Este conto foi originalmente publicado no Jornal das Famílias em março e abril de 1871 assinado por Machado de Assis. O texto da presente edição eletrônica foi cotejado com o da publicação original.
Capítulo primeiro
Havia representação no Ginásio. A peça da moda era então a célebre Dama das camélias. A casa estava cheia. No fim do quarto ato começou a chover um pouco; do meio do quinto ato em diante a chuva redobrou de violência.
Quando acabou o espetáculo cada família entrou no seu carro; as poucas que não tinham esperavam uma estiada, e, mediante os guarda-chuvas, lá saíram com as saias arregaçadas,
aos olhos dando,
O que às mãos cobiçosas vão negando.
Os homens abriam os seus guarda-chuvas; outros chamavam tilburies; e pouco a pouco se foi despejando o saguão, até que só ficaram dous rapazes, um dos quais abotoara até o pescoço o paletó, e esperava maior estiada para sair, porque além de não ter guarda-chuva, não via nenhum tilbury no horizonte.
O outro também abotoara o paletó, mas tinha guarda-chuva; não parecia entretanto disposto a abri-lo. Olhava de esguelha para o primeiro, que fumava tranquilamente um charuto.
Já o porteiro havia fechado as duas portas laterais e ia fazer o mesmo à porta central, quando o rapaz do guarda-chuva dirigiu ao outro estas palavras:
- Para que lado vai?
O interpelado compreendeu que o companheiro lhe ia oferecer abrigo e respondeu com palavras de agradecimento que morava na Glória.
- É muito longe - disse ele - para aceitar o abrigo que naturalmente me quer oferecer. Eu esperarei aqui um tilbury.
- Mas a porta vai fechar-se - observou o outro.
- Não importa, esperarei do lado de fora.
- Não é possível - insistiu o primeiro -; a chuva ainda está forte e pode aumentar mais. Não lhe ofereço abrigo até casa porque moro na Prainha, que é justamente do lado oposto; mas posso cobri-lo até ao Rossio, onde encontraremos um tilbury.
- É verdade - respondeu o rapaz que não tinha guarda-chuva -; não me havia ocorrido isto, aceito com prazer.
Saíram os dous rapazes e foram até ao Rossio. Nem sombra de tilbury ou caleça.
- Não admira - disse o rapaz do guarda-chuva -; foram todos com gente do teatro. Daqui a pouco haverá algum de volta...
- Mas eu não quisera dar-lhe o incômodo de o reter mais tempo aqui à chuva.
- Cinco ou dez minutos talvez; esperaremos.
A chuva veio contrariar estes bons desejos do rapaz, caindo com furor. Mas o desejo de servir tem mil maneiras de se manifestar. O rapaz do guarda-chuva propôs um meio excelente de escapar à chuva e esperar condução: era ir tomar chá ao hotel que mais à mão lhes ficasse. O convite não era mau; tinha só o inconveniente de vir de um desconhecido. Antes de lhe responder, o rapaz sem guarda-chuva deitou um rápido olhar ao seu companheiro, espécie de exame prévio da condição social da pessoa. Parece que a achou boa, porque aceitou o convite.
- É levar muito longe a sua bondade - disse ele -, mas eu não posso deixar de abusar dela; a noite está inclemente.
- Eu também costumo esquecer o guarda-chuva, e amanhã estarei nas suas mesmas circunstâncias.
Foram para o hotel e daí a pouco tinham diante de si um excelente pedaço de rosbife frio, acompanhado de não menos excelente chá.
- Há de desculpar a minha curiosidade - disse o rapaz sem guarda-chuva -; mas eu desejaria saber a quem devo a obsequiosidade com que sou tratado há vinte minutos.
- Não somos inteiramente desconhecidos - respondeu o outro -; a sua memória é que é menos conservadora do que a minha.
- Donde me conhece?
- Do colégio. Andamos juntos no colégio Rosa.
-Andei lá, é verdade, mas...
- Não se lembra do Oliveira? Aquele que trocava as réguas por laranjas? Aquele que desenhava com giz o retrato do mestre nas costas dos outros meninos?
- Que me diz? É o senhor?
- De carne e osso; eu mesmo. Acha-me mudado? Não?
- Oh! Muito!
- Não admira; eu era naquele tempo uma criança rechonchuda e vermelha; hoje, como vê, estou quase tão magro como Dom Quixote; e não foram trabalhos, porque eu não os tenho tido; nem desgostos, que eu ainda não os experimentei. O senhor porém é que não mudou; se não fosse esse pequeno bigode, pareceria o mesmo daquele bom tempo.
- E todavia não me hão faltado desgostos - acudiu o outro -; minha vida tem sido atribulada. A natureza tem destas cousas.
- Casou-se?
- Não; e o senhor?
- Também não.
A pouco e pouco começaram as confidências pessoais; cada um narrou aquilo que podia narrar, por maneira que ao fim da ceia pareciam tão íntimos como no tempo do colégio.
Sabemos, destas revelações mútuas, que Oliveira era bacharel em direito, e começava a advogar com pouco sucesso. Herdara alguma cousa da avó, última parenta que conservara até então, tendo-lhe morrido os pais antes de entrar na adolescência. Estava com certo desejo de entrar na vida política e contava com a proteção de alguns amigos de seu pai, para ser eleito deputado à Assembleia Provincial Fluminense.
Magalhães era o nome do outro; não herdara de seus pais dinheiro, nem amigos políticos. Aos 16 anos, achou-se só no mundo; exercera vários empregos de caráter particular, até que conseguira obter uma nomeação para o Arsenal de Guerra, onde estava atualmente. Confessou que esteve a ponto de enriquecer casando com uma viúva rica; mas não revelou as causas que lhe impediram essa mudança de fortuna.
A chuva cessara de todo. Já uma parte do céu se havia descoberto deixando aparecer o rosto da lua cheia, cujos raios pálidos e frios brincavam nas pedras e nos telhados úmidos.
Saíram os nossos dous amigos.
Magalhães declarou que iria a pé.
- Não chove mais - disse ele -; ou, pelo menos, nesta meia hora; vou a pé até à Glória.
- Pois bem - respondeu Oliveira -; já lhe disse o número da minha casa e do meu escritório; apareça lá algumas vezes; folgarei de reatar as nossas relações da meninice.
- Também eu; até breve.
Despediram-se na esquina da rua do Lavradio, e Oliveira enfiou pela de São Jorge. Ambos foram pensando um no outro.
"Parece ser um excelente rapaz este Magalhães", dizia o jovem advogado consigo; "no colégio, foi sempre um menino sério. Ainda o é agora, e até parece um pouco reservado, mas é natural porque sofreu."
II
Três dias depois apareceu Magalhães no escritório de Oliveira; falou na sala a um porteiro que lhe pediu o cartão.
- Não tenho cartão - respondeu Magalhães envergonhado -; esqueci-me de o trazer; diga-lhe que é o Magalhães.
- Queira esperar alguns minutos - tornou o porteiro -; ele está conversando com uma pessoa.
Magalhães assentou-se numa cadeira de braços, enquanto o porteiro assoava silenciosamente o nariz e tomava uma pitada de rapé, que lhe não ofereceu. Magalhães examinou detidamente as cadeiras, as estantes, os quadros de gravuras, os capachos e as escarradeiras. A sua curiosidade era minuciosa e sagaz; parecia estar avaliando o gosto ou a riqueza de seu ex-colega.
Minutos depois, ouviu-se um rumor de cadeiras, e não tardou que viesse da sala do fundo um velho alto e empertigado, vestido com certo apuro, a quem o porteiro fez largos cumprimentos até o patamar da escada.
Magalhães não esperou que o porteiro fosse avisar Oliveira; atravessou o corredor que separava as duas salas e foi ter com o amigo.
- Ora, viva! - disse este apenas o viu entrar -. Estimo que não lhe houvesse esquecido a promessa. Sente-se; chegou a casa com chuva?
- Começou a chuviscar quando eu me achava a dous passos da porta - respondeu Magalhães.
- Que horas são?
- Pouco mais de duas, creio eu.
- O meu relógio está parado - disse Oliveira, lançando o olhar, de esguelha, para o colete de Magalhães, que não tinha relógio -. Naturalmente, ninguém mais me procurará hoje; e ainda que venham, quero descansar.
Oliveira tocou a campainha apenas acabou de proferir estas palavras. Veio o porteiro.
- Se vier alguém - disse Oliveira -, não estou cá.
O porteiro inclinou-se e saiu.
- Estamos livres de importunos - disse o advogado, apenas o porteiro virou as costas.
Todas estas maneiras e palavras de simpatia e cordialidade foram angariando a confiança de Magalhães, que começou a parecer alegre e franco com o seu ex-colega.
Longa foi a conversa, que durou até às 4 horas da tarde. Às 5 jantava Oliveira; mas o outro jantava às 3, e, se o não disse, era talvez por deferência, se não fosse por cálculo. Um jantar copioso e escolhido não era melhor que o ramerrão culinário de Magalhães? Fosse uma ou outra cousa, Magalhães suportou a fome com admirável denodo. Eram 4 horas da tarde quando Oliveira deu acordo de si.
- Quatro horas! - exclamou ele, ouvindo as badaladas de um sino próximo -. Naturalmente, já você perdeu a hora do jantar.
- Assim é - respondeu Magalhães; eu costumo jantar às 3 horas. Não importa; adeus.
- Isso é que não; há de ir jantar comigo.
- Não; obrigado...
- Ande cá, jantaremos no hotel mais próximo, porque a minha casa é longe. Eu ando com ideia de mudar de casa; estou muito fora do centro da cidade. Vamos aqui ao Hotel de Europa.
Os vinhos eram bons; Magalhães gostava de vinhos bons. No meio do jantar, tinha-se-lhe desenvolvido completamente a língua. Oliveira fazia quanto podia para tirar ao amigo da infância toda espécie de acanhamento. Isso e o vinho deu excelente resultado.
Desta ocasião em diante foi que Oliveira começou a apreciar o ex-colega. Era Magalhães um rapaz de agudo espírito, boa observação, conversador ameno, um pouco lido em obras fúteis e correntes. Tinha além disso o dom de ser naturalmente insinuante. Com estas prendas juntas não era difícil, era antes facílimo angariar as boas graças de Oliveira, que, à sua extrema bondade, reunia uma natural confiança, ainda não diminuída pelos cálculos da vida madura. Demais, Magalhães tinha sido infeliz; esta circunstância era aos olhos de Oliveira um realce. Finalmente, o seu ex-colega já lhe confiara no trajeto do escritório ao hotel que não contava um amigo debaixo do sol. Oliveira queria ser esse amigo.
Qual importa mais à vida, ser Dom Quixote ou Sancho Pança? O ideal ou o prático? A generosidade ou a prudência? Oliveira não hesitava entre esses dous opostos papéis; sequer pensara neles. Estava no período do coração.
Apertaram-se os laços da amizade entre os dous colegas. Oliveira mudou-se para a cidade, o que deu azo a que os dous amigos se encontrassem mais vezes. A frequência veio a uni-los ainda mais.
Oliveira apresentou Magalhães a todos os seus amigos; levou-o à casa de alguns. A sua palavra afiançava o hóspede que dentro em pouco tempo captava as simpatias de todos.
Nisto era Magalhães superior a Oliveira. Não faltava ao advogado inteligência, nem maneiras, nem dom para se fazer estimado. Mas os dotes de Magalhães superavam os dele. A conversa de Magalhães era mais picante, mais variada, mais atraente. Há muito quem prefira a amizade de um homem sarcástico, e Magalhães tinha seus longes de sarcástico.
Não se magoava com isto Oliveira, antes parecia ter certa glória em ver que seu amigo obtinha por seus méritos a estima dos outros.
Facilmente acreditará o leitor que estes dous amigos se fizessem confidentes de todas as cousas, principalmente de cousas de amores. Nada esconderam a este respeito um ao outro, com a diferença de que Magalhães, não tendo amores atuais, confiou ao amigo apenas algumas proezas antigas, ao passo que Oliveira, a braços com algumas aventuras, não dissimulou nenhuma delas, e tudo contou a Magalhães.
E foi bem que o fizesse, porque Magalhães era homem de bom conselho, dava ao amigo pareceres sensatos, que ele ouvia e aceitava com grande proveito seu e para maior glória da recíproca amizade.
A dedicação de Magalhães ainda se manifestava por outro modo. Não era raro vê-lo desempenhar um papel de conciliador, auxiliar uma inocente mentira, ajudar o amigo em todas as dificuldades que amor depara aos seus alunos.