Conto

Brincar Com Fogo

1875

IV

O namoro prosseguiu assim durante alguns meses.

As duas amigas comunicavam regularmente as cartas e redigiam prontas as respostas. Às vezes divertiam-se em dificultar-lhe a situação. Por exemplo, uma dizia que iria ver tal procissão da rua tal número tantos, e que o esperava à janela às tantas horas, ao passo que a outra marcava a mesma hora para o esperar à janela de sua casa. João dos Passos arranjava como podia o caso, sem escapar nunca aos arrufos de uma delas, cousa que o lisonjeava sobremaneira.

As expressões amorosas das cartas de Mariquinhas e Lúcia eram contrastadas pelas boas caçoadas que faziam do namorado.

- Como vai o bobo?

- Cada vez melhor.

- Ontem, voltou-se tanto para trás, que esteve quase a esbarrar com um velho.

- Pois lá na rua do Príncipe escapou de cair.

- Que pena!

- Não cair?

- Decerto.

- Tens razão. Tinha vontade de vê-lo de pernas para o ar.

- E eu!

- E o andar dele, já reparaste?

- Ora!

- Parece um boneco de engonço.

- Imposturando com a luneta.

- É verdade; aquilo há de ser impostura.

- Pode ser que não... porque ele tem realmente a vista curta.

- Isso tem; curtíssima.

Tal era a opinião real que as duas moças faziam dele, mui diferente da que exprimiam nas cartas que João dos Passos recebia com o maior prazer deste mundo.

Quando estavam juntas e o viam vir ao longe, a linguagem delas era sempre do mesmo gênero. Mariquinhas, cujo espírito era tão buliçoso como o corpo, rompia sempre o diálogo.

- Olha! Olha!

- É ele?

- O cujo... Como vem engraçado!

- É verdade. Olha o braço esquerdo!

- E o jeitinho do ombro?

- Jesus! Que rosa tamanha no peito!

- Já vem rindo.

- É para mim.

- É para mim.

E João dos Passos aproximava-se nadando num mar de delícias, e satisfeito de si mesmo, visto estar convencido de que realmente embaçava as duas moças.

Durou esta situação, como disse, alguns meses, creio que três. Era tempo suficiente para aborrecer a comédia; ela porém continuava, com uma modificação apenas.

Qual seria?

A pior de todas.

As cartas de João dos Passos começaram a não ser comunicadas entre as duas amigas. Lúcia foi a primeira que disse não receber cartas de João dos Passos, e não tardou que a outra dissesse a mesma cousa. Ao mesmo tempo já a pessoa do namorado lhes não causava riso, e, sendo ele a princípio o objeto quase exclusivo da conversa de ambas, dessa data em diante foi assunto interdito.

A razão, como o leitor adivinha, é que as duas amigas, estando a brincar com fogo, vieram a queimar-se. Nenhuma delas, entretanto, lendo no seu próprio coração, chegou a perceber que igual cousa se passava no coração da outra. Estavam convencidas de que se enganavam muito habilmente.

E ainda mais.

Lúcia refletia assim:

- Ele, que já lhe não escreve e continua a escrever-me, é porque me ama.

Mariquinhas discorria deste modo:

- Não tem que ver. Ele acabou com o gracejo de escrever a Lúcia, e a razão naturalmente é que só eu domino no seu coração.

Um dia, a Mariquinhas arriscou esta pergunta:

- Então João dos Passos nunca mais te escreveu?

- Nunca mais.

- Nem a mim.

- Naturalmente perdeu a esperança.

- Há de ser isso.

- Tenho pena!

- E eu também.

E no seu interior a Lúcia ria da Mariquinhas, e a Mariquinhas ria da Lúcia.

V

João dos Passos, entretanto, fazia consigo a reflexão seguinte:

- Onde irá isto parar? Ambas gostam de mim, e eu por ora gosto de ambas. Como só me devo casar com uma delas, tenho de escolher a melhor, e aqui começa a dificuldade.

O petimetre comparou em seguida as qualidades das duas namoradas.

O tipo de Lúcia era para ele excelente; gostava das mulheres claras e de estatura regular. Mas o tipo de Mariquinhas dominava igualmente em seu coração, porque amara a muitas baixinhas e moreninhas.

Vacilava na escolha.

E por isso mesmo que vacilava na escolha, é que não amava verdadeiramente a nenhuma delas e, não amando verdadeiramente a nenhuma delas, era natural adiar a escolha para as calendas gregas.

As cartas continuavam a ser apaixonadíssimas, o que lisonjeava extremamente a João dos Passos.

O pai de Lúcia e a mãe de Mariquinhas, que até agora não entraram no conto, nem entrarão daqui em diante, por não serem precisos, admiravam-se da mudança que notavam nas filhas. Ambas estavam mais sérias do que nunca. "Há namoro", concluíram eles, e cada um por sua parte procurou sondar o coração que lhe dizia respeito.

As duas moças confessaram que efetivamente amavam a um mancebo dotado de eminentes qualidades e merecedor de entrar na família. Obtiveram consentimento para fazer com que o mancebo de eminentes qualidades chegasse à fala.

Imagine o leitor o grau de contentamento das duas moças. Logo nesse dia cada uma delas tratou de escrever a João dos Passos dizendo que podia ir pedi-la em casamento.

Tenha paciência o leitor e continue a imaginar a surpresa de João dos Passos quando recebeu as duas cartas contendo a mesma cousa. Um homem que, ao partir um ovo cozido, visse sair de dentro um elefante não ficaria mais assombrado do que o nosso João dos Passos.

Sua primeira ideia foi uma suspeita. Desconfiou que ambas lhe armassem uma cilada, de acordo com as famílias. Repeliu porém a suspeita, refletindo que em nenhum caso, o pai de uma e a mãe de outra consentiriam no meio empregado. Compreendeu que era amado igualmente de uma e outra, explicação que o espelho confirmou eloquentemente quando ele lhe lançou um olhar interrogativo.

Que fazia ele em tal situação?

Era a ocasião da escolha.

João dos Passos considerou o assunto por todos os lados. As duas moças eram as mais belas do bairro. Não tinham dinheiro, mas essa consideração desaparecia desde que ele pudesse meter inveja a meio mundo. A questão era saber a qual delas daria a preferência.

A Lúcia?

A Mariquinhas?

Resolveu estudar o caso mais detidamente; mas como era necessário mandar imediata resposta, escreveu duas cartas, uma para Mariquinhas, outra para Lúcia, pretextando uma demora indispensável.

As cartas foram.

A que ele escreveu a Lúcia dizia assim:

Minha querida Lúcia.

Não imaginas o contentamento que me deste com a tua carta. Vou enfim obter a maior graça do céu, a de poder chamar-te minha esposa!

Vejo que estás mais ou menos autorizada por teu pai, esse honrado ancião, de quem serei filho amante e obediente.

Obrigado!

Devia ir hoje mesmo à tua casa e pedir-te em casamento. Uma circunstância, porém, me impede de o fazer. Apenas ela desapareça, e nunca irá além de uma semana, corro à ordem que o céu me envia pela mão de um dos seus anjos.

Ama-me como eu te amo.

Adeus!

Teu, etc.

A carta dirigida a Mariquinhas era deste teor:

Minha Mariquinhas do meu coração.

Faltam-me palavras para dizer o júbilo que me deu a tua carta. Eu era um desgraçado até há poucos meses. Repentinamente a felicidade começou a sorrir-me, e agora (oh, céus!) lá me acena com a maior ventura da terra, a de ser teu esposo.

Estou certo de que a tua respeitável mãe de algum modo te insinuou o passo que deste. Boa e santa senhora! Anseio por chamá-la mãe, por adorá-la de joelhos!

Não posso, como devia, ir hoje mesmo à tua casa.

Há uma razão que mo impede.

Descansa, que é razão passageira. Antes de oito dias lá estarei e, se Deus nos não tolher o passo, dentro de dois meses estaremos esposos.

Oh, Mariquinhas, que felicidade!

Adeus!

Teu, etc.

Ambas estas cartas traziam um postscriptum, marcando a hora em que nessa noite ele passaria pela casa delas. A hora de Lúcia era às sete, a de Mariquinhas, às oito.

As cartas foram entregues ao portador e levadas ao seu destino.

VI

Neste ponto da narrativa, qualquer outro que não prezasse a curiosidade da leitora, intercalaria um capítulo de considerações filosóficas, ou diria alguma cousa a respeito do namoro na Antiguidade.

Eu não quero abusar da curiosidade da leitora. Minha obrigação é dizer que desenlace teve esta complicada situação.

As cartas foram, mas foram erradas; a de Lúcia foi entregue a Mariquinhas, e a de Mariquinhas, a Lúcia.

Não tenho forças para pintar o desapontamento, a raiva, o desespero das duas moças, e muito menos os faniquitos que sobrevieram à crise, cousa indispensável em tal situação.

Se se achassem debaixo do mesmo teto é possível que o obituário fosse enriquecido com os nomes das duas belas moças. Felizmente cada uma delas estava em sua casa, pelo quê tudo se passou menos tragicamente.

Os nomes que elas chamaram ao ingrato e pérfido gamenho podiam escrever-se se houvesse papel suficiente. Os que elas disseram uma da outra orçavam pela mesma quantidade. Nisto gastaram os oito dias de prazo marcado por João dos Passos.

Notou este, logo na primeira noite, que nenhuma delas o esperou à janela conforme fora marcado. No dia seguinte sucedeu a mesma cousa.

João dos Passos indagou o que havia. Soube que as duas moças estavam incomodadas e de cama. Ainda assim não atinou com a causa, e limitou-se a mandar muitas lembranças, que os portadores aceitaram docilmente, apesar de terem ordem positivamente de não receberem nenhum recado mais. Há casos porém em que um portador de cartas desobedece; um deles é o caso de remuneração e foi esse o caso de João dos Passos.

No fim de oito dias ainda João dos Passos não tinha feito a sua escolha; mas o acaso, que governa a vida humana, quando a Providência se cansa de a dirigir, trouxe à casa do petimetre uma prima da roça, cuja riqueza consistia em dois belos olhos e cinco excelentes prédios. João dos Passos era doudo por olhos bonitos mas não desdenhava os prédios. Os prédios e os olhos da prima decidiram o nosso perplexo herói, que nunca mais voltou aos Cajueiros.

Lúcia e Mariquinhas casaram mais tarde, mas, apesar da ingratidão de João dos Passos, e do tempo que decorreu, nunca mais se deram. Os esforços dos parentes foram baldados. Nenhuma delas seria capaz de casar em nenhuma hipótese com João dos Passos; e isto poderia levá-las a se estimarem como dantes. Não foi assim; tudo perdoaram, exceto a humilhação.

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