"[e]ste conto está assinado nos três fragmentos em que foi publicado, com as iniciais B.B. No índice do periódico, porém, o terceiro fragmento consta como sendo de Lara. Por esse motivo o incluímos [entre os contos de Machado de Assis] com as devidas reservas". O texto desta edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.
IV
Nessa mesma tarde foram os dois a Mata-cavalos, na ordem convencionada. Ângela estava à janela, acompanhada da tia velha e da irmã mais moça. Viu de longe o namorado, mas não fitou os olhos nele; Tibúrcio pela sua parte não desviava os seus da formosa dama. Alfredo passou como sempre.
Os dois amigos foram reunir-se quando já não podiam estar ao alcance dos olhos dela.
Tibúrcio fez um elogio à beleza da moça, que o amigo ouviu encantado, como se lhe estivessem a elogiar uma obra sua.
- Oh! Hei de ser muito feliz! - exclamou ele num acesso de entusiasmo.
- Sim - concordou Tibúrcio -; creio que hás de ser feliz.
- Que me aconselhas?
- Mais alguns dias de luta, uns quinze, por exemplo, e depois uma carta...
- Já tinha pensado nisso - disse Alfredo -; mas receava errar; precisava da opinião de alguém. Uma carta, assim, sem nenhum fundamento de esperança, sai fora da norma comum; por isso mesmo me seduz. Mas como hei de mandar a carta?
- Isso agora é contigo - disse Tibúrcio -; vê se tens meio de travar relações com algum criado da casa, ou...
- Ou o cocheiro do tilbury! - exclamou triunfantemente Alfredo Tavares.
Tibúrcio exprimiu com a cara o último limite do assombro ao ouvir estas palavras de Alfredo; mas o amigo não se deteve em explicar-lhe que havia um cocheiro de tilbury meio confidente neste negócio. Tibúrcio aprovou o cocheiro; ficou assentado que o meio da carta seria aplicado.
Os dias correram sem incidente notável. Perdão; houve um notável incidente.
Alfredo passava uma tarde por baixo das janelas de Ângela. Ela não olhava para ele. De repente Alfredo ouve um pequeno grito e vê passar-lhe por diante dos olhos alguma cousa parecida com um lacinho de fita.
Era efetivamente um lacinho de fita que caíra no chão. Alfredo olhou para cima; já não viu a viúva. Olhou em roda de si, abaixou-se, apanhou o laço e guardou-o na algibeira.
Dizer o que havia dentro da sua alma naquele venturoso instante é tarefa que pediria muito tempo e mais adestrado pincel. Alfredo mal podia conter o coração. A vontade que tinha era beijar ali mesmo na rua o laço, que ele já considerava uma parte da sua bela.
Reprimiu-se contudo; foi até o fim da rua; voltou por ela; mas, contra o costume daqueles últimos dias, a moça não apareceu.
Esta circunstância era suficiente para fazer crer na casualidade da queda do laço. Assim o pensava Alfredo; ao mesmo tempo porém perguntava se não era possível que Ângela, envergonhada da sua audácia, quisesse agora evitar a presença dele e não menos as vistas curiosas da vizinhança.
- Talvez - dizia ele.
Daí a um instante:
- Não, não é possível tamanha felicidade. O grito que soltou foi de sincera surpresa. A fita foi casual. Nem por isso a adorarei menos...
Apenas chegou a casa, Alfredo tirou o laço, que era de fita azul, e devia ter estado no colo ou no cabelo da viúva. Alfredo beijou-o cerca de vinte e cinco vezes e, se a natureza o tivesse feito poeta, é provável que naquela mesma ocasião expectorasse dez ou doze estrofes em que diria estar naquela fita um pedaço da alma da bela; a cor da fita serviria para fazer bonitas e adequadas comparações com o céu.
Não era poeta o nosso Alfredo; contentou-se em beijar o precioso despojo, e não deixou de referir o episódio ao seu confidente.
- Na minha opinião - disse este -, é chegada a ocasião de lançar a carta.
- Creio que sim.
- Não sejas mole.
- Há de ser já amanhã.
Alfredo não contava com a instabilidade das cousas humanas. A amizade na terra, ainda quando o coração a mantenha, está dependente do fio da vida. O cocheiro do tilbury não se teria provavelmente esquecido do seu freguês de uma noite; mas tinha morrido no intervalo daquela noite ao dia em que Alfredo o foi procurar.
- É demais! - exclamou Alfredo -; parece que a sorte se compraz de multiplicar os obstáculos com que eu esbarro a cada passo! Aposto que esse homem não morria se eu não precisasse dele. O destino persegue-me... Mas nem por isso hei de curvar a cabeça... Oh! Não!
Com esta boa resolução se foi o namorado em busca de outro meio. A sorte trouxe-lhe um excelente. Vagou a casa contígua à de Ângela; era uma casa pequena, elegantezinha, própria para um ou dois rapazes solteiros... Alfredo alugou a casa e foi dizê-lo triunfantemente ao seu amigo.
- Fizeste muito bem! - exclamou este -. O golpe é de mestre. Estando ao pé é impossível que não chegues a algum resultado.
- Tanto mais que ela já me conhece - disse Alfredo -; deve ver nisso uma prova de amor.
- Justamente!
Alfredo não se demorou em fazer a mudança; dali a dois dias estava na sua casa nova. É escusado dizer que o laço azul não foi em alguma gaveta ou caixinha; foi na algibeira dele.
V
Tanto a casa de Ângela como a de Alfredo tinham um jardim no fundo. Alfredo quase morreu de contentamento quando descobriu esta circunstância.
"É impossível", pensava ele, "que aquela moça tão poética não goste de passear no jardim. Vê-la-ei desta janela do fundo, ou por cima da cerca se for baixa. Será?"
Alfredo desceu à cerca e verificou que a cerca lhe dava pelo peito.
- Bom! - disse ele -. Nem de propósito!
Agradeceu mentalmente à sorte que ainda poucos dias antes amaldiçoava e subiu para pôr os seus objetos em ordem e dar alguns esclarecimentos ao criado.
Nesse mesmo dia de tarde, estando à janela, viu a moça. Ângela encarou com ele como quem duvidava do que via; mas, passado esse momento de exame, pareceu não lhe dar atenção.
Alfredo, cuja intenção era cumprimentá-la, com o pretexto da vizinhança, esqueceu-se completamente da formalidade. Em vão procurou nova ocasião. A moça parecia alheia à sua pessoa.
"Não faz mal;" disse ele consigo, "o essencial é que eu esteja aqui ao pé."
A moça parecia-lhe agora ainda mais bonita. Era uma beleza que ainda ganhava mais quando examinada de perto. Alfredo reconheceu que era de todo impossível pensar em outra mulher deste mundo ainda que aquela devesse fazê-lo desgraçado.
No segundo dia foi mais feliz. Chegou à janela repentinamente na ocasião em que ela e a tia estavam à sua; Alfredo cumprimentou-as respeitosamente. Elas corresponderam com um leve gesto.
O conhecimento estava travado.
Nem por isso adiantou o namoro, porque durante a tarde os olhos de ambos não se encontraram e a existência de Alfredo parecia ser a última cousa de que Ângela se lembrava.
Oito dias depois, estando Alfredo à janela, viu chegar a moça sozinha, com uma flor na mão. Ela olhou para ele; cumprimentaram.
Era a primeira vez que Alfredo alcançava alguma cousa. A sua alma voou ao sétimo céu.
A moça recostou-se na grade com a flor na mão, a brincar distraída, não sei se por brincar, se por mostrar a mão ao vizinho. O certo é que Alfredo não tirava os olhos da mão. A mão era digna irmã do pé, que Alfredo entrevira na rua da Quitanda.
O rapaz estava fascinado.
Mas quando ele quase perdeu o juízo foi na ocasião em que ela, indo retirar-se da janela, encarou outra vez com ele. Não havia severidade nos lábios; Alfredo viu-lhe até uma sombra de sorriso.
- Sou feliz! - exclamou Alfredo entrando -. Enfim, consegui já alguma cousa.
Dizendo isto deu alguns passos na sala, agitado, rindo, mirando-se ao espelho, completamente fora de si. Dez minutos depois chegou à janela; outros dez minutos depois chegava Ângela.
Olharam-se ainda uma vez.
Era a terceira naquela tarde, depois de tantas semanas da mais profunda indiferença.
A imaginação de Alfredo não o deixou dormir nessa noite. Pelos seus cálculos, dentro de dois meses iria pedir-lhe a mão.
No dia seguinte não a viu e ficou desesperado com esta circunstância. Felizmente o criado, que já havia percebido alguma cousa, achou meio de lhe dizer que a família da casa vizinha saíra de manhã e não voltara.
Seria uma mudança? Esta ideia veio fazer da noite de Alfredo uma noite de angústias. No dia seguinte trabalhou mal. Jantou às pressas e foi para casa. Ângela estava à janela.
Quando Alfredo apareceu à sua e a cumprimentou, viu que ela tinha outra flor na mão; era um malmequer.
Alfredo ficou logo embebido a contemplá-la; Ângela começou a desfolhar o malmequer, como se estivesse consultando sobre algum problema do coração.
O namorado não se deteve mais; correu a uma gavetinha de segredo, tirou o laço de fita azul, e veio para a janela com ele.
A moça tinha desfolhado toda a flor; olhou para ele e viu o lacinho que lhe caíra da cabeça.
Estremeceu e sorriu.
Daqui em diante compreende o leitor que as cousas não podiam deixar de caminhar.
Alfredo conseguiu vê-la um dia no jardim, assentada dentro de um caramanchão, e já desta vez o cumprimento foi acompanhado de um sorriso. No dia seguinte ela já não estava no caramanchão; passeava. Novo sorriso e três ou quatro olhares.
Alfredo arriscou a primeira carta.
A carta era escrita com fogo; falava de um céu, de um anjo, de uma vida toda poesia e amor. O moço oferecia-se para morrer a seus pés se fosse preciso.
A resposta veio com prontidão.
Era menos ardente; direi até que não havia ardor nenhum; mas simpatia sim, e muita simpatia, entremeada de algumas dúvidas e receios, e frases bem dispostas para espertar os brios de um coração que todo se desfazia em sentimento.
Travou-se então um duelo epistolar que durou cerca de um mês antes da primeira entrevista.
A entrevista verificou-se ao pé da cerca, de noite, pouco depois das ave-marias, tendo Alfredo mandado o criado ao seu amigo e confidente Tibúrcio com uma carta em que lhe pedia que detivesse o portador até às oito horas ou mais.
Convém dizer que esta entrevista era perfeitamente desnecessária.
Ângela era livre; podia escolher livremente um segundo marido; não tinha de quem esconder os seus amores.
Por outro lado, não era difícil a Alfredo obter uma apresentação em casa da viúva, se lhe conviesse entrar primeiramente assim, antes de lhe pedir a mão.
Todavia, o namorado insistiu na entrevista do jardim, que ela recusou a princípio. A entrevista entrava no sistema poético de Alfredo, era uma leve reminiscência da cena de Shakespeare.
VI
- Juras então que me amas?
- Juro.
- Até à morte?
- Até à morte.
- Também eu te amo, minha querida Ângela, não de hoje, mas há muito, apesar dos teus desprezos...
- Oh!
- Não direi desprezos, mas indiferença... Oh! Mas tudo lá vai; agora somos dois corações ligados para sempre.
- Para sempre!
Neste ponto ouviu-se um rumor na casa de Ângela.
- Que é? - perguntou Alfredo.
Ângela quis fugir.
- Não fujas!
- Mas...
- Não é nada; algum criado...
- Se dessem por mim aqui!
- Tens medo?
- Vergonha.
A noite encobriu a mortal palidez do namorado.
- Vergonha de amar! - exclamou ele.
- Quem te diz isso? Vergonha de me acharem aqui, expondo-me às calúnias, quando nada impede que tu...
Alfredo reconheceu a justiça.
Nem por isso deixou de meter a mão nos cabelos com um gesto de aflição trágica, que a noite continuava a encobrir aos olhos da formosa viúva.
- Olha! O melhor é vires à nossa casa. Autorizo-te a pedir a minha mão.
Conquanto ela já houvesse indicado isto nas cartas, era a primeira vez que formalmente o dizia. Alfredo viu-se transportado ao sétimo céu. Agradeceu a autorização que lhe dava e respeitosamente beijou-lhe a mão.
- Agora, adeus!
- Ainda não! - exclamou Alfredo.
- Que imprudência!
- Um instante mais!
- Ouves? - disse ela prestando o ouvido ao rumor que se fazia na casa.
Alfredo respondeu apaixonada e literariamente:
- Não é a calhandra, é o rouxinol!
- É a voz de minha tia! - observou a viúva prosaicamente -. Adeus...
- Uma última cousa te peço antes de ir à tua casa.
- Que é?
- Outra entrevista neste mesmo lugar.
- Alfredo!
- Outra e última.
Ângela não respondeu.
- Sim?
- Não sei, adeus!
E libertando a sua mão das mãos do namorado que a retinha com força, Ângela correu para casa.
Alfredo ficou triste e alegre ao mesmo tempo.
Ouvira a doce voz de Ângela, tivera nas suas a sua mão alva e macia como veludo, ouvira-a jurar que o amava, enfim estava autorizado a pedir-lhe solenemente a mão.
A preocupação porém da moça a respeito do que pensaria a tia afigurou-se-lhe extremamente prosaica. Quisera vê-la toda poética, embebida no seu amor, esquecida do resto do mundo, morta para tudo o que não fosse o bater do seu coração.
A despedida sobretudo pareceu-lhe repentinamente demais. O adeus foi antes de medo que de amor; não se despediu, fugiu. Ao mesmo tempo esse sobressalto era dramático e interessante; mas por que não conceder-lhe segunda entrevista? Enquanto ele fazia estas reflexões, Ângela pensava na impressão que lhe teria deixado e na mágoa que porventura lhe ficara da recusa de uma segunda e última entrevista.
Refletiu longo tempo e resolveu remediar o mal, se mal se podia aquilo chamar.
No dia seguinte, logo cedo, recebeu Alfredo um bilhetinho da namorada.
Era um protesto de amor, com uma explicação da fuga da véspera e uma promessa de outra entrevista na seguinte noite, depois da qual ele iria pedir-lhe oficialmente a mão.
Alfredo exultou.
Nesse dia a natureza pareceu-lhe melhor. O almoço foi excelente apesar de lhe terem dado um filet tão duro como sola e de estar o chá frio como água. O patrão nunca lhe pareceu mais amável. Todas as pessoas que encontrava tinham cara de excelentes amigos. Enfim, até o criado ganhou com os sentimentos alegres do amo: Alfredo deu-lhe uma boa molhadura pela habilidade com que lhe escovara as botas, que, entre parênteses, nem sequer levavam graxa.
Verificou-se a entrevista sem nenhum incidente notável. Houve os costumados protestos:
- Amo-te muito!
- E eu!
- És um anjo!
- Seremos felizes.
- Deus nos ouça!
- Há de ouvir-nos.
Estas e outras palavras foram o estribilho da entrevista que durou apenas meia hora.
Nessa ocasião Alfredo desenvolveu o seu sistema de vida, a maneira por que ele encarava o casamento, os sonhos de amor que haviam realizar, e mil outros artigos de um programa de namorado, que a moça ouviu e aplaudiu.
Alfredo despediu-se contente e feliz.
A noite que passou foi a mais deliciosa de todas. O sonho que ele procurara durante tanto tempo ia enfim realizar-se; amava a uma mulher como ele a queria e imaginava. Nenhum obstáculo se oferecia à sua ventura na terra.
No outro dia de manhã, entrando no hotel, encontrou o amigo Tibúrcio; e referiu-lhe tudo.
O confidente felicitou o namorado pelo triunfo que alcançara e deu-lhe logo um aperto de mão, não podendo dar-lhe, como quisera, um abraço.
- Se soubesses como vou ser feliz!
- Sei.
- Que mulher! Que anjo!
- Sim! É bonita.
- Não é só bonita. Bonitas há muitas. Mas a alma, a alma que ela tem, a maneira de sentir, tudo isso e mais, eis o que faz uma criatura superior.
- Quando será o casamento?
- Ela o dirá.
- Há de ser breve.
- Dentro de três a quatro meses.
Aqui fez Alfredo um novo hino em louvor das qualidades eminentes e raras da noiva e pela centésima vez defendeu a vida romanesca e ideal. Tibúrcio observou gracejando que era-lhe necessário primeiro suprimir o bife que estava comendo, observação que Alfredo teve a franqueza de achar descabida e um pouco tola.
A conversa porém não teve incidente desagradável e os dois amigos separaram-se como dantes, não sem que o noivo agradecesse ao confidente a animação que lhe dera nos piores dias do seu amor.
- Enfim, quando a vais pedir?
- Amanhã.
- Coragem!
VII
Não é minha intenção nem vem ao caso referir ao leitor todos os episódios do amor de Alfredo Tavares.
Até aqui foi necessário contar alguns e resumir outros. Agora que o namoro chegou ao seu termo e que o período do noivado vai começar, não quero fatigar a atenção do leitor com uma narração que nenhuma variedade apresenta. Justamente três meses depois da segunda entrevista recebiam-se os dois noivos, na igreja da Lapa, em presença de algumas pessoas íntimas, entre as quais o confidente de Alfredo, um dos padrinhos. O outro era o primo de Ângela, de quem falara o cocheiro do tilbury, e que até agora não apareceu nestas páginas por não ser preciso. Chamava-se Epaminondas e tinha a habilidade de desmentir o padre que tal nome lhe dera, pregando a cada instante a sua peta. A circunstância não vem ao caso e por isso não insisto nela.
Casados os dois namorados, foram passar a lua-de-mel na Tijuca, onde Alfredo escolhera casa adequada às circunstâncias e ao seu gênio poético.
Durou um mês esta ausência da Corte. No trigésimo primeiro dia, Ângela viu anunciada uma peça nova no Ginásio e pediu ao marido para virem à cidade.
Alfredo objetou que a melhor comédia deste mundo não valia o aroma das laranjeiras que estavam florindo e o melancólico som do repuxo do tanque. Ângela encolheu os ombros e fechou a cara.
- Que tens, meu amor? - perguntou-lhe daí a vinte minutos o marido.
Ângela olhou para ele com um gesto de lástima, ergueu-se e foi encerrar-se na alcova.
Dois recursos restavam a Alfredo.
1º Coçar a cabeça.
2º Ir ao teatro com a mulher.
Alfredo curvou-se a estas duas necessidades da situação.
Ângela recebeu-o muito alegremente quando ele lhe foi dizer que iriam ao teatro.
- Nem por isso - acrescentou Alfredo -, nem por isso deixo de sentir algum pesar. Vivemos tão bem estes trinta dias.
- Voltaremos para o ano.
- Para o ano!
- Sim, alugaremos outra casa.
- Mas então esta?...
- Esta acabou. Pois querias viver num desterro?
- Mas eu pensei que era um paraíso - disse o marido com ar melancólico.
- Paraíso é cousa de romance.
A alma de Alfredo levou um trambolhão. Ângela viu o efeito produzido no esposo pelo seu reparo e procurou suavizar-lho, dizendo-lhe algumas cousas bonitas com que ele algum tempo mitigou as suas penas.
- Olha, Ângela - disse Alfredo -, o casamento, como eu imaginei sempre, é uma vida solitária e exclusiva de dois entes que se amam... Seremos nós assim?
- Por que não?
- Juras então...
- Que seremos felizes.
A resposta era elástica. Alfredo tomou-a ao pé da letra e abraçou a mulher.
Naquele mesmo dia vieram para a casa da tia e foram ao teatro.
A nova peça do Ginásio aborreceu tanto o marido quanto agradou à mulher. Ângela parecia fora de si de contente. Quando caiu o pano no último ato, disse ela ao esposo:
- Havemos de vir outra vez.
- Gostaste?
- Muito. E tu?
- Não gostei - respondeu Alfredo com evidente mau humor.
Ângela levantou os ombros, com o ar de quem dizia:
"Gostes ou não, hás de cá voltar."
E voltou.
Este foi o primeiro passo de uma carreira que parecia não acabar mais.
Ângela era um turbilhão.
A vida para ela estava fora da casa. Em casa morava a morte, sob a figura do aborrecimento. Não havia baile a que faltasse, nem espetáculo, nem passeio, nem festa célebre, e tudo isto cercado de muitas rendas, joias e sedas, que ela comprava todos os dias, como se o dinheiro nunca devesse acabar.
Alfredo esforçava-se por atrair a mulher à esfera dos seus sentimentos românticos; mas era esforço vão.
Com um levantar de ombros, Ângela respondia a tudo.
Alfredo detestava principalmente os bailes, porque era quando a mulher menos lhe pertencia, sobretudo os bailes dados em casa dele.
Às observações que ele fazia nesse sentido, Ângela respondia sempre:
- Mas são obrigações de sociedade; se eu quisesse ser freira metia-me na Ajuda.
- Mas nem todos...
- Nem todos conhecem os seus deveres.
- Oh! Vida solitária, Ângela! A vida para dois!
- A vida não é um jogo de xadrez.
- Nem um arraial.
- Que queres dizer com isso?
- Nada.
- Pareces tolo.
- Ângela!
- Ora!
Levantava os ombros e deixava-o sozinho.
Alfredo era sempre o primeiro a fazer as pazes. A influência que a mulher exercia nele não podia ser mais decisiva. Toda a energia estava com ela; ele era literalmente um fâmulo da casa.
Nos bailes a que iam, o suplício, além de ser grande em si mesmo, era aumentado com os louvores que Alfredo ouvia fazer à mulher.
- Lá está Ângela - dizia um.
- Quem é?
- É aquela de vestido azul.
- A que se casou?
- Pois casou?
- Casou, sim.
- Com quem?
- Com um rapaz bonachão.
- Feliz mortal!
- Onde está o marido?
- Caluda! Está aqui: é este sujeito triste que está concertando a gravata...
Estas e outras considerações irritavam profundamente Alfredo. Ele via que era conhecido por causa da mulher. A pessoa dele era uma espécie de cifra. Ângela é que era a unidade.
Não havia meio de se recolher cedo. Ângela entrando num baile só se retirava com as últimas pessoas. Cabia-lhe perfeitamente a expressão que o marido empregou num dia de mau humor:
-Tu espremes um baile até o bagaço.
Às vezes estava o mísero em casa, descansando e alegremente conversando com ela, abrindo todo o pano à imaginação. Ângela, ou por aborrecimento, ou por desejo invencível de passear, ia vestir-se e convidava o marido a sair. O marido já não recalcitrava; suspirava e vestia-se. Do passeio voltava ele aborrecido, e ela, alegre, além do mais porque não deixava de comprar um vestido novo e caro, uma joia, um enfeite qualquer.
Alfredo não tinha forças para reagir.
O menor desejo de Ângela era para ele uma lei de ferro; cumpria-a por gosto e por fraqueza.
Nesta situação, Alfredo sentiu necessidade de desabafar com alguém. Mas esse alguém não aparecia. Não lhe convinha falar ao Tibúrcio, por não querer confiar a um estranho, embora amigo, as suas zangas conjugais. A tia de Ângela parecia apoiar a sobrinha em tudo. Alfredo lembrou-se de pedir conselho a Epaminondas.