Conto

Antes Que Cases...

1875

III

Alfredo estava contente consigo e com a fortuna. Deparara-lhe esta uma mulher como aquela senhora, teve ele a idéia de a seguir, as circunstâncias o ajudaram poderosamente; sabia agora onde morava a bela, sabia que era livre, e enfim, e mais que tudo, amava.

Amava, sim. Aquela primeira noite foi toda dedicada à lembrança da visão ausente e passageira. Enquanto ela talvez dormia no silêncio da sua alcova solitária, Alfredo pensava nela e fazia já de longe mil castelos no ar. Um pintor não compõe na imaginação o seu primeiro painel com mais amor do que ele delineava os incidentes da sua paixão e o feliz desenlace que ela não podia deixar de ter. Escusado é dizer que não entrava no espírito do solitário amador a idéia de que Ângela fosse uma mulher vulgar. Era impossível que uma mulher tão bela não fosse igualmente em espírito superior ou melhor, uma imaginação etérea, vaporosa, com aspirações análogas às dele, que eram de viver como se poetiza. Isto devia ser Ângela, sem o quê não se cansaria a natureza a dar-lhe tão aprimorado invólucro.

Com estas e outras reflexões foi passando a noite, e já a aurora tingia o horizonte sem que o nosso aventuroso herói tivesse dormido. Mas era preciso dormir e dormiu. O sol já ia alto quando ele acordou. Ângela foi ainda o seu primeiro pensamento. Ao almoço pensou nela, pensou nela durante o trabalho, nela pensou ainda quando se sentou à mesa do hotel. Era a primeira vez que se sentia tão fortemente abalado; não tinha que ver; era chegada a sua hora.

De tarde foi a Mata-cavalos. Não achou ninguém à janela. Passou três ou quatro vezes por diante da casa sem ver o menor vestígio da moça. Alfredo era naturalmente impaciente e frenético; este primeiro revés da fortuna o pôs de mau humor. A noite desse dia foi pior que a anterior. A tarde seguinte porém alguma compensação lhe deu. Ao avistar a casa deu com um vulto de mulher à janela. Se não lho dissessem os olhos, dizia-lhe claramente o coração que a mulher era Ângela. Alfredo ia pelo lado oposto, com os olhos pregados na moça e tão apaixonados os levava, que, se ela os visse, não deixaria de lhes ler o que andava no coração do pobre rapaz. Mas a moça, ou porque alguém a chamasse de dentro, ou porque já estivesse aborrecida de estar à janela, entrou rapidamente, sem dar fé do nosso herói.

Alfredo nem por isso ficou desconsolado.

Tinha visto outra vez a moça; tinha verificado que era realmente uma formosura notável; sentia o coração cada vez mais preso. Isto era o essencial. O resto seria objeto de paciência e de fortuna.

Como era natural, amiudaram-se os passeios a Mata-cavalos. A moça ora estava, ora não estava à janela; mas ainda ao cabo de oito dias não reparara no paciente amador. No nono dia Alfredo foi visto por Ângela. Não se admirou de que ele já de longe viesse a olhar para ela, porque isso era o que faziam todos os rapazes que ali passavam; mas a expressão com que ele olhava é que lhe chamou a atenção. Desviou contudo os olhos por não lhe parecer conveniente parecer que atendia ao desconhecido. Não tardou porém que de novo olhasse; mas, como ele não houvesse desviado os seus dela, Ângela retirou-se.

Alfredo suspirou.

O suspiro de Alfredo tinha dois sentidos.

Era o primeiro uma homenagem do coração.

O segundo era uma confissão de desânimo.

O rapaz via claramente que o coração da bela não fora tomado de assalto, como ele supunha. Todavia não tardou que reconhecesse a possibilidade de pôr as cousas em bom caminho, com o andar do tempo, e bem assim a obrigação que tinha Ângela de não parecer namoradeira deixando-se ir ao sabor da ternura que naturalmente havia de ter lido nos olhos dele.

Daí a quatro dias Ângela tornou a ver o rapaz; pareceu reconhecê-lo, e, mais depressa que da primeira vez, deixou a janela. Alfredo desta vez enfiou. Um monólogo triste e à meia voz entrou a correr-lhe dos lábios fora, monólogo em que ele acusava a sorte e a natureza, culpadas de não terem feito e dirigido os corações de modo que quando um amasse ao outro se afinasse pela mesma corda. Queria ele dizer na sua que as almas deviam descer aos pares cá a este mundo. O sistema era excelente, agora que ele amava a bela viúva; se amasse alguma velha desdentada e tabaquista, o sistema seria detestável.

Assim vai o mundo.

Cinco ou seis semanas correram assim, ora a vê-la e ela a fugir-lhe, ora a não vê-la absolutamente e a passar noites atrozes. Um dia, estando em uma loja na rua do Ouvidor ou dos Ourives, não sei bem onde foi, viu-a entrar acompanhada da irmã mais moça, e estremeceu. Ângela olhou para ele; se o conheceu não o disse no rosto, que se mostrou impassível. De outra vez, indo a uma missa fúnebre na Lapa, deu com os olhos na formosa esquiva; mas foi o mesmo que se olhasse para uma pedra; a moça não se moveu; uma só fibra do rosto não se lhe alterou.

Alfredo não tinha amigos íntimos a quem confiasse estas cousas de coração. Mas o sentimento era mais forte, e ele sentia a necessidade de derramar o que sentia no coração de alguém. Deitou os olhos a um companheiro de passeios, com quem aliás não andava desde a aventura da rua da Quitanda. Tibúrcio era o nome do confidente. Era um sujeito magro e amarelo, que se andasse naturalmente podia apresentar uma figura sofrivelmente elegante, mas que tinha o sestro de contrariar a natureza dando-lhe um jeito particular e perfeitamente ridículo. Votava todas as senhoras honestas ao maior desprezo; e era muito querido e festejado na roda das que o não eram.

Alfredo reconhecia isto mesmo; mas olhava-lhe algumas qualidades boas, e sempre o considerara seu amigo. Não hesitou portanto em dizer tudo a Tibúrcio. O amigo ouviu lisonjeado a narração.

- É de fato bonita?

- Oh! Não sei como a descreva!

- Mas é rica?...

- Não sei se o é... Sei que por ora tudo é inútil; pode ser que ame alguém e esteja até para casar com o tal primo, ou com outro qualquer. O certo é que eu estou cada vez pior.

- Imagino.

- Que farias tu?

- Eu insistia.

- Mas se nada alcançar?

- Insiste sempre. Já arriscaste uma carta?

- Oh! Não!

Tibúrcio refletiu.

- Tens razão - disse ele -; seria inconveniente. Não sei que te diga; eu nunca naveguei nesses mares. Ando cá por outros, cujos parcéis conheço, e cuja bússola é conhecida de todos.

- Se eu pudesse esquecer-me dela - disse Alfredo, que nenhuma atenção prestara às palavras do amigo -, já tinha deixado isto de mão. Às vezes penso que estou fazendo figura ridícula, porque enfim ela é pessoa de outra sociedade...

- O amor iguala as distâncias - disse sentenciosamente Tibúrcio.

- Então parece-te?...

- Parece-me que deves continuar como hoje; e se daqui a algumas semanas mais nada houveres adiantado, fala-me porque eu terei meio de te dar algum conselho bom.

Alfredo apertou fervorosamente as mãos do amigo.

- Entretanto - continuou este -, seria bom que eu a visse; talvez que, não estando namorado como tu, possa conhecer-lhe o caráter e saber se é frieza ou soberba o que a faz até agora esquiva.

Interiormente Alfredo fez uma careta. Não lhe parecia conveniente passar por casa de Ângela acompanhado de outro, o que tiraria ao seu amor o caráter romântico de um padecimento solitário e discreto. Era entretanto impossível recusar nada a um amigo que se interessava por ele. Convieram em que iriam nessa mesma tarde a Mata-cavalos.

- Acho bom - disse o namorado alegre com uma ideia súbita -, acho bom que não passemos juntos; tu irás adiante e eu, um pouco atrás.

- Pois sim. Mas estará ela à janela hoje?

- Talvez; estes últimos cinco dias tenho-a visto sempre à janela.

- Oh! Isso é já um bom sinal.

- Mas não olha para mim.

- Dissimulação!

- Aquele anjo?

- Eu não creio em anjos - respondeu filosoficamente Tibúrcio -, não creio em anjos na terra. O mais que posso conceder neste ponto é que os haja no céu; mas é apenas uma hipótese vaga.

IV

Nessa mesma tarde foram os dois a Mata-cavalos, na ordem convencionada. Ângela estava à janela, acompanhada da tia velha e da irmã mais moça. Viu de longe o namorado, mas não fitou os olhos nele; Tibúrcio pela sua parte não desviava os seus da formosa dama. Alfredo passou como sempre.

Os dois amigos foram reunir-se quando já não podiam estar ao alcance dos olhos dela.

Tibúrcio fez um elogio à beleza da moça, que o amigo ouviu encantado, como se lhe estivessem a elogiar uma obra sua.

- Oh! Hei de ser muito feliz! - exclamou ele num acesso de entusiasmo.

- Sim - concordou Tibúrcio -; creio que hás de ser feliz.

- Que me aconselhas?

- Mais alguns dias de luta, uns quinze, por exemplo, e depois uma carta...

- Já tinha pensado nisso - disse Alfredo -; mas receava errar; precisava da opinião de alguém. Uma carta, assim, sem nenhum fundamento de esperança, sai fora da norma comum; por isso mesmo me seduz. Mas como hei de mandar a carta?

- Isso agora é contigo - disse Tibúrcio -; vê se tens meio de travar relações com algum criado da casa, ou...

- Ou o cocheiro do tilbury! - exclamou triunfantemente Alfredo Tavares.

Tibúrcio exprimiu com a cara o último limite do assombro ao ouvir estas palavras de Alfredo; mas o amigo não se deteve em explicar-lhe que havia um cocheiro de tilbury meio confidente neste negócio. Tibúrcio aprovou o cocheiro; ficou assentado que o meio da carta seria aplicado.

Os dias correram sem incidente notável. Perdão; houve um notável incidente.

Alfredo passava uma tarde por baixo das janelas de Ângela. Ela não olhava para ele. De repente Alfredo ouve um pequeno grito e vê passar-lhe por diante dos olhos alguma cousa parecida com um lacinho de fita.

Era efetivamente um lacinho de fita que caíra no chão. Alfredo olhou para cima; já não viu a viúva. Olhou em roda de si, abaixou-se, apanhou o laço e guardou-o na algibeira.

Dizer o que havia dentro da sua alma naquele venturoso instante é tarefa que pediria muito tempo e mais adestrado pincel. Alfredo mal podia conter o coração. A vontade que tinha era beijar ali mesmo na rua o laço, que ele já considerava uma parte da sua bela.

Reprimiu-se contudo; foi até o fim da rua; voltou por ela; mas, contra o costume daqueles últimos dias, a moça não apareceu.

Esta circunstância era suficiente para fazer crer na casualidade da queda do laço. Assim o pensava Alfredo; ao mesmo tempo porém perguntava se não era possível que Ângela, envergonhada da sua audácia, quisesse agora evitar a presença dele e não menos as vistas curiosas da vizinhança.

- Talvez - dizia ele.

Daí a um instante:

- Não, não é possível tamanha felicidade. O grito que soltou foi de sincera surpresa. A fita foi casual. Nem por isso a adorarei menos...

Apenas chegou a casa, Alfredo tirou o laço, que era de fita azul, e devia ter estado no colo ou no cabelo da viúva. Alfredo beijou-o cerca de vinte e cinco vezes e, se a natureza o tivesse feito poeta, é provável que naquela mesma ocasião expectorasse dez ou doze estrofes em que diria estar naquela fita um pedaço da alma da bela; a cor da fita serviria para fazer bonitas e adequadas comparações com o céu.

Não era poeta o nosso Alfredo; contentou-se em beijar o precioso despojo, e não deixou de referir o episódio ao seu confidente.

- Na minha opinião - disse este -, é chegada a ocasião de lançar a carta.

- Creio que sim.

- Não sejas mole.

- Há de ser já amanhã.

Alfredo não contava com a instabilidade das cousas humanas. A amizade na terra, ainda quando o coração a mantenha, está dependente do fio da vida. O cocheiro do tilbury não se teria provavelmente esquecido do seu freguês de uma noite; mas tinha morrido no intervalo daquela noite ao dia em que Alfredo o foi procurar.

- É demais! - exclamou Alfredo -; parece que a sorte se compraz de multiplicar os obstáculos com que eu esbarro a cada passo! Aposto que esse homem não morria se eu não precisasse dele. O destino persegue-me... Mas nem por isso hei de curvar a cabeça... Oh! Não!

Com esta boa resolução se foi o namorado em busca de outro meio. A sorte trouxe-lhe um excelente. Vagou a casa contígua à de Ângela; era uma casa pequena, elegantezinha, própria para um ou dois rapazes solteiros... Alfredo alugou a casa e foi dizê-lo triunfantemente ao seu amigo.

- Fizeste muito bem! - exclamou este -. O golpe é de mestre. Estando ao pé é impossível que não chegues a algum resultado.

- Tanto mais que ela já me conhece - disse Alfredo -; deve ver nisso uma prova de amor.

- Justamente!

Alfredo não se demorou em fazer a mudança; dali a dois dias estava na sua casa nova. É escusado dizer que o laço azul não foi em alguma gaveta ou caixinha; foi na algibeira dele.

V

Tanto a casa de Ângela como a de Alfredo tinham um jardim no fundo. Alfredo quase morreu de contentamento quando descobriu esta circunstância.

"É impossível", pensava ele, "que aquela moça tão poética não goste de passear no jardim. Vê-la-ei desta janela do fundo, ou por cima da cerca se for baixa. Será?"

Alfredo desceu à cerca e verificou que a cerca lhe dava pelo peito.

- Bom! - disse ele -. Nem de propósito!

Agradeceu mentalmente à sorte que ainda poucos dias antes amaldiçoava e subiu para pôr os seus objetos em ordem e dar alguns esclarecimentos ao criado.

Nesse mesmo dia de tarde, estando à janela, viu a moça. Ângela encarou com ele como quem duvidava do que via; mas, passado esse momento de exame, pareceu não lhe dar atenção.

Alfredo, cuja intenção era cumprimentá-la, com o pretexto da vizinhança, esqueceu-se completamente da formalidade. Em vão procurou nova ocasião. A moça parecia alheia à sua pessoa.

"Não faz mal;" disse ele consigo, "o essencial é que eu esteja aqui ao pé."

A moça parecia-lhe agora ainda mais bonita. Era uma beleza que ainda ganhava mais quando examinada de perto. Alfredo reconheceu que era de todo impossível pensar em outra mulher deste mundo ainda que aquela devesse fazê-lo desgraçado.

No segundo dia foi mais feliz. Chegou à janela repentinamente na ocasião em que ela e a tia estavam à sua; Alfredo cumprimentou-as respeitosamente. Elas corresponderam com um leve gesto.

O conhecimento estava travado.

Nem por isso adiantou o namoro, porque durante a tarde os olhos de ambos não se encontraram e a existência de Alfredo parecia ser a última cousa de que Ângela se lembrava.

Oito dias depois, estando Alfredo à janela, viu chegar a moça sozinha, com uma flor na mão. Ela olhou para ele; cumprimentaram.

Era a primeira vez que Alfredo alcançava alguma cousa. A sua alma voou ao sétimo céu.

A moça recostou-se na grade com a flor na mão, a brincar distraída, não sei se por brincar, se por mostrar a mão ao vizinho. O certo é que Alfredo não tirava os olhos da mão. A mão era digna irmã do pé, que Alfredo entrevira na rua da Quitanda.

O rapaz estava fascinado.

Mas quando ele quase perdeu o juízo foi na ocasião em que ela, indo retirar-se da janela, encarou outra vez com ele. Não havia severidade nos lábios; Alfredo viu-lhe até uma sombra de sorriso.

- Sou feliz! - exclamou Alfredo entrando -. Enfim, consegui já alguma cousa.

Dizendo isto deu alguns passos na sala, agitado, rindo, mirando-se ao espelho, completamente fora de si. Dez minutos depois chegou à janela; outros dez minutos depois chegava Ângela.

Olharam-se ainda uma vez.

Era a terceira naquela tarde, depois de tantas semanas da mais profunda indiferença.

A imaginação de Alfredo não o deixou dormir nessa noite. Pelos seus cálculos, dentro de dois meses iria pedir-lhe a mão.

No dia seguinte não a viu e ficou desesperado com esta circunstância. Felizmente o criado, que já havia percebido alguma cousa, achou meio de lhe dizer que a família da casa vizinha saíra de manhã e não voltara.

Seria uma mudança? Esta ideia veio fazer da noite de Alfredo uma noite de angústias. No dia seguinte trabalhou mal. Jantou às pressas e foi para casa. Ângela estava à janela.

Quando Alfredo apareceu à sua e a cumprimentou, viu que ela tinha outra flor na mão; era um malmequer.

Alfredo ficou logo embebido a contemplá-la; Ângela começou a desfolhar o malmequer, como se estivesse consultando sobre algum problema do coração.

O namorado não se deteve mais; correu a uma gavetinha de segredo, tirou o laço de fita azul, e veio para a janela com ele.

A moça tinha desfolhado toda a flor; olhou para ele e viu o lacinho que lhe caíra da cabeça.

Estremeceu e sorriu.

Daqui em diante compreende o leitor que as cousas não podiam deixar de caminhar.

Alfredo conseguiu vê-la um dia no jardim, assentada dentro de um caramanchão, e já desta vez o cumprimento foi acompanhado de um sorriso. No dia seguinte ela já não estava no caramanchão; passeava. Novo sorriso e três ou quatro olhares.

Alfredo arriscou a primeira carta.

A carta era escrita com fogo; falava de um céu, de um anjo, de uma vida toda poesia e amor. O moço oferecia-se para morrer a seus pés se fosse preciso.

A resposta veio com prontidão.

Era menos ardente; direi até que não havia ardor nenhum; mas simpatia sim, e muita simpatia, entremeada de algumas dúvidas e receios, e frases bem dispostas para espertar os brios de um coração que todo se desfazia em sentimento.

Travou-se então um duelo epistolar que durou cerca de um mês antes da primeira entrevista.

A entrevista verificou-se ao pé da cerca, de noite, pouco depois das ave-marias, tendo Alfredo mandado o criado ao seu amigo e confidente Tibúrcio com uma carta em que lhe pedia que detivesse o portador até às oito horas ou mais.

Convém dizer que esta entrevista era perfeitamente desnecessária.

Ângela era livre; podia escolher livremente um segundo marido; não tinha de quem esconder os seus amores.

Por outro lado, não era difícil a Alfredo obter uma apresentação em casa da viúva, se lhe conviesse entrar primeiramente assim, antes de lhe pedir a mão.

Todavia, o namorado insistiu na entrevista do jardim, que ela recusou a princípio. A entrevista entrava no sistema poético de Alfredo, era uma leve reminiscência da cena de Shakespeare.

VI

- Juras então que me amas?

- Juro.

- Até à morte?

- Até à morte.

- Também eu te amo, minha querida Ângela, não de hoje, mas há muito, apesar dos teus desprezos...

- Oh!

- Não direi desprezos, mas indiferença... Oh! Mas tudo lá vai; agora somos dois corações ligados para sempre.

- Para sempre!

Neste ponto ouviu-se um rumor na casa de Ângela.

- Que é? - perguntou Alfredo.

Ângela quis fugir.

- Não fujas!

- Mas...

- Não é nada; algum criado...

- Se dessem por mim aqui!

- Tens medo?

- Vergonha.

A noite encobriu a mortal palidez do namorado.

- Vergonha de amar! - exclamou ele.

- Quem te diz isso? Vergonha de me acharem aqui, expondo-me às calúnias, quando nada impede que tu...

Alfredo reconheceu a justiça.

Nem por isso deixou de meter a mão nos cabelos com um gesto de aflição trágica, que a noite continuava a encobrir aos olhos da formosa viúva.

- Olha! O melhor é vires à nossa casa. Autorizo-te a pedir a minha mão.

Conquanto ela já houvesse indicado isto nas cartas, era a primeira vez que formalmente o dizia. Alfredo viu-se transportado ao sétimo céu. Agradeceu a autorização que lhe dava e respeitosamente beijou-lhe a mão.

- Agora, adeus!

- Ainda não! - exclamou Alfredo.

- Que imprudência!

- Um instante mais!

- Ouves? - disse ela prestando o ouvido ao rumor que se fazia na casa.

Alfredo respondeu apaixonada e literariamente:

- Não é a calhandra, é o rouxinol!

- É a voz de minha tia! - observou a viúva prosaicamente -. Adeus...

- Uma última cousa te peço antes de ir à tua casa.

- Que é?

- Outra entrevista neste mesmo lugar.

- Alfredo!

- Outra e última.

Ângela não respondeu.

- Sim?

- Não sei, adeus!

E libertando a sua mão das mãos do namorado que a retinha com força, Ângela correu para casa.

Alfredo ficou triste e alegre ao mesmo tempo.

Ouvira a doce voz de Ângela, tivera nas suas a sua mão alva e macia como veludo, ouvira-a jurar que o amava, enfim estava autorizado a pedir-lhe solenemente a mão.

A preocupação porém da moça a respeito do que pensaria a tia afigurou-se-lhe extremamente prosaica. Quisera vê-la toda poética, embebida no seu amor, esquecida do resto do mundo, morta para tudo o que não fosse o bater do seu coração.

A despedida sobretudo pareceu-lhe repentinamente demais. O adeus foi antes de medo que de amor; não se despediu, fugiu. Ao mesmo tempo esse sobressalto era dramático e interessante; mas por que não conceder-lhe segunda entrevista? Enquanto ele fazia estas reflexões, Ângela pensava na impressão que lhe teria deixado e na mágoa que porventura lhe ficara da recusa de uma segunda e última entrevista.

Refletiu longo tempo e resolveu remediar o mal, se mal se podia aquilo chamar.

No dia seguinte, logo cedo, recebeu Alfredo um bilhetinho da namorada.

Era um protesto de amor, com uma explicação da fuga da véspera e uma promessa de outra entrevista na seguinte noite, depois da qual ele iria pedir-lhe oficialmente a mão.

Alfredo exultou.

Nesse dia a natureza pareceu-lhe melhor. O almoço foi excelente apesar de lhe terem dado um filet tão duro como sola e de estar o chá frio como água. O patrão nunca lhe pareceu mais amável. Todas as pessoas que encontrava tinham cara de excelentes amigos. Enfim, até o criado ganhou com os sentimentos alegres do amo: Alfredo deu-lhe uma boa molhadura pela habilidade com que lhe escovara as botas, que, entre parênteses, nem sequer levavam graxa.

Verificou-se a entrevista sem nenhum incidente notável. Houve os costumados protestos:

- Amo-te muito!

- E eu!

- És um anjo!

- Seremos felizes.

- Deus nos ouça!

- Há de ouvir-nos.

Estas e outras palavras foram o estribilho da entrevista que durou apenas meia hora.

Nessa ocasião Alfredo desenvolveu o seu sistema de vida, a maneira por que ele encarava o casamento, os sonhos de amor que haviam realizar, e mil outros artigos de um programa de namorado, que a moça ouviu e aplaudiu.

Alfredo despediu-se contente e feliz.

A noite que passou foi a mais deliciosa de todas. O sonho que ele procurara durante tanto tempo ia enfim realizar-se; amava a uma mulher como ele a queria e imaginava. Nenhum obstáculo se oferecia à sua ventura na terra.

No outro dia de manhã, entrando no hotel, encontrou o amigo Tibúrcio; e referiu-lhe tudo.

O confidente felicitou o namorado pelo triunfo que alcançara e deu-lhe logo um aperto de mão, não podendo dar-lhe, como quisera, um abraço.

- Se soubesses como vou ser feliz!

- Sei.

- Que mulher! Que anjo!

- Sim! É bonita.

- Não é só bonita. Bonitas há muitas. Mas a alma, a alma que ela tem, a maneira de sentir, tudo isso e mais, eis o que faz uma criatura superior.

- Quando será o casamento?

- Ela o dirá.

- Há de ser breve.

- Dentro de três a quatro meses.

Aqui fez Alfredo um novo hino em louvor das qualidades eminentes e raras da noiva e pela centésima vez defendeu a vida romanesca e ideal. Tibúrcio observou gracejando que era-lhe necessário primeiro suprimir o bife que estava comendo, observação que Alfredo teve a franqueza de achar descabida e um pouco tola.

A conversa porém não teve incidente desagradável e os dois amigos separaram-se como dantes, não sem que o noivo agradecesse ao confidente a animação que lhe dera nos piores dias do seu amor.

- Enfim, quando a vais pedir?

- Amanhã.

- Coragem!

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A-