Conto

A Mulher Pálida

1881
Este conto foi originalmente publicado em A Estação em 15 e 31 de agosto, e 15 e 30 de setembro de 1881. O texto deste edição eletrônica foi cotejado com a publicação original.

III

Máximo teve uma idéia singular: experimentar se Eulália, rebelde ao estudante pobre, não o seria ao herdeiro rico. Nessa mesma noite foi à rua dos Arcos. Ao entrar, disse-lhe o Sr. Alcântara:

- Chega a propósito; temos aqui umas moças que ainda não ouviram o Suspiro ao luar.

Máximo não se fez de rogado; era poeta; supunha-se grande poeta; em todo caso recitava bem, com certas inflexões langorosas, umas quedas da voz e uns olhos cheios de morte e de vida. Abotoou o paletó com uma intenção chateaubriânica, mas o paletó recusou-se a intenções estrangeiras e literárias. Era um prosaico paletó nacional, da rua do Hospício nº... A mão ao peito corrigiu um pouco a rebeldia do vestuário; e esta circunstância persuadiu a uma das moças de fora que o jovem estudante não era tão desprezível como lhe havia dito Eulália. E foi assim que os versos começaram a brotar-lhe da boca - a adejar-lhe, que é melhor verbo para o nosso caso.

- Bravo! Bravo! - diziam os ouvintes, a cada estrofe.

Depois do Suspiro ao luar, veio o Devaneio, obra nebulosa e deliciosa ao mesmo tempo, e ainda o Colo de neve, até que o Máximo anunciou uns versos inéditos, compostos de fresco, poucos minutos antes de sair de casa. Imaginem! Todos os ouvidos afiaram-se para tão gulosa especiaria literária. E quando ele anunciou que a nova poesia denominava-se Uma cabana e teu amor - houve um geral murmúrio de admiração. Máximo preparou-se; tornou a inserir a mão entre o colete e o paletó, e fitou os olhos em Eulália.

"Forte tolo!", disse a moça consigo.

Geralmente, quando uma mulher tem de um homem a idéia que Eulália acabava de formular - está prestes a mandá-lo embora de uma vez ou a adorá-lo em todo o resto da vida. Um moralista dizia que as mulheres são extremas: ou melhores ou piores do que os homens. Extremas são, e daí o meu conceito. A nossa Eulália estava no último fio da tolerância; um pouco mais, e o Máximo ia receber as derradeiras despedidas. Naquela noite mais do que nunca, pareceu-lhe insuportável o estudante. A insistência do olhar - ele, que era tímido -, o ar de soberania, certa consciência de si mesmo, que até então não mostrara, tudo o condenou de uma vez.

- Vamos, vamos - disseram os curiosos ao poeta.

- Uma cabana e teu amor - repetiu Máximo.

E começou a recitar os versos. Essa composição intencional dizia que ele, poeta, era pobre, muito pobre, mais pobre do que as aves do céu; mas que, à sombra de uma cabana, ao pé dela, seria o mais feliz e mais opulento homem do mundo. As últimas estrofes - juro que não as cito senão por ser fiel à narração -, as estrofes derradeiras eram assim:

Que me importa não tragas brilhantes,

Refulgindo no teu colo nu?

Tens nos olhos as jóias vibrantes,

E a mais nítida pérola és tu.

Pobre sou, pobre quero ajoelhado,

Como um cão amoroso, a teus pés,

Viver só de sentir-me adorado,

E adorar-te, meu anjo, que o és.

O efeito destes versos foi estrondoso. O Sr. Alcântara, que suava no Tesouro todos os dias para evitar a cabana e o almoço, um tanto parco, celebrado nos versos do estudante, aplaudiu entusiasticamente os desejos deste, notou a melodia do ritmo, a doçura da frase, etc.

- Oh! Muito bonito! Muito bonito! - exclamava ele, e repetia entusiasmado:

Pobre sou, pobre quero ajoelhado,
Como um cão amoroso a teus pés,

Amoroso a teus pés... Que mais? Amoroso a teus pés, e... Ah! Sim:

Viver só de sentir-me adorado,
E adorar-te, meu anjo, que o és!

Note-se - e este rasgo mostrará a força de caráter de Eulália -, note-se que Eulália achou os versos bonitos, e achá-los-ia deliciosos, se os pudesse ouvir com orelhas simpáticas. Achou-os bonitos, mas não os aplaudiu.

"Armou-se uma brincadeira", para usar a expressão do Sr. Alcântara, querendo dizer que se dançou um pouco. "Armemos uma brincadeira", bradara ele. Uma das moças foi para o piano, as outras e os rapazes dançaram. Máximo alcançou uma quadrilha de Eulália; no fim da terceira figura disse-lhe baixinho:

- Pobre sou, pobre quero ajoelhado...

- Quem é pobre não tem vícios - respondeu a moça rindo, com um pouco de ferocidade nos olhos e no coração.

Máximo enfiou. "Não me amará nunca", pensou ele. Ao chá, restabelecido do golpe, e fortemente mordido do despeito, lembrou-se de dar a ação definitiva, que era noticiar a herança. Tudo isso era tão infantil, tão adoudado, que a língua entorpeceu-se-lhe no melhor momento, e a notícia não lhe saiu da boca. Foi só então que ele pensou na singularidade duma notícia daquelas, em plena ceia de estranhos, depois de uma quadrilha e alguns versos. Esse plano, afagado durante a tarde e a noite, que lhe parecia um prodígio de habilidade, e talvez o fosse deveras, esse plano apareceu-lhe agora pela face obscura, e achou-o ridículo. Minto: achou-o ousado apenas. As visitas começaram a despedir-se, e ele foi obrigado a despedir-se também. Na rua, arrependeu-se, chamou-se covarde, tolo, maricas, todos os nomes feios que um caráter fraco dá a si mesmo, quando perde uma ação. No dia seguinte meteu-se a caminho para Iguaçu.

Seis ou sete semanas depois, tornado de Iguaçu, a notícia da herança era pública. A primeira pessoa que o visitou foi o Sr. Alcântara, e força é dizer que a pena com que lhe apareceu era sincera. Ele o aceitara ainda pobre; é que deveras o estimava.

- Agora continua os seus estudos, não é? - perguntou ele.

- Não sei - disse o rapaz -; pode ser que não.

- Como assim?

- Estou com idéias de ir estudar na Europa, na Alemanha, por exemplo; em todo o caso, não irei este ano. Estou moço, não preciso ganhar a vida, posso esperar.

O Sr. Alcântara deu a notícia à família. Um irmão de Eulália não se teve que não lançasse em rosto à irmã os seus desdéns, e sobretudo a crueldade com que os manifestara.

- Mas se não gosto dele, e agora? - dizia a moça.

E dizia isso arrebitando o nariz, e com um jeito de ombros, seco, frio, enfadado, amofinado.

- Ao menos, confesse que é um moço de talento - insistiu o irmão.

- Não digo que não.

- De muito talento.

- Creio que sim.

- Se é! Que bonitos versos que ele faz! E depois não é feio. Você dirá que o Máximo é um rapaz feio?

- Não, não digo.

Uma prima, casada, teve para Eulália os mesmos reparos. A essa confessou Eulália que o Máximo nunca se declarara deveras, embora lhe mandasse algumas cartas.

- Podia ser caçoada de estudante - disse ela.

- Não creio.

- Podia.

Eulália - e aqui começa a explicar-se o título deste conto -, Eulália era de um moreno pálido. Ou doença, ou melancolia, ou pó-de-arroz, começou a ficar mais pálida depois da herança do Iguaçu. De maneira que, quando o estudante lá voltou um mês depois, admirou-se de a ver, e de certa maneira sentiu-se mais ferido. A palidez de Eulália tinha-lhe dado uns trinta versos; porque ele, romântico acabado, do grupo clorótico, amava as mulheres pela falta de sangue e de carnes. Eulália realizara um sonho; ao voltar de Iguaçu o sonho era simplesmente divino.

Isto acabaria aqui mesmo, se Máximo não fosse, além de romântico, dotado de uma delicadeza e de um amor-próprio extraordinários. Essa era a outra feição principal dele, a que me dá esta novelita; porque se tal não fora... Mas eu não quero usurpar a ação do capítulo seguinte.

IV

"Quem é pobre não tem vícios." Esta frase ainda ressoava aos ouvidos de Máximo, quando já a pálida Eulália mostrava-se outra para com ele - outra cara, outras maneiras, e até outro coração. Agora, porém, era ele que desdenhava. Em vão a filha do Sr. Alcântara, para resgatar o tempo perdido e as justas mágoas, requebrava os olhos até onde eles podiam ir sem desdouro nem incômodo, sorria, fazia o diabo; mas, como não fazia a única ação necessária, que era apagar literalmente o passado, não adiantava uma linha; a situação era a mesma.

Máximo deixou de frequentar a casa algumas semanas depois da volta de Iguaçu, e Eulália voltou as esperanças para outro ponto menos nebuloso. Não nego que as noivas começaram a chover sobre o recente herdeiro, porque negaria a verdade conhecida por tal; não foi chuva, foi tempestade, foi um tufão de noivas, qual mais bela, qual mais prendada, qual mais disposta a fazê-lo o mais feliz dos homens. Um antigo companheiro da Escola de Medicina apresentou-o a uma irmã, realmente galante, D. Felismina. O nome é que era feio; mas que é um nome? What is a name? como diz a flor dos Capuletos.

- D. Felismina tem um defeito - disse Máximo a uma prima dela -, um defeito capital; D. Felismina não é pálida, muito pálida.

Esta palavra foi um convite às pálidas. Quem se sentia bastante pálida afiava os olhos contra o peito do ex-estudante, que em certo momento achou-se uma espécie de hospital de convalescentes. A que se seguiu logo foi uma D. Rosinha, criatura linda como os amores.

- Não podes negar que D. Rosinha é pálida - dizia-lhe um amigo.

- É verdade, mas não é ainda bem pálida, quero outra mais pálida.

Dona Amélia, com quem se encontrou um dia no Passeio Público, devia realizar o sonho ou o capricho de Máximo; era difícil ser mais pálida. Era filha de um médico, e uma das belezas do tempo. Máximo foi apresentado por um parente, e dentro de poucos dias frequentava a casa. Amélia apaixonou-se logo por ele, não era difícil - já não digo por ser abastado -, mas por ser realmente belo. Quanto ao rapaz, ninguém podia saber se ele deveras gostava da moça, ninguém lhe ouvia cousa nenhuma. Falava com ela, louvava-lhe os olhos, as mãos, a boca, as maneiras, e chegou a dizer que a achava muito pálida, e nada mais.

- Ande lá - disse-lhe enfim um amigo -, desta vez creio que encontraste a palidez mestra.

- Ainda não - tornou Máximo -; D. Amélia é pálida, mas eu procuro outra mulher mais pálida.

- Impossível.

- Não é impossível. Quem pode dizer que é impossível uma cousa ou outra? Não é impossível; ando atrás da mulher mais pálida do universo; estou moço, posso esperá-la.

Um médico, das relações do ex-estudante, começou a desconfiar que ele tivesse algum transtorno, perturbação, qualquer cousa que não fosse a integridade mental; mas, comunicando essa suspeita a alguém, achou a maior resistência em crer-lha.

- Qual doudo! - respondeu a pessoa -. Essa história de mulheres pálidas é ainda o despeito que lhe ficou da primeira, e um pouco de fantasia de poeta. Deixe passar mais uns meses, e vê-lo-emos coradinho como uma pitanga.

Passaram-se quatro meses; apareceu uma Justina, viúva, que tratou de apoderar-se logo do coração do rapaz, o que lhe custaria tanto menos, quanto que era talvez a criatura mais pálida do universo. Não só pálida de si mesma, como pálida também pelo contraste das roupas de luto. Máximo não encobriu a forte impressão que a dama lhe deixou. Era uma senhora de vinte e um a vinte e dous anos, alta, fina, de um talhe elegante e esbelto, e umas feições de gravura. Pálida, mas sobretudo pálida.

Ao fim de quinze dias, o Máximo frequentava a casa com uma pontualidade de alma ferida, os parentes de Justina trataram de escolher as prendas nupciais, os amigos de Máximo anunciaram o casamento próximo, as outras candidatas retiraram-se. No melhor da festa, quando se imaginava que ele ia pedi-la, Máximo afastou-se da casa. Um amigo lançou-lhe em rosto tão singular procedimento.

- Qual? - disse ele.

- Dar esperanças a uma senhora tão distinta...

- Não dei esperanças a ninguém.

- Mas enfim não podes negar que é bonita?

- Não.

- Que te ama?

- Não digo que não, mas...

- Creio que também gostas dela...

- Pode ser que sim.

- Pois então?

- Não é bem pálida; eu quero a mulher mais pálida do universo.

Como estes fatos se reproduzissem, a idéia de que Máximo estava doudo foi passando de um em um, e dentro em pouco era opinião. O tempo parecia confirmar a suspeita. A condição da palidez que ele exigia da noiva tornou-se pública. Sobre a causa da monomania disse-se que era Eulália, uma moça da rua dos Arcos, mas acrescentou-se que ele ficara assim porque o pai da moça recusara o seu consentimento, quando ele era pobre; e dizia-se mais que Eulália também estava douda. Lendas, lendas. A verdade é que nem por isso deixava de aparecer uma ou outra pretendente ao coração de Máximo; mas ele recusava-as todas, asseverando que a mais pálida ainda não havia aparecido.

Máximo padecia do coração. A moléstia agravou-se rapidamente; e foi então que duas ou três candidatas mais intrépidas resolveram-se a queimar todos os cartuchos para conquistar esse mesmo coração, embora doente, ou parce que... Mas, em vão! Máximo achou-as muito pálidas, mas ainda menos pálidas do que seria a mulher mais pálida do universo.

Vieram os parentes de Iguaçu; o tio major propôs uma viagem à Europa; ele porém recusou.

- Para mim - disse ele -, é claro que acharei a mulher mais pálida do mundo, mesmo sem sair do Rio de Janeiro.

Nas últimas semanas, uma vizinha dele, em Andaraí, moça tísica, e pálida como as tísicas, propôs-lhe rindo, de um riso triste, que se casassem, porque ele não acharia mulher mais pálida.

- Acho, acho; mas se não achar, caso com a senhora.

A vizinha morreu daí a duas semanas; Máximo levou-a ao cemitério.

Mês e meio depois, uma tarde, antes de jantar, estando o pobre rapaz a escrever uma carta para o interior, foi acometido de uma congestão pulmonar, e caiu. Antes de cair teve tempo de murmurar.

- Pálida... pálida...

Uns pensavam que ele se referia à morte, como a noiva mais pálida, que ia enfim desposar; outros acreditaram que eram saudades da dama tísica, outros, que de Eulália, etc. Alguns creem simplesmente que ele estava doudo; e esta opinião, posto que menos romântica, é talvez a mais verdadeira. Em todo caso, foi assim que ele morreu, pedindo uma pálida, e abraçando-se à pálida morte. Pallida mors, etc.

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