Coletânea

Várias Histórias

1896

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Várias histórias é o quinto livro de contos de Machado de Assis e foi publicado em 1896, quando o autor estava no auge de sua carreira literária, já tendo oferecido aos leitores dois de seus maiores romances: Memórias póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. Ao publicar na imprensa, entre julho de 1884 e outubro de 1891, os contos que viriam a compor o livro, estava ao mesmo tempo trabalhando em Quincas Borba, que apareceu esparsamente em A Estação, ao longo de pouco mais de cinco anos (entre junho de 1886 e setembro de 1891) e, logo depois, em novembro de 1891, em volume, pela editora de B.L. Garnier.

O leitor, portanto, ao iniciar a leitura dos contos aqui reunidos, sabe de antemão que vai encontrar matéria ficcional de um escritor maduro, no pleno domínio de seu material de trabalho (a língua portuguesa) e no pleno domínio do gênero (o conto), no qual estreara trinta anos antes, com Contos fluminenses (1869).

O livro reúne 16 contos, obras primas dignas do mestre da ficção que é Machado de Assis, dos quais muitos figuram em nove entre dez antologias de contos machadianos. É o caso de "Um apólogo", para muitos brasileiros o primeiro contato com a obra de Machado. Na sua aparente simplicidade, o conto toca numa sensível questão social: para que alguém brilhe nos salões, é preciso sempre que outro alguém trabalhe na sombra e no anonimato. Outro conto frequente nas antologias é a peça de abertura do livro, "A cartomante", em que o ceticismo do autor é apresentado ao leitor de forma dramática (isto é, "em ação"), num estilo a que não falta a ironia - a mais sutil das manifestações do espírito cômico. "Entre santos", na divertida iconoclastia com que o autor faz os santos da igreja de São Francisco de Paula descerem dos seus altares para discutirem entre si as fraquezas dos homens, toca em questões que perpassam toda a boa ficção machadiana, como a avareza e o adultério. Em "Uns braços" Machado trata da atração entre um jovem ainda imberbe e uma mulher madura, e parece ensaiar para "Missa do galo", conto publicado na imprensa em 1894 e que viria a integrar a coletânea seguinte, Páginas recolhidas (1899).

"Um homem célebre" flagra a angústia da criação, tema a que Machado de Assis já se dedicara em "Cantiga de esponsais", de Histórias sem data, publicado em 1884, irmanando o célebre Pestana, compositor de polcas, ao pobre padre Romão do livro anterior, ambos desesperados diante do abismo entre a obra almejada e a obra criada, ou do conflito entre a vocação e o talento, de que havia tratado em "Habilidoso", conto publicado por Machado na Gazeta de Notícias em 1885 e jamais incluído pelo autor em coletâneas. Só que, neste, não se trata de um músico, mas de um pintor, cuja "obstinação, filha de um desejo, não correspondia às faculdades". Em "O diplomático", Machado também aborda o tema da distância entre intenção e gesto, o ficar aquém do desejo e do sonho, a frustração (no caso, amorosa) de uma personagem que, amando em segredo a uma moça bem mais jovem, custa tanto a ter coragem de declarar-se, que a vê arrebatada, numa noite, por um recém-chegado que lhe conquista o coração com a ousadia que ele, Rangel, fora incapaz de ter.

"A desejada das gentes" conta a história de Quintília, mais uma das misteriosas mulheres de Machado, que se recusa à felicidade conjugal embora ame o noivo, uma espécie de versão mais sofisticada e complexa da Maria Regina de "Trio em lá menor". Em sua recusa do corpo, lembra também, o "José Matias" (1897) de Eça de Queirós, eterno apaixonado pela mulher com quem, no entanto, não dá o passo necessário para casar-se. Maria Regina também foge ao casamento (pelo menos no momento em que a flagra a narrativa) e hesita insoluvelmente entre dois namorados, prenunciando a Flora de Esaú e Jacó (1904). De natureza igualmente misteriosa é a personagem-título de "Mariana", absolutamente indiferente ao amante que a vem visitar dezoito anos depois de terem vivido uma paixão adúltera e ardente, deixando perplexo o rapaz, que simplesmente não consegue entender o desvelo com que a mulher cuida do marido enfermo e o desespero com que reage à sua morte - marido este a quem traíra audaciosamente na juventude. De resto, comportamento análogo será o de Maria Cora, personagem do conto de mesmo nome, que sairia em Relíquias de casa velha, de 1906. "Dona Paula" é outra mulher machadiana (e são tantas!) cuja ação exterior generosa esconde uma motivação interior egoísta: ao mesmo tempo em que apoia a sobrinha, que passa por um momento delicado de sua vida afetiva, vive vicariamente a paixão extraconjugal da jovem, através de cuja narrativa revive um lance de sua própria juventude.

Rara na ficção machadiana, a infância (outro exemplo está em "Umas férias", publicado em Relíquias de casa velha), é o tema de "Conto de escola". A história do menino que vende seu saber ao colega menos inteligente e é delatado por um terceiro fica para sempre na memória do leitor e, para alguns de seus biógrafos, a escola do conto e suas redondezas são as do próprio Machado menino, no morro do Livramento.

"A causa secreta" e "O enfermeiro", embora muito diferentes entre si quanto ao enredo e mesmo quanto à complexidade psicológica das suas personagens principais (Fortunato, no primeiro, e Procópio, no segundo) têm uma afinidade inegável, na ausculta do sadismo, praticado por um em relação a animais e a seres humanos, e sofrido pelo outro nas mãos de um patrão velho e doente, que o maltrata e humilha.

Em "Adão e Eva", o juiz de fora Veloso conta a seu modo a criação do mundo e dos homens: não Deus, mas o diabo os criou, e só mais tarde Deus interveio e "infundiu em ambos os bons sentimentos". Assim, resistiram à tentação da serpente e viveram no Éden para sempre. Cá fora, a terra ficou entregue "às obras do Tinhoso [...] ao ar impuro, à vida dos pântanos". Como assinala Hélio de Seixas Guimarães, "[e]essa é, em linhas gerais, a história, contada com um cinismo feito para não enganar ninguém".

"Viver!" pertence à categoria dos chamados contos alegóricos de Machado, no qual mistura numa única narrativa as mitologias clássica e judaico-cristã, pondo a conversar o titã Prometeu, ladrão do fogo celeste (com o qual deu a inteligência aos homens), e Ahasverus, o judeu errante condenado a viver para sempre, sem remissão. Finalmente, em "O cônego ou metafísica do estilo", divertida incursão no reino da metalinguagem, o narrador, invocando reiteradamente o leitor, transporta-o para dentro da cabeça de um padre no processo de composição de um sermão importante, revelando-nos o zelo com que escreve, a busca ingente da palavra perfeita - que seria, arriscamos, comparável à do próprio autor.

Ao fazer uma apresentação geral dos contos deste volume, pensamos ter demonstrado a ideia que Silviano Santiago expressou há quase cinquenta anos: deve-se pensar "a obra de Machado de Assis como um todo coerentemente organizado", em estruturas que "se desarticulam e rearticulam sob forma de estruturas diferentes". Os contos de Várias histórias são uma evidência disso.

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Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizaram-se como fonte edições disponíveis na internet, cotejadas com a edição crítica da Comissão Machado de Assis, bem como com a publicada pela editora Garnier, com texto estabelecido por Adriano da Gama Kury, em 1989. Em caso de discrepância, foram consultadas a primeira e a segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas, sempre que duas formas são consignadas em dicionários de hoje, respeitou-se o que está na primeira edição: "calefrio" (e não "calafrio"), "cálix" (e não "cálice"), "espeitorar" (e não "expectorar"). Respeitou-se igualmente a alternância entre "dous" (mais frequente) e "dois", entre "cousa" (mais frequente) e "coisa", entre "doido" e "doudo" ("doudo" com apenas uma ocorrência, no conto "Mariana") e entre "noite" e "noute" ("noute" com apenas uma ocorrência, no conto "O enfermeiro"). Também foi preservada a utilização oscilante entre "até o" e "até ao", sendo mais frequente esta última forma, de dupla preposição, como é até hoje usual em Portugal. Respeitou-se também a alternância entre "em todo caso" e "em todo o caso". Mantiveram-se o advérbio flexionado ("meia mãe", "meia amiga", "meia defunta", "meia aberta"), bem como o uso de indicativo depois de "talvez": "Talvez a ideia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono". Há ainda o emprego alternado de indicativo e subjuntivo seguindo a expressão "onde que quer que", que foi preservada: "Onde quer que o zelo penetrou" e, pouco abaixo (no conto "Viver!"): "onde quer que respirasse um homem". Não foram "corrigidos" empregos peculiares como "era uma moeda, e tão moeda que me fez pular o sangue no coração" ("Conto de escola"), corrigida às vezes para "tal moeda", como na edição Aguilar e na de Kury. Assim se procedeu por percebermos no substantivo "moeda" precedido do advérbio "tão", uma intenção de emprego do substantivo em função adjetiva, o que quebra a expectativa do leitor e, por isso, enriquece estilisticamente a frase.

Usaram-se iniciais maiúsculas para fatos e períodos históricos (Guerra do Paraguai, Regência), bem como para instituições ("Secretaria de Estrangeiros", "Escola de Medicina"). Preservaram-se (e anotaram-se) palavras estrangeiras na língua original, mesmo quando delas já existe forma aportuguesada: "tylbury" (e não "tílbury"), "reporter" (e não "repórter"). Quanto aos numerais, manteve-se a forma por extenso, tal como figuram nas primeiras edições. Procedeu-se assim por considerar-se que tais usos compõem o que se poderia chamar de "atmosfera textual", que ajuda o leitor de hoje a se transportar para a época em que foram escritas as histórias. Anotaram-se também palavras cujo sentido no texto machadiano é diferente do usual no português brasileiro do início do século XXI. Por exemplo: o verbo "amuar" no sentido de "guardar, trancar dinheiro, pedras preciosas etc."; ou "trastes" no sentido de "móveis" e não no de artigos de pouco valor; ou "golpe" no sentido de "gole", "sombra" no sentido de "espectro", "espírito", "fantasma".

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optou-se por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis, a qual, aliás, era comum aos seus contemporâneos, no Brasil e em Portugal. Conservaram-se todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior: "Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão". Nas orações iniciadas com "e" cujo sujeito é diferente do da oração anterior, respeitou-se a ausência da vírgula: "o cão ficava ganindo e ele ia andando". Respeitaram-se as inconsistências do autor, como a que se nota no uso ou não de vírgula antes de oração consecutiva: "Instou tanto que fiquei" e "mas instaram tanto, que aceitou". Por outro lado, nos casos em que se considerou que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não se hesitou em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que foram suprimidas) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que foram inseridas). Introduziu-se vírgula para indicar a elipse do verbo, como em "grande é o desconsolo e certa, a blasfêmia", mesmo porque, às vezes o autor a emprega. Em "O dicionário", deixamos vírgula separando sujeito de predicado em "quem vê um, vê outro..." por identificar aí uma pausa típica da oralidade.

Optou-se por recorrer às aspas sempre que a "fala" de uma personagem é, na verdade, a expressão verbal de um pensamento que não chega a ser exteriorizado. Nos diálogos, foi preservado o travessão. Mas, nos contos em que há um narrador de primeira pessoa relatando a alguém uma história do passado, respeitou-se o emprego de travessão, em meio de parágrafo, antecedendo a fala de uma personagem dessa história do passado (como "A desejada das gentes" ou "O empréstimo"); nos demais, sempre que havia um diálogo, abrimos parágrafo, com travessão, mesmo quando, nas edições anteriores o travessão está no meio do mesmo parágrafo. Fizemos isso autorizadas pelo procedimento do autor em demais passagens de diferentes contos, o que nos leva a crer que a disposição do diálogo dentro do parágrafo tenha sido antes erro tipográfico que decisão autoral.

Esta não pretende ser uma edição crítica. O objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Os textos dos hiperlinks que constituem referências histórico-literárias e de caráter simbólico foram retirados do banco de dados "Citações e alusões na ficção de Machado de Assis", acessível neste portal. Na pesquisa dos links que não constituem referências da natureza descrita acima, como é o caso de nomes de ruas e cidades, de estabelecimentos comerciais etc., registre-se aqui a colaboração de Alice Ewbank e Camila Abreu, ex-bolsistas de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; no estabelecimento do texto e em sua revisão, a de Laíza Verçosa do Nascimento, bolsista de Iniciação Científica. Na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, o crédito é de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Laíza Verçosa do Nascimento, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq

março de 2013

Advertência

Mon ami, faisons toujours des contes...Le temps se passe, et le conte de la vie s`acheve sans qu`on s`en aperçoive.

Diderot

As várias histórias que formam este volume foram escolhidas entre outras, e podiam ser acrescentadas, se não conviesse limitar o livro às suas trezentas páginas. É a quinta coleção que dou ao público. As palavras de Diderot que vão por epígrafe no rosto desta coleção servem de desculpa aos que acharem excessivos tantos contos. É um modo de passar o tempo. Não pretendem sobreviver como os do filósofo. Não são feitos daquela matéria, nem daquele estilo que dão aos de Mérimée o caráter de obras-primas, e colocam os de Poe entre os primeiros escritos da América. O tamanho não é o que faz mal a este gênero de histórias, é naturalmente a qualidade; mas há sempre uma qualidade nos contos, que os torna superiores aos grandes romances, se uns e outros são medíocres: é serem curtos.

M.de A.

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