Conto

Antes Que Cases...

1875

V

Tanto a casa de Ângela como a de Alfredo tinham um jardim no fundo. Alfredo quase morreu de contentamento quando descobriu esta circunstância.

"É impossível", pensava ele, "que aquela moça tão poética não goste de passear no jardim. Vê-la-ei desta janela do fundo, ou por cima da cerca se for baixa. Será?"

Alfredo desceu à cerca e verificou que a cerca lhe dava pelo peito.

- Bom! - disse ele -. Nem de propósito!

Agradeceu mentalmente à sorte que ainda poucos dias antes amaldiçoava e subiu para pôr os seus objetos em ordem e dar alguns esclarecimentos ao criado.

Nesse mesmo dia de tarde, estando à janela, viu a moça. Ângela encarou com ele como quem duvidava do que via; mas, passado esse momento de exame, pareceu não lhe dar atenção.

Alfredo, cuja intenção era cumprimentá-la, com o pretexto da vizinhança, esqueceu-se completamente da formalidade. Em vão procurou nova ocasião. A moça parecia alheia à sua pessoa.

"Não faz mal;" disse ele consigo, "o essencial é que eu esteja aqui ao pé."

A moça parecia-lhe agora ainda mais bonita. Era uma beleza que ainda ganhava mais quando examinada de perto. Alfredo reconheceu que era de todo impossível pensar em outra mulher deste mundo ainda que aquela devesse fazê-lo desgraçado.

No segundo dia foi mais feliz. Chegou à janela repentinamente na ocasião em que ela e a tia estavam à sua; Alfredo cumprimentou-as respeitosamente. Elas corresponderam com um leve gesto.

O conhecimento estava travado.

Nem por isso adiantou o namoro, porque durante a tarde os olhos de ambos não se encontraram e a existência de Alfredo parecia ser a última cousa de que Ângela se lembrava.

Oito dias depois, estando Alfredo à janela, viu chegar a moça sozinha, com uma flor na mão. Ela olhou para ele; cumprimentaram.

Era a primeira vez que Alfredo alcançava alguma cousa. A sua alma voou ao sétimo céu.

A moça recostou-se na grade com a flor na mão, a brincar distraída, não sei se por brincar, se por mostrar a mão ao vizinho. O certo é que Alfredo não tirava os olhos da mão. A mão era digna irmã do pé, que Alfredo entrevira na rua da Quitanda.

O rapaz estava fascinado.

Mas quando ele quase perdeu o juízo foi na ocasião em que ela, indo retirar-se da janela, encarou outra vez com ele. Não havia severidade nos lábios; Alfredo viu-lhe até uma sombra de sorriso.

- Sou feliz! - exclamou Alfredo entrando -. Enfim, consegui já alguma cousa.

Dizendo isto deu alguns passos na sala, agitado, rindo, mirando-se ao espelho, completamente fora de si. Dez minutos depois chegou à janela; outros dez minutos depois chegava Ângela.

Olharam-se ainda uma vez.

Era a terceira naquela tarde, depois de tantas semanas da mais profunda indiferença.

A imaginação de Alfredo não o deixou dormir nessa noite. Pelos seus cálculos, dentro de dois meses iria pedir-lhe a mão.

No dia seguinte não a viu e ficou desesperado com esta circunstância. Felizmente o criado, que já havia percebido alguma cousa, achou meio de lhe dizer que a família da casa vizinha saíra de manhã e não voltara.

Seria uma mudança? Esta ideia veio fazer da noite de Alfredo uma noite de angústias. No dia seguinte trabalhou mal. Jantou às pressas e foi para casa. Ângela estava à janela.

Quando Alfredo apareceu à sua e a cumprimentou, viu que ela tinha outra flor na mão; era um malmequer.

Alfredo ficou logo embebido a contemplá-la; Ângela começou a desfolhar o malmequer, como se estivesse consultando sobre algum problema do coração.

O namorado não se deteve mais; correu a uma gavetinha de segredo, tirou o laço de fita azul, e veio para a janela com ele.

A moça tinha desfolhado toda a flor; olhou para ele e viu o lacinho que lhe caíra da cabeça.

Estremeceu e sorriu.

Daqui em diante compreende o leitor que as cousas não podiam deixar de caminhar.

Alfredo conseguiu vê-la um dia no jardim, assentada dentro de um caramanchão, e já desta vez o cumprimento foi acompanhado de um sorriso. No dia seguinte ela já não estava no caramanchão; passeava. Novo sorriso e três ou quatro olhares.

Alfredo arriscou a primeira carta.

A carta era escrita com fogo; falava de um céu, de um anjo, de uma vida toda poesia e amor. O moço oferecia-se para morrer a seus pés se fosse preciso.

A resposta veio com prontidão.

Era menos ardente; direi até que não havia ardor nenhum; mas simpatia sim, e muita simpatia, entremeada de algumas dúvidas e receios, e frases bem dispostas para espertar os brios de um coração que todo se desfazia em sentimento.

Travou-se então um duelo epistolar que durou cerca de um mês antes da primeira entrevista.

A entrevista verificou-se ao pé da cerca, de noite, pouco depois das ave-marias, tendo Alfredo mandado o criado ao seu amigo e confidente Tibúrcio com uma carta em que lhe pedia que detivesse o portador até às oito horas ou mais.

Convém dizer que esta entrevista era perfeitamente desnecessária.

Ângela era livre; podia escolher livremente um segundo marido; não tinha de quem esconder os seus amores.

Por outro lado, não era difícil a Alfredo obter uma apresentação em casa da viúva, se lhe conviesse entrar primeiramente assim, antes de lhe pedir a mão.

Todavia, o namorado insistiu na entrevista do jardim, que ela recusou a princípio. A entrevista entrava no sistema poético de Alfredo, era uma leve reminiscência da cena de Shakespeare.

VI

- Juras então que me amas?

- Juro.

- Até à morte?

- Até à morte.

- Também eu te amo, minha querida Ângela, não de hoje, mas há muito, apesar dos teus desprezos...

- Oh!

- Não direi desprezos, mas indiferença... Oh! Mas tudo lá vai; agora somos dois corações ligados para sempre.

- Para sempre!

Neste ponto ouviu-se um rumor na casa de Ângela.

- Que é? - perguntou Alfredo.

Ângela quis fugir.

- Não fujas!

- Mas...

- Não é nada; algum criado...

- Se dessem por mim aqui!

- Tens medo?

- Vergonha.

A noite encobriu a mortal palidez do namorado.

- Vergonha de amar! - exclamou ele.

- Quem te diz isso? Vergonha de me acharem aqui, expondo-me às calúnias, quando nada impede que tu...

Alfredo reconheceu a justiça.

Nem por isso deixou de meter a mão nos cabelos com um gesto de aflição trágica, que a noite continuava a encobrir aos olhos da formosa viúva.

- Olha! O melhor é vires à nossa casa. Autorizo-te a pedir a minha mão.

Conquanto ela já houvesse indicado isto nas cartas, era a primeira vez que formalmente o dizia. Alfredo viu-se transportado ao sétimo céu. Agradeceu a autorização que lhe dava e respeitosamente beijou-lhe a mão.

- Agora, adeus!

- Ainda não! - exclamou Alfredo.

- Que imprudência!

- Um instante mais!

- Ouves? - disse ela prestando o ouvido ao rumor que se fazia na casa.

Alfredo respondeu apaixonada e literariamente:

- Não é a calhandra, é o rouxinol!

- É a voz de minha tia! - observou a viúva prosaicamente -. Adeus...

- Uma última cousa te peço antes de ir à tua casa.

- Que é?

- Outra entrevista neste mesmo lugar.

- Alfredo!

- Outra e última.

Ângela não respondeu.

- Sim?

- Não sei, adeus!

E libertando a sua mão das mãos do namorado que a retinha com força, Ângela correu para casa.

Alfredo ficou triste e alegre ao mesmo tempo.

Ouvira a doce voz de Ângela, tivera nas suas a sua mão alva e macia como veludo, ouvira-a jurar que o amava, enfim estava autorizado a pedir-lhe solenemente a mão.

A preocupação porém da moça a respeito do que pensaria a tia afigurou-se-lhe extremamente prosaica. Quisera vê-la toda poética, embebida no seu amor, esquecida do resto do mundo, morta para tudo o que não fosse o bater do seu coração.

A despedida sobretudo pareceu-lhe repentinamente demais. O adeus foi antes de medo que de amor; não se despediu, fugiu. Ao mesmo tempo esse sobressalto era dramático e interessante; mas por que não conceder-lhe segunda entrevista? Enquanto ele fazia estas reflexões, Ângela pensava na impressão que lhe teria deixado e na mágoa que porventura lhe ficara da recusa de uma segunda e última entrevista.

Refletiu longo tempo e resolveu remediar o mal, se mal se podia aquilo chamar.

No dia seguinte, logo cedo, recebeu Alfredo um bilhetinho da namorada.

Era um protesto de amor, com uma explicação da fuga da véspera e uma promessa de outra entrevista na seguinte noite, depois da qual ele iria pedir-lhe oficialmente a mão.

Alfredo exultou.

Nesse dia a natureza pareceu-lhe melhor. O almoço foi excelente apesar de lhe terem dado um filet tão duro como sola e de estar o chá frio como água. O patrão nunca lhe pareceu mais amável. Todas as pessoas que encontrava tinham cara de excelentes amigos. Enfim, até o criado ganhou com os sentimentos alegres do amo: Alfredo deu-lhe uma boa molhadura pela habilidade com que lhe escovara as botas, que, entre parênteses, nem sequer levavam graxa.

Verificou-se a entrevista sem nenhum incidente notável. Houve os costumados protestos:

- Amo-te muito!

- E eu!

- És um anjo!

- Seremos felizes.

- Deus nos ouça!

- Há de ouvir-nos.

Estas e outras palavras foram o estribilho da entrevista que durou apenas meia hora.

Nessa ocasião Alfredo desenvolveu o seu sistema de vida, a maneira por que ele encarava o casamento, os sonhos de amor que haviam realizar, e mil outros artigos de um programa de namorado, que a moça ouviu e aplaudiu.

Alfredo despediu-se contente e feliz.

A noite que passou foi a mais deliciosa de todas. O sonho que ele procurara durante tanto tempo ia enfim realizar-se; amava a uma mulher como ele a queria e imaginava. Nenhum obstáculo se oferecia à sua ventura na terra.

No outro dia de manhã, entrando no hotel, encontrou o amigo Tibúrcio; e referiu-lhe tudo.

O confidente felicitou o namorado pelo triunfo que alcançara e deu-lhe logo um aperto de mão, não podendo dar-lhe, como quisera, um abraço.

- Se soubesses como vou ser feliz!

- Sei.

- Que mulher! Que anjo!

- Sim! É bonita.

- Não é só bonita. Bonitas há muitas. Mas a alma, a alma que ela tem, a maneira de sentir, tudo isso e mais, eis o que faz uma criatura superior.

- Quando será o casamento?

- Ela o dirá.

- Há de ser breve.

- Dentro de três a quatro meses.

Aqui fez Alfredo um novo hino em louvor das qualidades eminentes e raras da noiva e pela centésima vez defendeu a vida romanesca e ideal. Tibúrcio observou gracejando que era-lhe necessário primeiro suprimir o bife que estava comendo, observação que Alfredo teve a franqueza de achar descabida e um pouco tola.

A conversa porém não teve incidente desagradável e os dois amigos separaram-se como dantes, não sem que o noivo agradecesse ao confidente a animação que lhe dera nos piores dias do seu amor.

- Enfim, quando a vais pedir?

- Amanhã.

- Coragem!

VII

Não é minha intenção nem vem ao caso referir ao leitor todos os episódios do amor de Alfredo Tavares.

Até aqui foi necessário contar alguns e resumir outros. Agora que o namoro chegou ao seu termo e que o período do noivado vai começar, não quero fatigar a atenção do leitor com uma narração que nenhuma variedade apresenta. Justamente três meses depois da segunda entrevista recebiam-se os dois noivos, na igreja da Lapa, em presença de algumas pessoas íntimas, entre as quais o confidente de Alfredo, um dos padrinhos. O outro era o primo de Ângela, de quem falara o cocheiro do tilbury, e que até agora não apareceu nestas páginas por não ser preciso. Chamava-se Epaminondas e tinha a habilidade de desmentir o padre que tal nome lhe dera, pregando a cada instante a sua peta. A circunstância não vem ao caso e por isso não insisto nela.

Casados os dois namorados, foram passar a lua-de-mel na Tijuca, onde Alfredo escolhera casa adequada às circunstâncias e ao seu gênio poético.

Durou um mês esta ausência da Corte. No trigésimo primeiro dia, Ângela viu anunciada uma peça nova no Ginásio e pediu ao marido para virem à cidade.

Alfredo objetou que a melhor comédia deste mundo não valia o aroma das laranjeiras que estavam florindo e o melancólico som do repuxo do tanque. Ângela encolheu os ombros e fechou a cara.

- Que tens, meu amor? - perguntou-lhe daí a vinte minutos o marido.

Ângela olhou para ele com um gesto de lástima, ergueu-se e foi encerrar-se na alcova.

Dois recursos restavam a Alfredo.

1º Coçar a cabeça.

2º Ir ao teatro com a mulher.

Alfredo curvou-se a estas duas necessidades da situação.

Ângela recebeu-o muito alegremente quando ele lhe foi dizer que iriam ao teatro.

- Nem por isso - acrescentou Alfredo -, nem por isso deixo de sentir algum pesar. Vivemos tão bem estes trinta dias.

- Voltaremos para o ano.

- Para o ano!

- Sim, alugaremos outra casa.

- Mas então esta?...

- Esta acabou. Pois querias viver num desterro?

- Mas eu pensei que era um paraíso - disse o marido com ar melancólico.

- Paraíso é cousa de romance.

A alma de Alfredo levou um trambolhão. Ângela viu o efeito produzido no esposo pelo seu reparo e procurou suavizar-lho, dizendo-lhe algumas cousas bonitas com que ele algum tempo mitigou as suas penas.

- Olha, Ângela - disse Alfredo -, o casamento, como eu imaginei sempre, é uma vida solitária e exclusiva de dois entes que se amam... Seremos nós assim?

- Por que não?

- Juras então...

- Que seremos felizes.

A resposta era elástica. Alfredo tomou-a ao pé da letra e abraçou a mulher.

Naquele mesmo dia vieram para a casa da tia e foram ao teatro.

A nova peça do Ginásio aborreceu tanto o marido quanto agradou à mulher. Ângela parecia fora de si de contente. Quando caiu o pano no último ato, disse ela ao esposo:

- Havemos de vir outra vez.

- Gostaste?

- Muito. E tu?

- Não gostei - respondeu Alfredo com evidente mau humor.

Ângela levantou os ombros, com o ar de quem dizia:

"Gostes ou não, hás de cá voltar."

E voltou.

Este foi o primeiro passo de uma carreira que parecia não acabar mais.

Ângela era um turbilhão.

A vida para ela estava fora da casa. Em casa morava a morte, sob a figura do aborrecimento. Não havia baile a que faltasse, nem espetáculo, nem passeio, nem festa célebre, e tudo isto cercado de muitas rendas, joias e sedas, que ela comprava todos os dias, como se o dinheiro nunca devesse acabar.

Alfredo esforçava-se por atrair a mulher à esfera dos seus sentimentos românticos; mas era esforço vão.

Com um levantar de ombros, Ângela respondia a tudo.

Alfredo detestava principalmente os bailes, porque era quando a mulher menos lhe pertencia, sobretudo os bailes dados em casa dele.

Às observações que ele fazia nesse sentido, Ângela respondia sempre:

- Mas são obrigações de sociedade; se eu quisesse ser freira metia-me na Ajuda.

- Mas nem todos...

- Nem todos conhecem os seus deveres.

- Oh! Vida solitária, Ângela! A vida para dois!

- A vida não é um jogo de xadrez.

- Nem um arraial.

- Que queres dizer com isso?

- Nada.

- Pareces tolo.

- Ângela!

- Ora!

Levantava os ombros e deixava-o sozinho.

Alfredo era sempre o primeiro a fazer as pazes. A influência que a mulher exercia nele não podia ser mais decisiva. Toda a energia estava com ela; ele era literalmente um fâmulo da casa.

Nos bailes a que iam, o suplício, além de ser grande em si mesmo, era aumentado com os louvores que Alfredo ouvia fazer à mulher.

- Lá está Ângela - dizia um.

- Quem é?

- É aquela de vestido azul.

- A que se casou?

- Pois casou?

- Casou, sim.

- Com quem?

- Com um rapaz bonachão.

- Feliz mortal!

- Onde está o marido?

- Caluda! Está aqui: é este sujeito triste que está concertando a gravata...

Estas e outras considerações irritavam profundamente Alfredo. Ele via que era conhecido por causa da mulher. A pessoa dele era uma espécie de cifra. Ângela é que era a unidade.

Não havia meio de se recolher cedo. Ângela entrando num baile só se retirava com as últimas pessoas. Cabia-lhe perfeitamente a expressão que o marido empregou num dia de mau humor:

-Tu espremes um baile até o bagaço.

Às vezes estava o mísero em casa, descansando e alegremente conversando com ela, abrindo todo o pano à imaginação. Ângela, ou por aborrecimento, ou por desejo invencível de passear, ia vestir-se e convidava o marido a sair. O marido já não recalcitrava; suspirava e vestia-se. Do passeio voltava ele aborrecido, e ela, alegre, além do mais porque não deixava de comprar um vestido novo e caro, uma joia, um enfeite qualquer.

Alfredo não tinha forças para reagir.

O menor desejo de Ângela era para ele uma lei de ferro; cumpria-a por gosto e por fraqueza.

Nesta situação, Alfredo sentiu necessidade de desabafar com alguém. Mas esse alguém não aparecia. Não lhe convinha falar ao Tibúrcio, por não querer confiar a um estranho, embora amigo, as suas zangas conjugais. A tia de Ângela parecia apoiar a sobrinha em tudo. Alfredo lembrou-se de pedir conselho a Epaminondas.

VIII

Epaminondas ouviu atentamente as queixas do primo. Achou-as exageradas, e foi o menos que lhe podia dizer, porque no seu entender eram verdadeiros despropósitos.

- O que você quer é realmente impossível.

- Impossível?

- Decerto. A prima está moça, quer naturalmente divertir-se. Por que razão há de viver como freira?

- Mas eu não peço que viva como freira. Quisera vê-la mais em casa, menos aborrecida quando está só comigo. Lembra-se da nossa briga do domingo?

- Lembro-me. Você queria ler-lhe uns versos e ela respondeu que não a aborrecesse.

- Que tal?...

Epaminondas recolheu-se a um eloquente silêncio.

Alfredo esteve também algum tempo calado.

Enfim:

- Estou resolvido a usar da minha autoridade de marido.

- Não caia nessa.

- Mas então devo viver eternamente nisto?

- Eternamente já vê que é impossível - disse Epaminondas sorrindo -. Mas veja bem o risco que corre. Eu tive uma prima que se vingou do marido por uma dessas. Parece incrível! Cortou a si mesma o dedo mínimo do pé esquerdo e deu-lhe a comer com batatas.

- Está brincando...

- Estou falando sério. Chamava-se Lúcia. Quando ele reconheceu que efetivamente tinha devorado a carne da sua carne, teve um ataque.

- Imagino.

- Dois dias depois expirou de remorsos. Não faça tal; não irrite uma mulher. Dê tempo ao tempo. A velhice há de curá-la e trazê-la a costumes pacíficos.

Alfredo fez um gesto de desespero.

- Sossegue. Também eu fui assim. Minha finada mulher...

- Era do mesmo gosto?

- Do mesmíssimo. Quis contrariá-la. Ia-me custando a vida.

- Sim?

- Tenho aqui entre duas costelas uma cicatriz larga; foi uma canivetada que Margarida me deu estando eu a dormir muito tranquilamente.

- Que me diz?

- A verdade. Mal tive tempo de lhe segurar no pulso e arrojá-la para longe de mim. A porta do quarto estava fechada com o trinco, mas foi tal a força com que a empurrei que a porta se abriu e ela foi parar ao fim da sala.

- Ah!

Alfredo lembrou-se a tempo do sestro do primo e deixou-o falar a gosto. Epaminondas engendrou logo ali um ou dois capítulos de romance sombrio e ensanguentado. Alfredo, aborrecido, deixou-o só.

Tibúrcio encontrou-o algumas vezes cabisbaixo e melancólico. Quis saber da causa, mas Alfredo conservou prudente reserva.

A esposa deu ampla liberdade aos seus caprichos. Fazia recepções todas as semanas, apesar dos protestos do marido, que, no meio da sua mágoa, exclamava:

- Mas então eu não tenho mulher! Tenho uma locomotiva!

Exclamação que Ângela ouvia sorrindo sem lhe dar a mínima resposta.

Os cabedais da moça eram poucos; as despesas, muitas. Com as mil cousas em que se gastava o dinheiro não era possível que ele durasse toda a vida. Ao cabo de cinco anos, Alfredo reconheceu que tudo estava perdido.

A mulher sentiu dolorosamente o que ele lhe contou.

- Sinto isto deveras - acrescentou Alfredo -; mas a minha consciência está tranquila. - Sempre me opus a despesas loucas...

- Sempre?

- Nem sempre, porque te amava e amo, e doía-me ver que ficavas triste; mas à maior parte delas opus-me com todas as forças.

- E agora?

- Agora precisamos ser econômicos; viver como pobres.

Ângela curvou a cabeça.

Seguiu-se um grande silêncio.

O primeiro que o rompeu foi ela.

- É impossível!

- Impossível o quê?

- A pobreza.

- Impossível, mas necessária - disse Alfredo com filosófica tristeza.

- Não é necessária; eu hei de fazer alguma cousa; tenho pessoas de amizade.

- Ou um Potosi...

Ângela não se explicou mais; Alfredo foi para a casa de negócio que estabelecera, não descontente com a situação.

"Não estou bem", pensava ele; "mas ao menos terei mudado a minha situação conjugal."

Os quatro dias seguintes passaram sem novidade.

Houve sempre uma novidade.

Ângela estava muito mais carinhosa com o marido do que até então. Alfredo atribuía esta mudança às circunstâncias atuais e agradeceu à boa estrela que tão venturoso o tornara.

No quinto dia Epaminondas foi falar a Alfredo propondo-lhe ir pedir ao governo uma concessão e privilégio de minas em Mato Grosso.

- Mas eu não me meto em explorador de minas.

- Perdão; vendemos o privilégio.

- Está certo disso? - perguntou Alfredo tentado.

- Certíssimo.

E logo:

- Temos além disso outra empresa: uma estrada de ferro no Piauí. Vende-se a empresa do mesmo modo.

- Tem elementos para ambas as cousas?

- Tenho.

Alfredo refletiu.

- Aceito.

Epaminondas declarou que alcançaria tudo do ministro. Tantas cousas disse que o primo, sabedor dos carapetões que ele pregava, começou a desconfiar.

Errava desta vez.

Pela primeira vez Epaminondas falava verdade; tinha elementos para alcançar as duas empresas.

Ângela não perguntou ao marido a causa da preocupação com que ele nesse dia entrou na casa. A idéia de Alfredo era tudo ocultar à mulher, pelo menos enquanto pudesse.

Confiava no resultado dos seus esforços para trazê-la a melhor caminho.

Os papéis andaram com uma prontidão rara em cousas análogas. Parece que uma fada benfazeja se encarregava de adiantar o negócio.

Alfredo conhecia o ministro. Duas vezes fora convidado para lá tomar chá e tivera além disso a honra de o receber em casa algumas vezes. Nem por isso julgava ter direito à pronta solução do negócio. O negócio, porém, corria mais veloz que uma locomotiva.

Não se haviam passado dois meses depois da apresentação do memorial quando Alfredo ao entrar em casa foi surpreendido por muitos abraços e beijos da mulher.

- Que temos? - disse ele todo risonho.

- Vou dar-te um presente.

- Um presente?

- Que dia é hoje?

-Vinte e cinco de março.

- Fazes anos.

- Nem me lembrava.

- Aqui está o meu presente.

Era um papel.

Alfredo abriu o papel.

Era o decreto de privilégio das minas.

Alfredo ficou literalmente embasbacado.

- Mas como veio isto?...

- Quis causar-te esta surpresa. O outro decreto há de vir de aqui a oito dias.

- Mas então sabia que eu...?

- Sabia tudo.

- Quem te disse?...

Ângela titubeou.

- Foi... foi o primo Epaminondas.

A explicação satisfez Alfredo durante três dias.

No fim desse tempo abriu um jornal e leu com pasmo esta mofina:

Mina de caroço

Com que então os cofres públicos já servem para nutrir o fogo no coração dos ministros.

Quem pergunta quer saber.

Alfredo rasgou o jornal no primeiro ímpeto.

Depois...

A+
A-