorriso triste. Quando puderam falar a sós:

- Quero saber da sua boca o meu destino - disse ela -. Estarei definitivamente condenada?

- Condenada!

- Sejamos francos - continuou a moça -. Eu e a Isabel falamos no senhor; vim a saber que também a namorava. A sua consciência lhe dirá que praticou um ato indigno. Mas enfim, pode resgatá-lo com um ato de franqueza. A qual de nós escolhe, a mim ou a ela?

A pergunta era de atrapalhar o pobre Júlio, nada menos que por duas grandes razões: a primeira era ter de responder em face; a segunda era ter de responder em face de uma moça bonita. Hesitou alguns largos minutos. Luísa insistiu; mas ele não se atrevia a romper o silêncio.

- Bem - disse ela -, já sei que me despreza.

- Eu!

- Não importa; adeus.

Ia a voltar as costas; Júlio segurou-lhe na mão.

- Oh! Não! Pois não vê que este meu silêncio é de comoção e de confusão? Confunde-me realmente que descobrisse uma cousa em que eu pouca culpa tive. Namorei-a por passatempo; não foi Isabel nunca uma rival sua no meu coração. Demais, ela não lhe contou tudo; naturalmente escondeu a parte em que a culpa lhe cabia. E a culpa é também sua...

- Minha?

- Sem dúvida. Pois não vê que ela tem interesse em separar-nos?... Se lhe referir, por exemplo, o que se está passando agora entre nós, fique certa de que ela há de inventar alguma cousa para de todo separar-nos, contando depois com a sua beleza para cativar o meu coração, como se a beleza de uma Isabel pudesse fazer esquecer a beleza de uma Luísa.

Júlio ficou satisfeito com este pequeno discurso, assaz astuto para enganar a moça. Esta, depois de algum tempo de silêncio, estendeu-lhe a mão:

- Jura-me o que está dizendo?

- Juro.

- Então será meu?

- Unicamente seu.

Assim celebrou Júlio os dois tratados de paz, ficando na mesma situação em que se achava anteriormente. Já sabemos que a sua fatal indecisão era a causa única da crise em que os acontecimentos o puseram. Era forçoso decidir alguma cousa; e a ocasião ofereceu-se-lhe propícia.

Perdeu-a, entretanto; e dado que quisesse casar, e queria, nunca estivera mais longe do casamento.

VI

Cerca de seis semanas foram assim correndo sem resultado algum prático.

Um dia, achando-se em conversa com um primo de Isabel, perguntou-lhe se teria gosto em vê-lo na família.

- Muito - respondeu Fernando (era assim o nome do primo).

Júlio não deu explicação da pergunta. Instado, respondeu:

- Fiz-lhe a pergunta por uma razão que saberá mais tarde.

- Quererá talvez casar com alguma das manas?...

- Não posso dizer nada por ora.

- Olha aqui, Teixeira - disse Fernando, a um terceiro rapaz, primo de Luísa, e que nessa ocasião se achava em casa de D. Anastácia.

- Que é? - perguntou Júlio assustado.

- Nada - respondeu Fernando -, vou comunicar ao Teixeira a notícia que o senhor me deu.

- Mas eu...

- É nosso amigo, posso ser franco. Teixeira, sabe o que me disse o Júlio?

- Que foi?

- Disse-me que vai ser meu parente.

- Casando com alguma irmã tua.

- Não sei; mas disse isso. Não te parece motivo de congratulação?

- Sem dúvida - concordou Teixeira -, é um perfeito cavalheiro.

- São obséquios - interveio Júlio -; e se eu alguma vez alcançasse a fortuna de entrar...

Júlio interrompeu-se; lembrou-se que Teixeira podia ir contar tudo à prima Luísa, e fosse inibido de escolher entre ela e Isabel. Os dois quiseram saber o resto; mas Júlio preferiu convidá-los a jogar o solo, e não houve meio de arrancar-lhe palavra.

A situação porém devia acabar.

Era impossível continuar a vacilar entre as duas moças, que ambas lhe queriam muito, e a quem ele queria com perfeita igualdade, não sabendo qual delas escolhesse.

"Sejamos homem", disse Júlio consigo. "Vejamos: qual delas devo ir pedir? A Isabel. Mas a Luísa é tão bonita! Será a Luísa. Mas é tão formosa a Isabel! Que diabo! Por que razão não há de uma delas ter um olho furado? Ou uma perna torta!"

E depois de algum tempo:

"Vamos, sr. Júlio, dou-lhe três dias para escolher. Não seja tolo. Decida com isto por uma vez."

E enfim:

"Verdade é que uma delas há de odiar-me. Mas paciência! Fui eu mesmo que me meti nesta embrulhada; e o ódio de uma moça não pode doer muito. Avante!"

No fim de dois dias ainda ele não tinha escolhido; recebeu porém uma carta de Fernando concebida nestes termos:

Meu caro Júlio.

Participo-lhe que brevemente casarei com a prima Isabel; desde já o convido para a festa; se soubesse como estou contente! Venha cá para conversarmos.

Fernando

Não é preciso dizer que Júlio foi às nuvens. O passo de Isabel simplificava muito a situação dele; todavia, não queria ser assim despedido como um tolo. Exprimiu a sua cólera por meio de alguns murros na mesa; Isabel, por isso mesmo que já não a podia possuir, parecia-lhe agora mais bonita que Luísa.

- Luísa! Pois será Luísa! - exclamou ele -. Essa sempre me pareceu muito mais sincera que a outra. Até chorou, creio eu, no dia da reconciliação.

Saiu nessa mesma tarde para ir visitar Luísa; no dia seguinte iria pedi-la. Em casa dela foi recebido como sempre. Teixeira foi o primeiro a dar-lhe um abraço.

- Sabe - disse o primo de Luísa apontando para a moça - sabe que vai ser a minha noiva?

Não me atrevo a dizer o que se passou na alma de Júlio; basta dizer que jurou não casar, e que morreu há pouco casado e com cinco filhos.

A+
A-