"[e]ste conto está assinado nos três fragmentos em que foi publicado, com as iniciais B.B. No índice do periódico, porém, o terceiro fragmento consta como sendo de Lara. Por esse motivo o incluímos [entre os contos de Machado de Assis] com as devidas reservas". O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.
VII
Não é minha intenção nem vem ao caso referir ao leitor todos os episódios do amor de Alfredo Tavares.
Até aqui foi necessário contar alguns e resumir outros. Agora que o namoro chegou ao seu termo e que o período do noivado vai começar, não quero fatigar a atenção do leitor com uma narração que nenhuma variedade apresenta. Justamente três meses depois da segunda entrevista recebiam-se os dois noivos, na igreja da Lapa, em presença de algumas pessoas íntimas, entre as quais o confidente de Alfredo, um dos padrinhos. O outro era o primo de Ângela, de quem falara o cocheiro do tilbury, e que até agora não apareceu nestas páginas por não ser preciso. Chamava-se Epaminondas e tinha a habilidade de desmentir o padre que tal nome lhe dera, pregando a cada instante a sua peta. A circunstância não vem ao caso e por isso não insisto nela.
Casados os dois namorados, foram passar a lua-de-mel na Tijuca, onde Alfredo escolhera casa adequada às circunstâncias e ao seu gênio poético.
Durou um mês esta ausência da Corte. No trigésimo primeiro dia, Ângela viu anunciada uma peça nova no Ginásio e pediu ao marido para virem à cidade.
Alfredo objetou que a melhor comédia deste mundo não valia o aroma das laranjeiras que estavam florindo e o melancólico som do repuxo do tanque. Ângela encolheu os ombros e fechou a cara.
- Que tens, meu amor? - perguntou-lhe daí a vinte minutos o marido.
Ângela olhou para ele com um gesto de lástima, ergueu-se e foi encerrar-se na alcova.
Dois recursos restavam a Alfredo.
1º Coçar a cabeça.
2º Ir ao teatro com a mulher.
Alfredo curvou-se a estas duas necessidades da situação.
Ângela recebeu-o muito alegremente quando ele lhe foi dizer que iriam ao teatro.
- Nem por isso - acrescentou Alfredo -, nem por isso deixo de sentir algum pesar. Vivemos tão bem estes trinta dias.
- Voltaremos para o ano.
- Para o ano!
- Sim, alugaremos outra casa.
- Mas então esta?...
- Esta acabou. Pois querias viver num desterro?
- Mas eu pensei que era um paraíso - disse o marido com ar melancólico.
- Paraíso é cousa de romance.
A alma de Alfredo levou um trambolhão. Ângela viu o efeito produzido no esposo pelo seu reparo e procurou suavizar-lho, dizendo-lhe algumas cousas bonitas com que ele algum tempo mitigou as suas penas.
- Olha, Ângela - disse Alfredo -, o casamento, como eu imaginei sempre, é uma vida solitária e exclusiva de dois entes que se amam... Seremos nós assim?
- Por que não?
- Juras então...
- Que seremos felizes.
A resposta era elástica. Alfredo tomou-a ao pé da letra e abraçou a mulher.
Naquele mesmo dia vieram para a casa da tia e foram ao teatro.
A nova peça do Ginásio aborreceu tanto o marido quanto agradou à mulher. Ângela parecia fora de si de contente. Quando caiu o pano no último ato, disse ela ao esposo:
- Havemos de vir outra vez.
- Gostaste?
- Muito. E tu?
- Não gostei - respondeu Alfredo com evidente mau humor.
Ângela levantou os ombros, com o ar de quem dizia:
"Gostes ou não, hás de cá voltar."
E voltou.
Este foi o primeiro passo de uma carreira que parecia não acabar mais.
Ângela era um turbilhão.
A vida para ela estava fora da casa. Em casa morava a morte, sob a figura do aborrecimento. Não havia baile a que faltasse, nem espetáculo, nem passeio, nem festa célebre, e tudo isto cercado de muitas rendas, joias e sedas, que ela comprava todos os dias, como se o dinheiro nunca devesse acabar.
Alfredo esforçava-se por atrair a mulher à esfera dos seus sentimentos românticos; mas era esforço vão.
Com um levantar de ombros, Ângela respondia a tudo.
Alfredo detestava principalmente os bailes, porque era quando a mulher menos lhe pertencia, sobretudo os bailes dados em casa dele.
Às observações que ele fazia nesse sentido, Ângela respondia sempre:
- Mas são obrigações de sociedade; se eu quisesse ser freira metia-me na Ajuda.
- Mas nem todos...
- Nem todos conhecem os seus deveres.
- Oh! Vida solitária, Ângela! A vida para dois!
- A vida não é um jogo de xadrez.
- Nem um arraial.
- Que queres dizer com isso?
- Nada.
- Pareces tolo.
- Ângela!
- Ora!
Levantava os ombros e deixava-o sozinho.
Alfredo era sempre o primeiro a fazer as pazes. A influência que a mulher exercia nele não podia ser mais decisiva. Toda a energia estava com ela; ele era literalmente um fâmulo da casa.
Nos bailes a que iam, o suplício, além de ser grande em si mesmo, era aumentado com os louvores que Alfredo ouvia fazer à mulher.
- Lá está Ângela - dizia um.
- Quem é?
- É aquela de vestido azul.
- A que se casou?
- Pois casou?
- Casou, sim.
- Com quem?
- Com um rapaz bonachão.
- Feliz mortal!
- Onde está o marido?
- Caluda! Está aqui: é este sujeito triste que está concertando a gravata...
Estas e outras considerações irritavam profundamente Alfredo. Ele via que era conhecido por causa da mulher. A pessoa dele era uma espécie de cifra. Ângela é que era a unidade.
Não havia meio de se recolher cedo. Ângela entrando num baile só se retirava com as últimas pessoas. Cabia-lhe perfeitamente a expressão que o marido empregou num dia de mau humor:
-Tu espremes um baile até o bagaço.
Às vezes estava o mísero em casa, descansando e alegremente conversando com ela, abrindo todo o pano à imaginação. Ângela, ou por aborrecimento, ou por desejo invencível de passear, ia vestir-se e convidava o marido a sair. O marido já não recalcitrava; suspirava e vestia-se. Do passeio voltava ele aborrecido, e ela, alegre, além do mais porque não deixava de comprar um vestido novo e caro, uma joia, um enfeite qualquer.
Alfredo não tinha forças para reagir.
O menor desejo de Ângela era para ele uma lei de ferro; cumpria-a por gosto e por fraqueza.
Nesta situação, Alfredo sentiu necessidade de desabafar com alguém. Mas esse alguém não aparecia. Não lhe convinha falar ao Tibúrcio, por não querer confiar a um estranho, embora amigo, as suas zangas conjugais. A tia de Ângela parecia apoiar a sobrinha em tudo. Alfredo lembrou-se de pedir conselho a Epaminondas.
VIII
Epaminondas ouviu atentamente as queixas do primo. Achou-as exageradas, e foi o menos que lhe podia dizer, porque no seu entender eram verdadeiros despropósitos.
- O que você quer é realmente impossível.
- Impossível?
- Decerto. A prima está moça, quer naturalmente divertir-se. Por que razão há de viver como freira?
- Mas eu não peço que viva como freira. Quisera vê-la mais em casa, menos aborrecida quando está só comigo. Lembra-se da nossa briga do domingo?
- Lembro-me. Você queria ler-lhe uns versos e ela respondeu que não a aborrecesse.
- Que tal?...
Epaminondas recolheu-se a um eloquente silêncio.
Alfredo esteve também algum tempo calado.
Enfim:
- Estou resolvido a usar da minha autoridade de marido.
- Não caia nessa.
- Mas então devo viver eternamente nisto?
- Eternamente já vê que é impossível - disse Epaminondas sorrindo -. Mas veja bem o risco que corre. Eu tive uma prima que se vingou do marido por uma dessas. Parece incrível! Cortou a si mesma o dedo mínimo do pé esquerdo e deu-lhe a comer com batatas.
- Está brincando...
- Estou falando sério. Chamava-se Lúcia. Quando ele reconheceu que efetivamente tinha devorado a carne da sua carne, teve um ataque.
- Imagino.
- Dois dias depois expirou de remorsos. Não faça tal; não irrite uma mulher. Dê tempo ao tempo. A velhice há de curá-la e trazê-la a costumes pacíficos.
Alfredo fez um gesto de desespero.
- Sossegue. Também eu fui assim. Minha finada mulher...
- Era do mesmo gosto?
- Do mesmíssimo. Quis contrariá-la. Ia-me custando a vida.
- Sim?
- Tenho aqui entre duas costelas uma cicatriz larga; foi uma canivetada que Margarida me deu estando eu a dormir muito tranquilamente.
- Que me diz?
- A verdade. Mal tive tempo de lhe segurar no pulso e arrojá-la para longe de mim. A porta do quarto estava fechada com o trinco, mas foi tal a força com que a empurrei que a porta se abriu e ela foi parar ao fim da sala.
- Ah!
Alfredo lembrou-se a tempo do sestro do primo e deixou-o falar a gosto. Epaminondas engendrou logo ali um ou dois capítulos de romance sombrio e ensanguentado. Alfredo, aborrecido, deixou-o só.
Tibúrcio encontrou-o algumas vezes cabisbaixo e melancólico. Quis saber da causa, mas Alfredo conservou prudente reserva.
A esposa deu ampla liberdade aos seus caprichos. Fazia recepções todas as semanas, apesar dos protestos do marido, que, no meio da sua mágoa, exclamava:
- Mas então eu não tenho mulher! Tenho uma locomotiva!
Exclamação que Ângela ouvia sorrindo sem lhe dar a mínima resposta.
Os cabedais da moça eram poucos; as despesas, muitas. Com as mil cousas em que se gastava o dinheiro não era possível que ele durasse toda a vida. Ao cabo de cinco anos, Alfredo reconheceu que tudo estava perdido.
A mulher sentiu dolorosamente o que ele lhe contou.
- Sinto isto deveras - acrescentou Alfredo -; mas a minha consciência está tranquila. - Sempre me opus a despesas loucas...
- Sempre?
- Nem sempre, porque te amava e amo, e doía-me ver que ficavas triste; mas à maior parte delas opus-me com todas as forças.
- E agora?
- Agora precisamos ser econômicos; viver como pobres.
Ângela curvou a cabeça.
Seguiu-se um grande silêncio.
O primeiro que o rompeu foi ela.
- É impossível!
- Impossível o quê?
- A pobreza.
- Impossível, mas necessária - disse Alfredo com filosófica tristeza.
- Não é necessária; eu hei de fazer alguma cousa; tenho pessoas de amizade.
- Ou um Potosi...
Ângela não se explicou mais; Alfredo foi para a casa de negócio que estabelecera, não descontente com a situação.
"Não estou bem", pensava ele; "mas ao menos terei mudado a minha situação conjugal."
Os quatro dias seguintes passaram sem novidade.
Houve sempre uma novidade.
Ângela estava muito mais carinhosa com o marido do que até então. Alfredo atribuía esta mudança às circunstâncias atuais e agradeceu à boa estrela que tão venturoso o tornara.
No quinto dia Epaminondas foi falar a Alfredo propondo-lhe ir pedir ao governo uma concessão e privilégio de minas em Mato Grosso.
- Mas eu não me meto em explorador de minas.
- Perdão; vendemos o privilégio.
- Está certo disso? - perguntou Alfredo tentado.
- Certíssimo.
E logo:
- Temos além disso outra empresa: uma estrada de ferro no Piauí. Vende-se a empresa do mesmo modo.
- Tem elementos para ambas as cousas?
- Tenho.
Alfredo refletiu.
- Aceito.
Epaminondas declarou que alcançaria tudo do ministro. Tantas cousas disse que o primo, sabedor dos carapetões que ele pregava, começou a desconfiar.
Errava desta vez.
Pela primeira vez Epaminondas falava verdade; tinha elementos para alcançar as duas empresas.
Ângela não perguntou ao marido a causa da preocupação com que ele nesse dia entrou na casa. A idéia de Alfredo era tudo ocultar à mulher, pelo menos enquanto pudesse.
Confiava no resultado dos seus esforços para trazê-la a melhor caminho.
Os papéis andaram com uma prontidão rara em cousas análogas. Parece que uma fada benfazeja se encarregava de adiantar o negócio.
Alfredo conhecia o ministro. Duas vezes fora convidado para lá tomar chá e tivera além disso a honra de o receber em casa algumas vezes. Nem por isso julgava ter direito à pronta solução do negócio. O negócio, porém, corria mais veloz que uma locomotiva.
Não se haviam passado dois meses depois da apresentação do memorial quando Alfredo ao entrar em casa foi surpreendido por muitos abraços e beijos da mulher.
- Que temos? - disse ele todo risonho.
- Vou dar-te um presente.
- Um presente?
- Que dia é hoje?
-Vinte e cinco de março.
- Fazes anos.
- Nem me lembrava.
- Aqui está o meu presente.
Era um papel.
Alfredo abriu o papel.
Era o decreto de privilégio das minas.
Alfredo ficou literalmente embasbacado.
- Mas como veio isto?...
- Quis causar-te esta surpresa. O outro decreto há de vir de aqui a oito dias.
- Mas então sabia que eu...?
- Sabia tudo.
- Quem te disse?...
Ângela titubeou.
- Foi... foi o primo Epaminondas.
A explicação satisfez Alfredo durante três dias.
No fim desse tempo abriu um jornal e leu com pasmo esta mofina:
Mina de caroço
Com que então os cofres públicos já servem para nutrir o fogo no coração dos ministros.
Quem pergunta quer saber.
Alfredo rasgou o jornal no primeiro ímpeto.
Depois...
IX
- Mas em suma que tens? - disse Tibúrcio ao ver que Alfredo não se atrevia a falar.
- O que tenho? Fui à cata de poesia e acho-me em prosa chata e baixa. Ah! Meu amigo, quem me mandou seguir pela rua da Quitanda?