Conto

A Mulher Pálida

1881
Este conto foi originalmente publicado em A Estação em 15 e 31 de agosto, e 15 e 30 de setembro de 1881. O texto deste edição eletrônica foi cotejado com a publicação original.

Rangeu enfim o último degrau da escada ao peso do vasto corpo do major Bento. O major deteve-se um minuto, respirou à larga, como se acabasse de subir, não a escada do sobrinho, mas a de Jacó, e enfiou pelo corredor adiante.

A casa era na rua da Misericórdia, uma casa de sobrado cujo locatário sublocara três aposentos a estudantes. O aposento de Máximo era ao fundo, à esquerda, perto de uma janela que dava para a cozinha de uma casa da rua de Dom Manuel. Triste lugar, triste aposento, e tristíssimo habitante, a julgá-lo pelo rosto com que apareceu às pancadinhas do major. Este bateu, com efeito, e bateu duas vezes, sem impaciência nem sofreguidão. Logo que bateu a segunda vez, ouviu estalar dentro uma cama, e logo um ruído de chinelas no chão, depois um silêncio curto, enfim, moveu-se a chave e abriu-se a porta.

- Quem é? - ia dizendo a pessoa que abrira. E logo -: é o tio Bento.

A pessoa era um rapaz de vinte anos, magro, um pouco amarelo, não alto, nem elegante. Tinha os cabelos despenteados, vestia um chambre velho de ramagens, que foram vistosas no seu tempo, calçava umas chinelas de tapete: tudo asseado e tudo pobre. O aposento condizia com o habitante: era o alinho na miséria. Uma cama, uma pequena mesa, três cadeiras, um lavatório, alguns livros, dous baús, e pouco mais.

- Viva o Sr. Estudante - disse o major sentando-se na cadeira que o rapaz lhe oferecera.

- Vosmecê por aqui, é novidade - disse Máximo -. Vem a passeio ou negócio?

- Nem negócio nem passeio. Venho...

Hesitou; Máximo reparou que ele trazia uma polegada de fumo no chapéu de palha, um grande chapéu da roça donde era o major Bento. O major, como o sobrinho, eram de Iguaçu. Reparou nisso, e perguntou assustado se morrera alguma pessoa da família.

- Descanse - disse o major -, não morreu nenhum parente de sangue. Morreu teu padrinho.

O golpe foi leve. O padrinho de Máximo era um fazendeiro rico e avaro, que nunca jamais dera ao sobrinho um só presente, salvo um cacho de bananas, e ainda assim, porque ele se achava presente na ocasião de chegarem os carros. Tristemente avaro. Sobre avaro, misantropo; vivia consigo, sem parentes - nem amigos, nem eleições, nem festas, nem cousa nenhuma. Máximo não sentiu muita comoção à noticia do óbito. Chegou a proferir uma palavra de desdém.

- Vá feito - disse ele, no fim de algum tempo de silêncio -, a terra lhe seja leve, como a bolsa que me deixou.

- Ingrato!- bradou o major -. Fez-te seu herdeiro universal.

O major proferiu estas palavras estendendo os braços para amparar o sobrinho, na queda que lhe daria a comoção; mas, a seu pesar, viu o sobrinho alegre, ou pouco menos triste do que antes, mas sem nenhum delírio. Teve um sobressalto, é certo, e não disfarçou a satisfação da noticia. Pudera! Uma herança de seiscentos contos, pelo menos. Mas daí à vertigem, ao estontear que o major previa, a distância era enorme. Máximo puxou de uma cadeira e sentou-se defronte do tio.

- Não me diga isso! Deveras herdeiro?

- Vim de propósito dar-te a notícia. Causou espanto a muita gente; o Morais Bicudo, que fez tudo para empalmar-lhe a herança, ficou com uma cara de palmo e meio. Dizia-se muita cousa; uns, que a fortuna fìcava para o Morais, outros, que para o vigário, etc. Até se disse que uma das escravas seria a herdeira da maior parte. Histórias! Morreu o homem, abre-se o testamento, e lê-se a declaração de que você é o herdeiro universal.

Máximo ouviu contente. No mais recôndito da consciência dele insinuava-se esta reflexão - que a morte do coronel era uma cousa deliciosa, e que nenhuma outra notícia lhe podia ir mais direta e profunda ao coração.

- Vim dizer isto a você - continuou o major -, e trazer um recado de tua mãe.

- Que é?

- Simplesmente saber se você quer continuar a estudar ou se prefere tomar conta da fazenda.

- Que lhe parece?

- A mim nada; você é que decide.

Máximo refletiu um instante.

- Em todo o caso, não é sangria desatada - disse ele -; tenho tempo de escolher.

- Não, porque se você quiser estudar dá-me procuração, e não precisa sair daqui. Agora, se...

- Vosmecê volta hoje mesmo?

- Não, volto sábado.

- Pois amanhã resolveremos isto.

Levantou-se, atirou a cadeira ao lado, bradando que enfim ia tirar o pé do lodo; confessou que o padrinho era um bom homem, apesar de seco e misantropo, e a prova...

- Vivam os defuntos! - concluiu o estudante.

Foi a um pequeno espelho, mirou-se, concertou os cabelos com as mãos; depois deteve-se algum tempo a olhar o soalho. O tom sombrio do rosto dominou logo a alegria da ocasião; e, se o major fosse homem sagaz, poderia perceber-lhe nos lábios uma leve expressão de amargura. Mas o major nem era sagaz, nem olhava para ele; olhava para o fumo do chapéu, e concertava-o; depois despediu-se do estudante.

- Não - disse este -; vamos jantar juntos.

O major aceitou. Máximo vestiu-se depressa, e, enquanto se vestia, falava das cousas de Iguaçu e da família. Pela conversa sabemos que a família é pobre, sem influência nem esperança. A mãe do estudante, irmã do major, tinha um pequeno sítio, que mal lhe dava para comer. O major exercia um emprego subalterno, e nem sequer tinha o gosto de ser verdadeiramente major. Chamavam-lhe assim, porque dous anos antes, em 1854, disse-se que ele ia ser nomeado major da Guarda Nacional. Pura invenção, que muita gente acreditou realidade; e visto que lhe deram desde logo o título, repararam com ele o esquecimento do governo.

- Agora, juro-lhe que vosmecê há de ser major de verdade - dizia-lhe Máximo pondo na cabeça o chapéu de pêlo de lebre, depois de o escovar com muita minuciosidade.

- Homem, você quer que lhe diga? Isto de política já me não importa. Afinal, é tudo o mesmo...

- Mas há de ser major.

- Não digo que não, mas...

- Mas?

- Enfim, não digo que não.

Máximo abriu a porta e saíram. Ressoaram os passos de ambos no corredor mal alumiado. De um quarto ouviu-se uma cantarola, de outro, um monólogo, de outro, um tossir longo e cansado.

- É um asmático - disse o estudante ao tio, que punha o pé no primeiro degrau da escada para descer.

- Diabo de casa tão escura - disse ele.

- Arranjarei outra com luz e jardins - redarguiu o estudante.

E dando-lhe o braço, desceram à rua.

II

Naturalmente a leitora notou a impressão de tristeza do estudante, no meio da alegria que lhe trouxe o tio Bento. Não é provável que um herdeiro, na ocasião em que se lhe anuncia a herança, tenha outros sentimentos que não sejam de regozijo; daí uma conclusão da leitora - uma suspeita ao menos -, suspeita ou conclusão que a leitora terá formulado nestes termos:

- O Máximo padece do fígado.

Engano! O Máximo não padece do fígado; goza até uma saúde de ferro. A causa secreta da tristeza súbita do Máximo, por mais inverossímil que pareça, é esta: o rapaz amava uma galante moça de dezoito anos, moradora na rua dos Arcos, e amava sem ventura.

Desde dous meses fora apresentado em casa do Sr. Alcântara, à rua dos Arcos. Era o pai de Eulália, que é a moça em questão. O Sr. Alcântara não era rico, exercia um emprego mediano no Tesouro, e vivia com certa economia e discrição; era ainda casado e tinha só duas filhas, a Eulália, e outra, que não passava de sete anos. Era um bom homem, muito inteligente, que se afeiçoou desde logo ao Máximo, e que, se o consultassem, não diria outra cousa senão que o aceitava para genro.

Tal não era a opinião de Eulália. Gostava de conversar com ele - não muito -, ouvia-lhe as graças, porque ele era gracioso, tinha repentes felizes; mas só isso. No dia em que o nosso Máximo se atreveu a interrogar os olhos de Eulália, esta não lhe respondeu cousa nenhuma, antes supôs que fora engano seu. Da segunda vez não havia dúvida; era positivo que o rapaz gostava dela e a interrogava. Eulália não pode ter-se que não comentasse o gesto do rapaz, no dia seguinte, com umas primas.

- Ora vejam!

- Mas que tem? - aventurou uma das primas.

- Que tem? Não gosto dele; parece que é razão bastante. Realmente, há pessoas a quem não se pode dar um pouco de confiança. Só porque conversou um pouco comigo já pensa que é motivo para cair de namoro. Ora não vê!

Quando, no dia seguinte, Máximo chegou à casa do Sr. Alcântara, foi recebido com frieza; entendeu que não era correspondido, mas nem por isso desanimou. Sua opinião é que as mulheres não eram mais duras do que as pedras, e entretanto a persistência da água vencia as pedras. Além deste ponto de doutrina, havia uma razão mais forte: ele amava deveras. Cada dia vinha fortalecer a paixão do moço, a ponto de lhe parecer inadmissível outra cousa que não fosse o casamento, e próximo; não sabia como seria próximo o casamento de um estudante sem dinheiro com uma dama que o desdenhava; mas o desejo ocupa-se tão pouco das cousas impossíveis!

Eulália, honra lhe seja, tratou de desenganar as esperanças do estudante, por todos os modos, com o gesto e com a palavra; falava-lhe pouco, e às vezes mal. Não olhava para ele, ou olhava de relance, sem demora nem expressão. Não aplaudia, como outrora, os versos que ele ia ler em casa do pai, menos ainda lhe pedia que recitasse outros, como as primas; estas sempre se lembravam de um Devaneio, um Suspiro ao luar, Teus olhos, Ela, Minha vida por um olhar, e outros pecados de igual peso, que o leitor pode comprar hoje por seiscentos réis, em brochura, na rua de São José nº...., ou por trezentos réis, sem frontispício. Eulália ouvia todas as belas estrofes compostas especialmente para ela, como se fossem uma página de São Tomás de Aquino.

- Vou arriscar uma carta - disse um dia o rapaz, ao fechar a porta do quarto, da rua da Misericórdia.

Efetivamente entregou-lhe uma carta alguns dias depois, à saída, quando ela já não podia recusá-la. Saiu precipitadamente; Eulália ficou com o papel na mão, mas devolveu-lho no dia seguinte.

Apesar desta recusa e de todas as outras, Máximo conservava a esperança de triunfar enfim da resistência de Eulália, e não a conservava senão porque a paixão era verdadeira e forte, nutrida de si mesma, e irritada por um sentimento de amor próprio ofendido. O orgulho do rapaz sentia-se humilhado, e, para perdoar, exigia a completa obediência. Imagine-se, portanto, o que seriam as noites dele, no quartinho da rua da Misericórdia, após os desdéns de cada dia.

Na véspera do dia em que o major Bento veio de Iguaçu comunicar ao sobrinho a morte e a herança do padrinho, Máximo reuniu todas as forças e deu batalha campal. Vestiu nesse dia um paletó à moda, umas calças talhadas por mão de mestre, deu-se ao luxo de um cabeleireiro, retesou o princípio de um bigode mal espesso, coligiu nos olhos toda a soma da eletricidade que tinha no organismo, e foi para a rua dos Arcos. Um colega de ano, confidente dos primeiros dias do namoro, costumava a fazer do nome da rua uma triste aproximação histórica e militar.

- Quando sais tu da ponte d'Arcole?

Esta chufa sem graça nem misericórdia doía ao pobre sobrinho do major Bento, como se fosse uma punhalada, mas não o dizia, para não confessar tudo; apesar das primeiras confidências, Máximo era um solitário.

Foi; declarou-se formalmente, Eulália recusou formalmente, mas sem desdém, apenas fria. Máximo voltou para casa abatido e passou uma noite de todos os diabos. Há fortes razões para crer que não almoçou nesse dia, além de três ou quatro xícaras de café. Café e cigarros. Máximo fumou uma quantidade incrível de cigarros. Os vendedores de tabaco certamente contam com as paixões infelizes, as esperas de entrevistas, e outras hipóteses em que o cigarro é confidente obrigado.

Tal era, em resumo, a vida anterior de Máximo, e tal foi a causa da tristeza com que pôde resistir às alegrias de uma herança inesperada - e duas vezes inesperada, pois não contava com a morte, e menos ainda com o testamento do padrinho.

- Vivam os defuntos!

Esta exclamação, com que recebera a notícia do major Bento, não trazia o alvoroço próprio de um herdeiro; a nota era forçada demais.

O major Bento não soube nada daquela paixão secreta. Ao jantar, via-o de quando em quando ficar calado e sombrio, com os olhos fitos na mesa, a fazer bolas de miolo de pão.

- Tu tens alguma cousa, Máximo? - perguntava-lhe.

Máximo estremecia, e procurava sorrir um pouco.

- Não tenho nada.

- Estás assim... um pouco... pensativo...

- Ah! É a lição de amanhã.

- Homem, isto de estudos não deve ir ao ponto de fazer adoecer a gente. Livro faz a cara amarela. Você precisa de distrair-se, não ficar metido naquele buraco da rua da Misericórdia, sem ar nem luz, agarrado aos livros...

Máximo aproveitava estes sermões do tio, e voava outra vez à rua dos Arcos, isto é, às bolas de miolo de pão e aos olhos fitos na mesa. Num desses esquecimentos, e enquanto o tio despia uma costeleta de porco, Máximo disse em voz alta:

- Justo.

- O que é? - perguntou o major.

- Nada.

- Você está falando só, rapaz? Hum? Aqui há cousa. Hão de ver as italianas do teatro.

Máximo sorriu, e não explicou ao tio por que motivo lhe saíra aquela palavra da boca, uma palavra seca, nua, vaga, susceptível de mil aplicações. Era um juízo? Uma resolução?

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