Capítulo primeiro
Não sei se lhes diga simplesmente que era de madrugada, ou se comece num tom mais poético: a aurora, com seus róseos dedos... A maneira simples é o que melhor me conviria a mim, ao leitor, aos banhistas que estão agora na praia do Flamengo - agora, isto é, no dia 7 de outubro de 1861, que é quando tem princípio este caso que lhes vou contar. Convinha-nos isto; mas há lá um certo velho, que me não leria, se eu me limitasse a dizer que vinha nascendo a madrugada, um velho que... Digamos quem era o velho.
Imaginem os leitores um sujeito gordo, não muito gordo - calvo, de óculos, tranquilo, tardo, meditativo. Tem sessenta anos: nasceu com o século. Traja asseadamente um vestuário da manhã; vê-se que é abastado ou exerce algum alto emprego na administração. Saúde de ferro. Disse já que era calvo; equivale a dizer que não usava cabeleira. Incidente sem valor, observará a leitora, que tem pressa. Ao que lhe replico que o incidente é grave, muito grave, extraordinariamente grave. A cabeleira devia ser o natural apêndice da cabeça do major Caldas, porque cabeleira traz ele no espírito, que também é calvo.
Calvo é o espírito. O major Caldas cultivou as letras, desde 1821 até 1840 com um ardor verdadeiramente deplorável. Era poeta; compunha versos com presteza, retumbantes, cheios de adjetivos, cada qual mais calvo do que ele tinha de ficar em 1861. A primeira poesia foi dedicada a não sei que outro poeta, e continha em gérmen todas as odes e glosas que ele havia de produzir. Não compreendeu nunca o major Caldas que se pudesse fazer outra coisa que não glosas e odes de toda a casta, pindáricas ou horacianas, e também idílios piscatórios, obras perfeitamente legítimas na aurora literária do major. Nunca para ele houve poesia que pudesse competir com a de um Dinis ou Pimentel Maldonado; era a sua cabeleira do espírito.
Ora, é certo que o major Caldas, se eu dissesse que era de madrugada, dar-me-ia um muxoxo ou franziria a testa com desdém. "Madrugada! Era de madrugada!", murmuraria ele. "Isto diz aí qualquer preta: ´nhanhã, era de madrugada...`. Os jornais não dizem de outro modo; mas numa novela..."
Vá pois! A aurora, com seus dedos cor-de-rosa, vinha rompendo as cortinas do oriente, quando Marcelina levantou a cortina da barraca. A porta da barraca olhava justamente para o oriente, de modo que não há inverossimilhança em lhes dizer que essas duas auroras se contemplaram por um minuto. Um poeta arcádico chegaria a insinuar que a aurora celeste enrubesceu de despeito e raiva. Seria porém levar a poesia muito longe.
Deixemos a do céu e venhamos à da terra. Lá está ela, à porta da barraca com as mãos cruzadas no peito, como quem tem frio; traja a roupa usual das banhistas, roupa que só dá elegância a quem já a tiver em subido grau. É o nosso caso.
Assim, à meia-luz da manhã nascente, não sei se poderíamos vê-la de modo claro. Não; é impossível. Quem lhe examinaria agora aqueles olhos úmidos, como as conchas da praia, aquela boca pequenina, que parece um beijo perpétuo? Vede, porém, o talhe, a curva amorosa das cadeiras, o trecho de perna que aparece entre a barra da calça de flanela e o tornozelo; digo o tornozelo e não o sapato porque Marcelina não calça sapatos de banho. Costume ou vaidade? Pode ser costume; se for vaidade é explicável porque o sapato esconderia e mal os pés mais graciosos de todo o Flamengo, um par de pés finos, esguios, ligeiros. A cabeça também não leva coifa; tem os cabelos atados em parte, em parte trançados - tudo desleixadamente, mas de um desleixo voluntário e casquilho.
Agora, que a luz está mais clara, podemos ver bem a expressão do rosto. É uma expressão singular de pomba e gato, de mimo e desconfiança. Há olhares dela que atraem, outros que distanciam - uns que inundam a gente, como um bálsamo, outros que penetram como uma lâmina. É desta última maneira que ela olha para um grupo de duas moças, que estão à porta de outra barraca, a falar com um sujeito.
- Lambisgoias! - murmura entre dentes.
- Que é? - pergunta o pai de Marcelina, o major Caldas, sentado ao pé da barraca, numa cadeira que o moleque lhe leva todas as manhãs.
- Que é o quê? - diz a moça.
- Tu falaste alguma coisa.
- Nada.
- Estás com frio?
- Algum.
- Pois olha, a manhã está quente.
- Onde está o José?
O José apareceu logo; era o moleque que a acompanhava ao mar. Aparecido o José, Marcelina caminhou para o mar, com um desgarro de moça bonita e superior. Da outra barraca tinham já saído as duas moças que lhe mereceram tão desdenhosa classificação; o rapaz que estava com elas também entrara no mar. Outras cabeças e bustos surgiram da água, como um grupo de delfins. Da praia alguns olhos, puramente curiosos, se estendiam aos banhistas ou cismavam puramente contemplando o espetáculo das ondas que se dobravam e desdobravam, ou - como diria o major Caldas - as convulsões de Anfitrite.
O major ficou sentado a ver a filha, com o Jornal do Commercio aberto sobre os joelhos; tinha já luz bastante para ler as notícias; mas não o fazia nunca antes de voltar a filha do banho. Isto por duas razões. Era a primeira a própria afeição de pai; apesar da confiança na destreza da filha, receava algum desastre. Era a segunda o gosto que lhe dava contemplar a graça e a habilidade com que Marcelina mergulhava, bracejava ou simplesmente boiava "como uma náiade", acrescentava ele se falava disso a algum amigo.
Acresce que o mar, naquela manhã, estava muito mais bravio que de costume; a ressaca era forte; os buracos da praia, mais fundos; o medo afastava vários banhistas habituais.
- Não te demores muito - disse o major, quando a filha entrou -; toma cuidado.
Marcelina era destemida; galgou a linha em que se dava a arrebentação, e surdiu fora muito naturalmente. O moleque, aliás bom nadador, não rematou a façanha com igual placidez; mas galgou também e foi surgir ao lado da sinhá-moça.
- Hoje o bicho não está bom - ponderou um banhista ao lado de Marcelina, um homem maduro, de suíças, ar aposentado.
- Parece que não - disse a moça -; mas para mim é o mesmo.
- O major continua a não gostar d'água salgada? - perguntou uma senhora.
- Diz que é militar de terra e não do mar - replicou Marcelina -, mas eu creio que papai o que quer é ler o Jornal à vontade.
- Podia vir lê-lo aqui - insinuou um rapaz de bigodes -, dando uma grande risada de aplauso a si mesmo.
Marcelina nem olhou para ele; mergulhou diante de uma onda, surdiu fora, com as mãos sacudiu os cabelos. O sol, que já então aparecera, alumiava-a nessa ocasião, ao passo que a onda, seguindo para a praia, deixava-lhe todo o busto fora de água. Foi assim que a viu, pela primeira vez, com os cabelos úmidos, e a flanela grudada ao busto - ao mais correto e virginal busto daquelas praias -, foi assim que pela primeira vez a viu o Bastinhos - o Luís Bastinhos -, que acabava de entrar no mar, para tomar o primeiro banho no Flamengo.
II
A ocasião é a menos própria para apresentar-lhes o Sr. Luís Bastinhos; a ocasião e o lugar. O vestuário então é impropriíssimo. Ao vê-lo agora, a meio-busto, nem se pode dizer que tenha vestuário de nenhuma espécie. Emerge-lhe a parte superior do corpo, boa musculatura, pele alva, mal coberta de alguma penugem. A cabeça é que não precisa dos arrebiques da civilização para dizer-se bonita. Não há cabeleireiro, nem óleo, nem pente, nem ferro que no-la ponham mais graciosa. Ao contrário, a expressão fisionômica de Luís Bastinhos acomoda-se melhor a esse desalinho agreste e marítimo. Talvez perca, quando se pentear. Quanto ao bigode, fino e curto, os pingos d`água que ora lhe escorrem não chegam a diminuí-lo; não chegam sequer a ver-se. O bigode persiste como dantes.
Não o viu Marcelina, ou não reparou nele. O Luís Bastinhos é que a viu, e mal pôde disfarçar a admiração. O major Caldas, se os observasse, era capaz de casá-los, só para ter o gosto de dizer que unia uma náiade a um tritão. Nesse momento a náiade repara que o tritão tem os olhos fitos nela, e mergulha, depois mergulha outra vez, nada e boia. Mas o tritão é teimoso, e não lhe tira os olhos de cima.
"Que importuno!", diz ela consigo.
- Olhem uma onda grande - brada um dos conhecidos de Marcelina.
Todos se puseram em guarda, a onda enrolou alguns, mas passou sem maior dano. Outra veio e foi recebida com um alarido alegre; enfim veio uma mais forte, e assustou algumas senhoras. Marcelina riu-se delas.
- Nada - dizia uma -; salvemos o pelo; o mar está ficando zangado.
- Medrosa! - acudiu Marcelina.
- Pois sim...
- Querem ver? - continuou a filha do major -. Vou mandar embora o moleque.
- Não faça isso, D. Marcelina - acudiu o banhista de ar aposentado.
- Não faço outra coisa. José, vai-te embora.
- Mas, nhanhã...
- Vai-te embora!
O José ainda esteve alguns segundos, sem saber o que fizesse; mas parece que, entre desagradar ao pai ou à filha, achou mais arriscado desagradar à filha, e caminhou para terra. Os outros banhistas tentaram persuadir à moça que devia vir também, mas era tempo baldado. Marcelina tinha a obstinação de um enfant gâté. Lembraram alguns que ela nadava como um peixe, e resistira muita vez ao mar.
- Mas o mar do Flamengo é o diabo - ponderou uma senhora.
Os banhistas pouco a pouco foram deixando o mar. Do lado de terra, o major Caldas, de pé, ouvia impaciente a explicação do moleque, sem saber se o devolveria à água ou se cumpriria a vontade da filha; limitou-se a soltar palavras de enfado.
- Santa Maria! - exclamou de repente o José.
- Que foi? - disse o major.
O José não lhe respondeu; atirou-se à água. O major olhou e não viu a filha. Efetivamente, a moça, vendo que no mar só ficava o desconhecido, nadou para terra, mas as ondas tinham-se sucedido com frequência e impetuosidade. No lugar da arrebentação foi envolvida por uma; nesse momento é que o moleque a viu.
- Minha filha! - bradou o major.
E corria desatinado pela areia, enquanto o moleque conscienciosamente buscava penetrar no mar. Mas era já empresa escabrosa; as ondas estavam altas, fortes e a arrebentação, terrível. Outros banhistas acudiram também a salvar a filha do major; mas a dificuldade era só uma para todos. Caldas ora implorava, ora ordenava ao moleque que lhe restituísse a filha. Enfim, José conseguiu entrar no mar. Mas já então lutava ali, junto ao funesto lugar, o desconhecido banhista que tanto aborrecera a filha do major. Este estremeceu de alegria, de esperança, quando viu que alguém forcejava por arrancar a moça da morte. Na verdade, o vulto de Marcelina apareceu nos braços do Luís Bastinhos; mas uma onda veio e os enrolou a ambos. Nova luta, novo esforço; e desta vez definitivo triunfo. Luís Bastinhos chegou à praia arrastando consigo a moça.
- Morta! - exclamou o pai correndo a vê-la.
Examinaram-na.
- Não, desmaiada, apenas.
Com efeito, Marcelina perdera os sentidos, mas não morrera. Deram-lhe os socorros médicos; ela voltou a si. O pai, singelamente alegre, apertou Luís Bastinhos ao coração.
- Devo-lhe tudo! - disse ele.
- A sua felicidade me paga de sobra - tornou o moço.
O major fitou-o alguns instantes; impressionara-o a resposta. Depois apertou-lhe a mão e ofereceu-lhe a casa. Luís Bastinhos retirou-se antes que Marcelina pudesse vê-lo.
III
Na verdade, se a leitora gosta de lances romanescos, aí fica um, com todo o valor das antigas novelas, e pode ser também que dos dramalhões antigos. Nada falta: o mar, o perigo, uma dama que se afoga, um desconhecido que a salva, um pai que passa da extrema aflição ao mais doce prazer da vida; eis aí com que marchar cerradamente a cinco atos maçudos e sangrentos, rematando tudo com a morte ou a loucura da heroína.
Não temos cá nem uma coisa nem outra. A nossa Marcelina não morreu nem morre; doida pode ser que já fosse, mas de uma doidice branda, a doidice das moças em flor. Ao menos pareceu que tinha alguma coisa disso, quando, naquele mesmo dia, soube que fora salva pelo desconhecido.
- Impossível! - exclamou.
- Por quê?
- Foi ele deveras?
- Pois então! Salvou-te com perigo da vida própria; houve um momento, em que eu cuidei que ambos vocês morriam enrolados na onda.
- É a coisa mais natural do mundo - interveio a mãe -; e não sei de que te espantas...
Marcelina não podia, na verdade, explicar a causa do espanto; ela mesma não a sabia. Custava-lhe a crer que Luís Bastinhos a tivesse salvo, e isso só porque "embirrara com ele". Ao mesmo tempo, pesava-lhe o obséquio. Não quisera ter morrido; mas era melhor que outro a houvesse arrancado ao mar, não aquele homem, que afinal era um grande metediço. Marcelina esteve inclinada a crer que Luís Bastinhos encomendara o desastre para ter ocasião de a servir.
Dois dias depois, Marcelina voltou ao mar, já pacificado dos seus furores de encomenda. Ao olhar para ele, teve uns ímpetos de Xerxes; fá-lo-ia castigar, se dispusesse de um bom e grande vergalho. Não tendo o vergalho, preferiu flagelá-lo com os seus próprios braços, e nadou nesse dia mais tempo e mais fora do que era costume, não obstante as recomendações do major. Levava naquilo um pouco, ou antes, muito de amor-próprio: o desastre envergonhara-a.
O Luís Bastinhos, que já lá estava no mar, travou conversação com a filha do major. Era a segunda vez que se viam, e a primeira que se falavam.
- Soube que foi o senhor quem me ajudou... a levantar anteontem - disse Marcelina.
O Luís Bastinhos sorriu mentalmente; e ia responder por uma simples afirmativa, quando Marcelina continuou:
- Ajudou, não sei; eu creio que cheguei a perder os sentidos, e o senhor... sim... o senhor foi quem me salvou. Permite-me que lhe agradeça? - concluiu ela, estendendo a mão.
Luís Bastinhos estendeu a sua; e ali, entre duas ondas, tocaram-se os dedos do tritão e da náiade.
- Hoje o mar está manso - disse ele.
- Está.
- A senhora nada bem.
- Parece-lhe?
- Perfeitamente.
- Menos mal.
E, como para mostrar a sua arte, Marcelina entrou a nadar para fora, deixando Luís Bastinhos. Este, porém, ou por mostrar que também sabia a arte e que era destemido - ou por não privar a moça de pronto socorro, caso houvesse necessidade -, ou enfim (e este motivo pode ter sido o principal, se não único) - para vê-la sempre de mais perto -, lá foi na mesma esteira; dentro de pouco era uma espécie de aposta entre os dois.
- Marcelina -disse-lhe o pai, quando ela voltou a terra - você hoje foi mais longe do que nunca. Não quero isso, ouviu?
Marcelina levantou os ombros, mas obedeceu ao pai, cujo tom nessa ocasião era desusadamente ríspido. No dia seguinte, não foi tão longe a nadar; a conversar, porém, foi muito mais longe do que na véspera. Ela confessou ao Luís Bastinhos, ambos com a água até o pescoço, confessou que gostava muito de café com leite, que tinha vinte e um anos, que possuía reminiscências do Tamberlick, e que o banho do mar seria excelente, se não a obrigassem a acordar cedo.
- Deita-se tarde, não é? - perguntou o Luís Bastinhos.
- Perto de meia-noite.
- Oh! Dorme pouco!
- Muito pouco.
- De dia dorme?
- Às vezes.
Luís Bastinhos confessou, pela sua parte, que se deitava cedo, muito cedo, desde que estava a banhos de mar.
- Mas quando for ao teatro?
- Nunca vou ao teatro.
- Pois eu gosto muito.
- Também eu; mas enquanto estiver a banhos...
Foi neste ponto que entraram as reminiscências do Tamberlick, que Marcelina ouviu, quando criança; e daí ao João Caetano, e do João Caetano a não sei que outras reminiscências, que a um e a outro fez esquecer a higiene e a situação.
IV
Saiamos do mar, que é tempo. A leitora pode desconfiar que o intento do autor é fazer um conto marítimo, a ponto de casar os dois heróis nos próprios "paços de Anfitrite", como diria o major Caldas. Não; saiamos do mar. Já tens muita água, boa Marcelina. Too much of water hast thou, poor Ophelia! A diferença é que a pobre Ofélia lá ficou, ao passo que tu sais sã e salva, com a roupa do banho pegada ao corpo, um corpo grego, por Deus! E entras na barraca, e se alguma cousa ouves, não são as lágrimas dos teus, são os resmungos do major. Saiamos do mar.
Um mês depois do último banho a que o leitor assistiu, já o Luís Bastinhos frequentava a casa do major Caldas. O major afeiçoara-se-lhe deveras depois que ele lhe salvara a filha. Indagou quem era; soube que estava empregado numa repartição de Marinha, que seu pai, já agora morto, fora capitão-de-fragata e figurara na guerra contra Rosas. Soube mais que era moço bem reputado e decente. Tudo isto realçou a ação generosa e corajosa de Luís Bastinhos, e a intimidade começou, sem oposição da parte de Marcelina, que antes contribuiu para ela, com as suas melhores maneiras.
Um mês era de sobra para arraigar no coração de Luís Bastinhos a planta do amor que havia germinado entre duas vagas do Flamengo. A planta cresceu, copou, bracejou ramos a um e outro lado, tomou o coração todo do rapaz, que não se lembrava jamais de haver gostado tanto de uma moça. Era o que ele dizia a um amigo de infância, seu atual confidente.
- E ela? - disse-lhe o amigo.
- Ela... não sei.
- Não sabes?
- Não; creio que não gosta de mim, isto é, não digo que se aborreça comigo; trata-me muito bem, ri muito, mas não gosta... entendes?
- Não te dá corda em suma - concluiu o Pimentel, que assim se chamava o amigo confidente -. Já lhe disseste alguma coisa?
- Não.
- Por que não lhe falas?
- Tenho receio... Ela pode zangar-se e fico obrigado a não voltar lá ou a frequentar menos, e isso para mim seria o diabo.
O Pimentel era uma espécie de filósofo prático, incapaz de suspirar dois minutos pela mais bela mulher do mundo, e menos ainda de compreender uma paixão como a do Luís Bastinhos. Sorriu, estendeu-lhe a mão em despedida, mas o Luís Bastinhos não consentiu na separação. Puxou-o, deu-lhe o braço, levou-o a um café.
- Mas que diabo queres tu que te faça? - perguntou o Pimentel sentando-se à mesa com ele.
- Que me aconselhes.
- O quê?
- Não sei o quê, mas dize-me alguma cousa - replicou o namorado -. Talvez convenha falar ao pai; que te parece?
- Sem saber se ela gosta de ti?
- Na verdade era imprudência - concordou o outro, coçando o queixo com a ponta do dedo índice -; mas talvez goste...
- Pois então...
- Porque, eu te digo, ela não me trata mal; ao contrário, às vezes tem uns modos, umas cousas... mas não sei... O major, esse gosta de mim.
- Ah!
- Gosta.
- Pois aí tens, casa-te com o major.
- Falemos sério.
- Sério? - repetiu o Pimentel debruçando-se sobre a mesa e encarando o outro. Aqui vai o mais sério que há no mundo; tu és um... digo?
- Dize.
- Tu és um bolas.
Repetiam-se essas cenas regularmente, uma ou duas vezes por semana. No fim delas o Luís Bastinhos prometia duas cousas a si mesmo: não dizer mais nada ao Pimentel e ir fazer imediatamente a sua confissão a Marcelina; poucos dias depois ia confessar ao Pimentel que ainda não dissera nada a Marcelina. E o Pimentel abanava a cabeça e repetia o estribilho:
- Tu és um bolas.
V
Um dia assentou Luís Bastinhos que era vergonha dilatar por mais tempo a declaração de seus afetos; urgia clarear a situação. Ou era amado ou não: no primeiro caso, o silêncio era tolice; no segundo, a tolice era a assiduidade. Tal foi a reflexão do namorado; tal foi a sua resolução.
A ocasião era na verdade propícia. O pai ia passar a noite fora; a moça ficara com uma tia surda e sonolenta. Era o sol de Austerlitz; o nosso Bonaparte preparou a sua melhor tática. A fortuna deu-lhe até um grande auxiliar na própria moça, que estava triste; a tristeza podia dispor o coração a sentimentos benévolos, principalmente quando outro coração lhe dissesse que não duvidava beber na mesma taça da melancolia. Esta foi a primeira reflexão de Luís Bastinhos; a segunda foi diferente.
"Por que estará ela triste?", perguntou ele a si mesmo.
E eis o dente do ciúme a trincar-lhe o coração, e o sangue a esfriar-lhe nas veias, e uma nuvem a cobrir-lhe os olhos. Não era para menos o caso. Ninguém adivinharia nessa moça quieta e sombria, sentada a um canto do sofá, a ler as páginas de um romance, ninguém adivinharia nela a borboleta ágil e volúvel de todos os dias. Alguma cousa devia ser; talvez a mordesse algum besouro. E esse besouro não era decerto o Luís Bastinhos; foi o que este pensou e foi o que o entristeceu.
Marcelina ergueu os ombros.
- Alguma cousa que a incomoda? - continuou ele.
Um silêncio.
- Não?
- Talvez.
- Pois bem - disse Luís Bastinhos com calor e animado por aquela meia confidência -; pois bem, diga-me tudo, eu saberei ouvi-la e terei palavras de consolação para as suas dores.
Marcelina olhou um pouco espantada para ele, mas a tristeza dominou outra vez e deixou-se estar calada alguns instantes; finalmente pôs-lhe a mão no braço, e disse que lhe agradecia muito o interesse que mostrava, mas que o motivo de tristeza era-o só para ela e não valia a pena contá-lo. Como Luís Bastinhos teimasse para saber o que era, contou a moça que lhe morrera, nessa manhã, o mico.
Luís Bastinhos respirou à larga. Um mico! Um simples mico! Era pueril o objeto, mas para quem o esperava terrível, antes assim. Ele entregou-se depois a toda a sorte de considerações próprias do caso, disse-lhe que não valia o bicho a pureza dos belos olhos da moça; e daí a escorregar uma insinuação de amor era um quase nada. Ia a fazê-lo: chegou o major.
Oito dias depois houve em casa do major um sarau - "uma brincadeira" como disse o próprio major. Luís Bastinhos foi; estava porém arrufado com a moça; deixou-se ficar a um canto; não se falaram durante a noite inteira.
- Marcelina - disse-lhe no dia seguinte o pai -, acho que tratas às vezes mal o Bastinhos. Um homem que te salvou da morte.
- Que morte?
- Da morte na praia do Flamengo.
- Mas, papai, se a gente fosse a morrer de amores por todas as pessoas que nos salvam da morte...
- Mas quem te fala nisso? Digo que o tratas mal às vezes...
- Às vezes, é possível.
- Mas por quê? Ele parece-me um bom rapaz.
Nada mais lhe respondendo a filha, entrou o major a bater com a ponta do pé no chão, um pouco enfadado. Um pouco? Talvez muito. Marcelina destruía-lhe as esperanças, reduzia-lhe a nada o projeto que ele acalentava desde algum tempo - que era casar os dois; - casá-los ou uni-los pelos "doces laços do himeneu", que todas foram as suas próprias expressões mentais. E vai a moça e destrói-lho. O major sentia-se velho, podia morrer, e quisera deixar a filha casada e bem casada. Onde achar melhor marido que o Luís Bastinhos?
- Uma pérola - dizia ele a si mesmo.
E enquanto ele ia forjando e desforjando esses projetos, Marcelina suspirava consigo mesma, e sem saber por quê; mas suspirava. Também esta pensava na conveniência de casar e casar bem; mas nenhum homem lhe abrira deveras o coração. Quem sabe se a fechadura não servia a nenhuma chave? Quem teria a verdadeira chave do coração de Marcelina? Ela chegou a supor que fosse um bacharel da vizinhança, mas esse casou dentro de algum tempo; depois desconfiara que a chave estivesse em poder de um oficial de Marinha. Erro: o oficial não trazia chave consigo. Assim andou de ilusão em ilusão, e chegou à mesma tristeza do pai. Era fácil acabar com ela: era casar com o Bastinhos. Mas se o Bastinhos, o circunspecto, o melancólico, o taciturno Bastinhos não tinha a chave! Equivalia a recebê-lo à porta sem lhe dar entrada no coração.