Conto

Almas Agradecidas

1871

III

Um dia de manhã leu Oliveira, ainda na cama, a notícia da demissão de Magalhães, impressa no Jornal do Commercio. Grande foi a sua mágoa, mas ainda maior que a mágoa foi a raiva que esta notícia lhe causou. Demitir Magalhães! Oliveira mal podia compreender este ato do ministro. O ministro era necessariamente tolo ou tratante.

Havia patronato naquilo. Não seria pagamento a algum eleitor solícito?

Estas e outras conjecturas preocuparam o advogado até à hora do almoço. Almoçou pouco. O estômago acompanhava a dor do coração.

Magalhães devia ir neste dia ao escritório de Oliveira. Com que ansiedade esperou este a hora marcada! Esteve a ponto de faltar a um depoimento de testemunhas. Mas a hora chegou e Magalhães não apareceu! Oliveira estava sobre brasas. Qual a razão da falta? Não atinava com ela.

Eram quatro horas quando saiu do escritório, e sua resolução imediata foi meter-se num tilbury e seguir para a Glória.

Assim o fez.

Quando lá chegou, estava Magalhães lendo um romance. Não parecia abatido pelo golpe ministerial. Todavia não estava alegre. Fechou o livro lentamente e abraçou o amigo.

Oliveira não podia conter a sua cólera.

- Lá vi hoje - disse ele - a notícia da tua demissão. É uma patifaria sem nome...

- Por quê?

- Ainda o perguntas?

- Sim; por quê? O ministro é senhor dos seus atos e responsável por eles; podia demitir-me e fê-lo.

- Mas fez mal - disse Oliveira.

Magalhães sorriu tristemente.

- Não podia deixar de o fazer - disse ele -; um ministro é muitas vezes um amanuense do destino. Quem me demitiu foi o destino, que só parece ocupar-se em me perturbar a vida e multiplicar todos os esforços. Que queres? Eu já estou acostumado, não resisto; dia virá em que estes golpes terão um termo. Dia virá em que eu possa vencer a má fortuna de uma vez para sempre. Tenho o remédio nas mãos.

- Deixa-te de tolices, Magalhães.

- Tolices?

- Mais que tolices; sê forte!

Magalhães abanou a cabeça.

- Não custa aconselhar fortaleza - murmurou ele -; mas quem tem sofrido como eu...

- Já não contas com os amigos?

- Os amigos não podem tudo.

- Muito obrigado! Eu te mostrarei se podem.

- Não te iludas, Oliveira; não te esforces a favor de um homem que a sorte condenou.

- Histórias!

- Sou um condenado.

- És um fracalhão.

- Acreditas que eu...

- Acredito que és um fracalhão, e que não pareces aquele mesmo Magalhães que sabe conservar o sangue frio em todas as ocasiões graves. Descansa, eu tirarei desforra brilhante. Antes de quinze dias estarás empregado.

- Não creias...

- Desafias-me?

- Não; bem conheço de que é capaz teu coração nobre e generoso... mas...

- Mas o quê?

- Receio que a má fortuna seja mais forte do que tu.

- Verás.

Oliveira deu um passo para a porta.

- Nada disso impede que venhas jantar comigo - disse ele voltando-se para Magalhães.

- Obrigado; já jantei.

- Anda ao menos comigo para ver se te distrais.

Magalhães recusou; mas Oliveira insistiu com tão boa vontade que não havia recusar.

Durante a noite seguinte, meditou Oliveira acerca do negócio de Magalhães. Tinha amigos importantes, os mesmos que forcejavam por lhe abrir carreira política. Oliveira pensou neles como os mais próprios para levar a cabo a obra de seus desejos. O grande caso para ele era empregar Magalhães, em cargo tal que despicasse da prepotência ministerial. O substantivo prepotência era a exata expressão de Oliveira.

Não lhe ocultaram os amigos que o caso não era fácil; mas prometeram que a dificuldade seria vencida. Não se dirigiram ao ministro da Guerra, mas a outro; Oliveira pôs em campo o recurso feminino. Duas senhoras de seu conhecimento foram em pessoa falar ao ministro e em favor do feliz candidato.

Não negou o digno membro do Poder Executivo a dificuldade de criar um lugar para dar ao pretendente. Seria cometer a injustiça de tirar o pão a empregados úteis ao país.

Instavam, porém, os padrinhos, audiências e cartas, pedidos de toda sorte; nada ficou por empregar em favor de Magalhães.

Depois de cinco dias de lutas e solicitações diárias, declarou o ministro que poderia dar um bom emprego a Magalhães na alfândega de Corumbá. Já era boa vontade da parte do ministro, mas os protetores de Magalhães recusaram a graça.

- O que se deseja de V. Exa. - disse um deles - é que o nosso afilhado seja empregado aqui mesmo na Corte. Vai nisso uma questão de honra, e uma questão de comodidade.

Tinha boa vontade o ministro, e entrou a cogitar no meio de acomodar o pretendente. Havia, em uma das repartições a seu cargo, um empregado que durante o ano faltava muitas vezes ao ponto, e na última peleja eleitoral votara contra o ministro. Caiu-lhe uma demissão em casa, e para evitar empenhos mais fortes, no mesmo dia em que apareceu a demissão do empregado vadio, apareceu a nomeação de Magalhães.

Foi o próprio Oliveira que levou a Magalhães o desejado decreto.

- Dá-me cá um abraço - disse ele - e reza aí um mea culpa. Venci o destino. Estás nomeado.

- Quê! Será possível?

- Aqui tens o decreto!

Magalhães caiu nos braços de Oliveira.

A gratidão de quem recebe um benefício é sempre menor que o prazer daquele que o faz. Magalhães exprimia todo seu reconhecimento pela dedicação e perseverança de Oliveira; mas a alegria de Oliveira não tinha limites. A explicação desta diferença está talvez neste fundo do egoísmo que há em todos nós.

Em todo caso, a amizade dos dous ex-colegas ganhou com isso maior solidez.

IV

O novo emprego de Magalhães era muito melhor que o primeiro em categoria e lucro.

De maneira que a demissão, longe de lhe ser um golpe funesto do destino, foi um lance de melhor fortuna.

Passou Magalhães a ter melhor casa e a alargar um pouco mais a bolsa, pois que a tinha agora mais farta que dantes; Oliveira observava esta mudança e regozijava-se com a ideia de que contribuíra para ela.

A vida de ambos continuaria por este teor, plácida e indiferente, se um acontecimento não a viesse perturbar de repente.

Um dia achou Magalhães que Oliveira parecia preocupado. Perguntou-lhe francamente o que era.

- Que há de ser? - disse Oliveira -. Eu sou um miserável nessas cousas de amores; estou apaixonado.

- Queres que te diga uma cousa?

- O quê?

- Acho que fazes mal em diluir o teu coração com essas mulheres.

- Que mulheres?

- Essas.

- Não me compreendes, Magalhães; a minha atual paixão é séria; amo uma menina honesta.

- Que mágoas então são essas? Casa-te com ela.

- Esse é o ponto. Creio que ela não me ama.

- Ah!

Houve um silêncio.

- Mas não te resta esperança nenhuma? - perguntou Magalhães.

- Não posso dizer isso; não penso que ela seja sempre esquiva ao meu sentimento; mas por ora nada há entre nós.

Magalhães entrou a rir.

- Pareces-me caloiro, homem - disse ele -. Quantos anos tem ela?

- Dezessete.

- A idade da inocência; suspiras em silêncio e queres que ela te adivinhe. Nunca chegarás ao cabo. Tem-se comparado o amor à guerra. Assim é. No amor, querem-se atos de bravura como na guerra. Avança afoutamente e vencerás.

Oliveira ouvia estas palavras com a atenção de um homem sem iniciativa, a quem todo conselho serve. Confiava no juízo de Magalhães e o parecer dele era razoável.

- Parece-te então que eu devo expor-me?

- Sem dúvida.

O advogado referiu depois todas as circunstâncias do seu encontro com a moça em questão. Pertencia a uma família com quem esteve em casa de terceiro; o pai era um excelente homem, que o convidou a frequentar sua casa, e a mãe, uma excelente senhora, que ratificou o convite do marido. Oliveira não tinha ido lá depois disso, porque, segundo imaginava, a moça não correspondia à sua afeição.

- És um tolo - disse Magalhães quando o amigo acabou a narração -. Vês a rapariga num baile, ficas gostando dela, e, só porque ela não te caiu logo nos braços, desistes de lhe frequentar a casa. Oliveira, tem juízo: vai à casa dela, e dir-me-ás daqui a pouco tempo se te não aproveita o conselho. Queres casar, não?

- Oh! Podias pôr em dúvida?...

- Não; é uma pergunta. Não é casamento romântico?

- Que queres dizer com isso?

- Ela é rica?

Oliveira franziu a testa.

- Não te zangues - disse Magalhães -. Eu não sou nenhum espírito rasteiro; também conheço as delicadezas do coração. Nada vale mais que um amor verdadeiro e desinteressado. Não se me há de censurar porém que eu procure ver o lado prático das cousas; um coração de ouro vale muito; mas um coração de ouro com ouro vale mais.

- Cecília é rica.

- Pois tanto melhor!

- Afianço-te porém que essa consideração...

- Não precisas afiançar nada; eu bem sei o que vales - disse Magalhães apertando as mãos de Oliveira -. Anda, meu amigo, não te detenho; procura a tua felicidade.

Animado por estes conselhos, tratou Oliveira de sondar o terreno para declarar a sua paixão. Omiti de propósito a descrição de Cecília feita por Oliveira ao seu amigo Magalhães. Não desejava exagerar aos olhos dos leitores a beleza da moça, que a um namorado parece sempre maior do que realmente é. Mas Cecília era realmente formosa. Era uma beleza, flor em toda a extensão da palavra. Todas as forças e fulgores da mocidade estavam nela, que apenas saía da adolescência e parecia anunciar longa e esplêndida juventude. Não era alta, mas também não era baixa. Era acima de meã. Era muito corada e viva; tinha uns olhos brilhantes e buliçosos, olhos de namorada ou namoradeira; era talvez um pouco afetada, mas deliciosa; tinha certas exclamações que lhe ficavam bem nos seus lábios finos e úmidos.

Oliveira não viu logo todas estas cousas na noite em que lhe falou; mas não tardou que ela se lhe revelasse assim, desde que começou a frequentar a casa dela.

Nisto era Cecília ainda um pouco criança; não sabia dissimular, nem era difícil captar-lhe a confiança. Mas, através das aparências de frivolidade e volubilidade, descobria-lhe Oliveira sólidas qualidades do coração. O contato redobrou o seu amor. No fim de um mês, Oliveira parecia perdido por ela.

Magalhães continuava a ser o conselheiro de Oliveira e o seu único confidente. Um dia, pediu-lhe o namorado que fosse com ele à casa de Cecília.

- Tenho medo - disse Magalhães.

- Por quê?

- Sou capaz de precipitar tudo, e isso não sei se será conveniente antes de conhecer bem o terreno. Em qualquer caso, não é mau que eu vá examinar por mim mesmo as cousas. Irei quando quiseres.

- Amanhã?

- Seja amanhã.

No dia seguinte, Oliveira apresentou Magalhães em casa do comendador Vasconcelos.

- É o meu melhor amigo - disse Oliveira.

Na casa de Vasconcelos já estimavam o advogado; esta apresentação bastava para recomendar Magalhães.

V

O comendador Vasconcelos era um velho folgazão. Estouvado na mocidade, não o era menos na velhice. O estouvamento na velhice é, por via de regra, um senão; todavia, o estouvamento de Vasconcelos tinha um toque peculiar, um caráter todo seu, por modo que era impossível compreender aquele velho sem aquele estouvamento.

Contava já seus cinquenta e oito anos, e andaria lépido como um rapaz de vinte anos, se não fosse uma volumosa barriga que, desde os quarenta anos, lhe começara a crescer com grave desdouro das suas graças físicas, que as tinha, e sem as quais era duvidoso que a Sra. D. Mariana houvesse casado com ele.

Dona Mariana, antes de casar, professava um princípio seu: o casamento é um estado vitalício; cumpre não precipitar a escolha do noivo. Pelo quê, rejeitou três pretendentes que, apesar de suas boas qualidades, tinham um defeito físico importante: não eram bonitos. Vasconcelos alcançou o seu Austerlitz onde os outros haviam achado Waterloo.

Salvante a barriga, Vasconcelos era ainda um belo velho, uma ruína magnífica. Não tinha paixões políticas: votara alternadamente com os conservadores e os liberais para contentar os amigos que tinha em ambos os partidos. Conciliava as opiniões sem arriscar as amizades.

Quando o acusavam deste ceticismo político, respondia com uma frase que, se não discriminava as suas opiniões, abonava o seu patriotismo:

- Somos todos brasileiros.

Quadrava o gênio de Magalhães com o de Vasconcelos. A intimidade não tardou muito. Já sabemos que o amigo de Oliveira tinha a grande qualidade de se fazer querido com pouco trabalho. Vasconcelos morria por ele; achava-lhe imensa graça e sólido juízo. Dona Mariana chamava-lhe a alegria da casa; Cecília não tinha mais condescendente conversador.

Para os fins de Oliveira era excelente.

Não se descuidou Magalhães de sondar o terreno, a ver se podia animar o amigo. Achou o terreno excelente. Falou uma vez à moça a respeito do amigo e ouviu-lhe palavras de animadora esperança.

- Parece-me ser - disse ela - um excelente coração.

- Afirmo que o é - disse Magalhães -; conheço-o há muito tempo.

Quando Oliveira soube destas palavras, que não eram muita cousa, ficou muito animado.

- Creio que posso ter esperanças - disse ele.

- Nunca te disse outra cousa - respondeu Magalhães.

Magalhães nem sempre podia servir aos interesses do amigo, porque Vasconcelos, a quem caíra em graça, confiscava-o horas inteiras, ou palestrando, ou jogando o gamão.

Um dia Oliveira perguntou ao amigo se era conveniente arriscar uma carta.

- Ainda não, deixa-me preparar a cousa.

Oliveira acedeu.

A quem ler estas páginas muito por alto, parecerá inverossímil da parte de Oliveira semelhante necessidade de um cicerone.

Não é.

Oliveira nenhuma demonstração dera até ali à moça, que se conservava ignorante do que se passava dentro dele; e, se assim praticava, era por um excesso de timidez, fruto de suas proezas com as mulheres de outra classe.

Nada intimida mais a um conquistador de mulheres fáceis do que a ignorância e a inocência de uma donzela de dezessete anos.

Acresce que, se Magalhães era de opinião que ele não se demorasse em expor os seus sentimentos, já agora pensava que era melhor não arriscar golpe sem certeza do resultado.

A dedicação de Magalhães também parecerá condescendente aos espíritos severos. Mas a que se não expõe a verdadeira amizade?

Na primeira ocasião que se lhe deparou, tratou Magalhães de perscrutar o coração da moça.

Era de noite; havia gente em casa. Oliveira estava ausente. Magalhães conversava com Cecília a respeito de um chapéu com que uma senhora idosa entrara na sala.

Magalhães fazia a respeito do chapéu mil conjecturas burlescas.

- Aquele chapéu - dizia ele - parece-me um ressuscitado. Houve naturalmente alguma epidemia de chapéus em que morreu aquele acompanhado de outros seus irmãos. Aquele ressuscitou, para vir dizer a este mundo o que é o paraíso dos chapéus.

Cecília reprimia uma risada.

Magalhães continuava:

- Eu, se fosse aquele chapéu, pedia uma pensão como inválido e como raridade.

Isto era mais burlesco que picante, mais estúrdio que engraçado; todavia, fazia rir Cecília. Repentinamente, Magalhães ficou sério e consultou o relógio.

- Já se vai embora? - perguntou a moça.

- Não, senhora - disse Magalhães.

- Guarde então o relógio.

- Admira-me que Oliveira ainda não viesse.

- Virá mais tarde. Os senhores são muito amigos?

- Muito. Conhecemo-nos desde crianças. É uma bela alma.

Houve um silêncio.

Magalhães cravou os olhos na moça, que olhava para o chão, e disse:

- Feliz aquela que o possuir.

A moça não revelou a menor impressão ao ouvir estas palavras de Magalhães. Ele repetiu a frase, e ela perguntou se não seriam horas de tomar chá.

Outro silêncio.

- Já amou, D. Cecília? - perguntou Magalhães.

- Que pergunta é essa?

- É uma curiosidade.

- Nunca amei.

- Por quê?

- Sou muito criança.

- Criança!

Outro silêncio.

- Conheço alguém que a ama muito.

Cecília estremeceu e ficou muito corada; não respondeu nem se levantou.

Para sair porém da situação em que as palavras de Magalhães a deixava, disse rindo:

- Essa pessoa... quem é?

- Quer saber o nome?

- Quero. É seu amigo.

- É.

- Diga o nome.

Outro silêncio.

- Promete não ficar zangada comigo?

- Prometo.

- Sou eu.

Cecília esperava ouvir outra cousa; esperava ouvir o nome de Oliveira. Qualquer que fosse a sua inocência, tinha percebido naqueles últimos dias que o rapaz tinha queda por ela. Da parte de Magalhães não esperava semelhante declaração; todavia, o seu espanto não foi de cólera, apenas surpresa.

A verdade é que ela não amava nenhum deles.

Não tendo a moça respondido logo, Magalhães disse com um sorriso benévolo:

- Já sei que ama outro.

- Que outro?

- Oliveira.

- Não.

Era a primeira vez que Magalhães apresentava um aspecto grave; penalizada com a ideia de que lhe houvesse com o silêncio causado alguma tristeza, que ela adivinhava, posto que não sentisse, Cecília disse ao fim de alguns minutos:

- O senhor está brincando comigo.

- Brincando! - disse Magalhães -. Tudo quanto quiser, menos isso; não se brinca com o amor ou o sofrimento. Já lhe disse que a amo; responda-me francamente se posso nutrir alguma esperança.

A moça não respondia.

- Não poderei viver ao pé da senhora sem uma esperança, embora remota.

- O papá é quem decide de mim - disse ela desviando a conversa.

- Pensa que eu sou desses corações que se contentam com o consentimento paterno? O que eu desejo possuir primeiro é o seu coração. Diga-me: posso esperar essa fortuna?

- Talvez - murmurou a menina, levantando-se envergonhada dessa singela palavra.

VI

Era a primeira declaração que Cecília ouvia da boca de um homem. Não estava preparada para ela. Tudo o que ouvira lhe causara um inexplicável alvoroço.

Posto que não amasse nenhum dos dous, apreciava ambos os rapazes, e não seria difícil que cedesse ao pedido de um deles e viesse a amá-lo apaixonadamente.

Dos dous rapazes, o que mais depressa conseguiria vencer, dado o caso que se declarassem ao mesmo tempo, era sem dúvida Magalhães, cujo espírito galhofeiro e presença insinuante devia influir mais no espírito da moça.

Minutos depois da cena narrada no capítulo anterior, já os olhos de Cecília procuravam os de Magalhães, mas rapidamente, sem se demorar neles; todos os sintomas de um coração que não se demorará em ceder.

Magalhães tinha a vantagem de conservar todo o sangue frio no meio da situação que se lhe apresentava, e isso era excelente para não descobrir aos olhos estranhos o segredo que ele tinha interesse em conservar.

Pouco depois entrou Oliveira. Magalhães deu-se pressa em o chamar de parte.

- Que há? - perguntou Oliveira.

- Boas notícias.

- Falaste-lhe?

- Positivamente não; mas encaminhei o negócio de maneira que talvez em poucos dias tenha a tua situação mudado completamente.

- Mas que houve?

- Falei-lhe de amores; ela pareceu indiferente a essas ideias; disse-lhe então gracejando que a amava...

- Tu?

- Sim. De que te admiras?

- E que disse ela?

- Riu-se. Então perguntei-lhe velhacamente se amava alguém. E ela a isto respondeu que não, mas por modo que me parecia uma afirmativa. Deixa o caso por minha conta. Amanhã desfaço a meada; digo-lhe que eu estava brincando... Mas paremos aqui, que aí vem o comendador.

Efetivamente Vasconcelos chegara à janela onde os dous estavam. Uma das manias de Vasconcelos era comentar durante o dia todas as notícias que os jornais publicavam de manhã. Os jornais daquele dia falavam de um casal encontrado morto num quarto da casa em que residia. Vasconcelos desejava saber se os dous amigos optavam pelo suicídio, circunstância esta que o levaria a adotar a hipótese do assassinato.

Foi esta conversa uma completa diversão ao assunto amoroso, e Magalhães aproveitou o debate entre Oliveira e Vasconcelos para ir conversar com Cecília.

Falaram de cousas indiferentes, mas Cecília estava menos expansiva; Magalhães supôs a princípio que fosse um sintoma de esquivança; não era. Bem o notou ele quando, ao sair, Cecília correspondeu energicamente ao seu apertado aperto de mão.

- Pensas que serei feliz, Magalhães? - perguntou Oliveira apenas se achavam na rua.

- Penso.

- Não imaginas que dia passei hoje.

- Não hei de imaginar!

- Olha, nunca pensei que esta paixão pudesse dominar tanto a minha vida.

Magalhães animou o rapaz, que o convidou a cear, não porque o amor lhe deixasse largo campo às exigências do estômago, senão porque havia jantado pouco.

Eu peço perdão aos meus leitores, se entro nestas explicações a respeito da comida.

Quer-se um herói romântico, acima das necessidades vulgares da vida humana; em vão posso deixar de as mencionar, não por sistema, mas por ser fiel à história que estou contando.

A ceia foi alegre, porque Magalhães e a tristeza eram incompatíveis. Oliveira apesar de tudo comeu pouco, Magalhães, largamente. Entendia que lhe cumpria pagar a ceia; mas o amigo não consentiu nisso.

- Olha, Magalhães - disse Oliveira ao despedir-se dele -. A minha felicidade está nas tuas mãos; és capaz de dar conta dela?

- Não se devem prometer cousas tais; o que eu te afirmo é que não pouparei esforços.

- E pensas que serei feliz?

- Quantas vezes queres que to diga?

- Adeus.

- Adeus.

No dia seguinte, Oliveira mandou dizer a Magalhães que estava um pouco incomodado. Magalhães foi visitá-lo.

Achou-o de cama.

- Estou com alguma febre - disse o advogado -; dize isto mesmo ao comendador, a quem eu prometi de ir lá hoje.

Magalhães cumpriu o pedido.

Era a ocasião de se manifestar a dedicação de Magalhães. Não faltou este moço a tão sagrado dever. Passava com Oliveira a tarde e as noites e só se separava dele para ir, às vezes, à casa de Vasconcelos, que era isso mesmo o que Oliveira lhe pedia.

- Fala-lhe sempre de mim - dizia Oliveira.

- Não faço outra cousa.

E assim era. Magalhães não cessava de dizer que vinha ou ia para casa de Oliveira, cuja doença ia tomando um aspecto grave.

"Que amigo!", murmurava consigo D. Mariana.

- O senhor é um bom coração - dizia Vasconcelos apertando as mãos de Magalhães.

- O senhor Oliveira deve querer-lhe muito - dizia Cecília.

- Como a um irmão.

A doença de Oliveira era grave; durante todo o tempo que durou, não se desmentiu nunca a dedicação de Magalhães.

Oliveira admirava-o. Via que o benefício que lhe fizera não caíra em má terra. Grande foi a sua alegria quando, ao começar a convalescença, Magalhães lhe pediu duzentos mil-réis, com promessa de os pagar no fim do mês.

- Quanto quiseres, meu amigo. Tira-os ali da secretária.

- Acredita que isto me vexa imensamente - disse Magalhães, metendo na algibeira duas notas de cem mil-réis-. Nunca te pedi dinheiro; agora menos que nunca devia pedir-to.

Oliveira compreendeu o pensamento do amigo.

- Não sejas tolo; a nossa bolsa é comum.

- Oxalá que esse belo princípio possa ser realizado literalmente - disse Magalhães rindo.

Oliveira não lhe falou nesse dia a respeito de Cecília. Foi o próprio Magalhães que encetou a respeito dela uma conversa.

- Queres ouvir uma cousa? - disse ele -. Apenas saíres, manda-lhe uma carta.

- Por quê? Crês que...

- Creio que é a hora do golpe.

- Eu só para a semana poderei sair.

- Não importa, virá a tempo.

Para compreender bem a situação singular em que se achavam estes personagens todos, é mister transcrever aqui as palavras com que, nessa mesma noite, se despediram Magalhães e Cecília à janela da casa desta:

- Até amanhã - disse Magalhães.

- Virás cedo?

- Venho às 8 horas.

- Não faltes.

- Queres que te jure?

- Não precisa; adeus.

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A-