Conto

Uma Partida

1892

Uma partida *

Capítulo primeiro

Posso dizer o caso, o ano e as pessoas, menos os nomes verdadeiros. Posso ainda dizer a província, que foi a do Rio de Janeiro. Não direi o município nem a denominação da fazenda. Seria exceder as conveniências sem utilidade.

Vai longe o ano; era o de 1850. A fazenda era do coronel X, digamos Xavier. Boa casa de vivenda, muitos escravos, mas pouca ordem, e produção inferior à que devia dar. O feitor, que era bom a princípio, "virou desmazelado", como dizia o coronel aos amigos, "sem que este acabasse de substituí-lo" como diziam os amigos do coronel. Corriam algumas lendas; sussurrava-se que o fazendeiro devia certas mortes ao feitor, e daí a dependência em que estava dele. Era falso. Xavier não tinha alma assassina, nem sequer vingativa. Era duro de gênio; mas não ia além de algumas ações duras. Isso mesmo parece que afrouxava nos últimos tempos. Talvez tivesse pouca aptidão para dirigir um estabelecimento agrícola; mas os primeiros anos de propriedade desmentiam esta suposição. Foram anos prósperos, de grande trabalho e vivas esperanças. O terceiro ano confirmou algumas destas; mas o quarto foi já decadente, e os restantes vieram, ora melhor, ora pior, sem que a lavoura tornasse ao que fora. Os escravos mortos ou fugidos eram substituídos por pretos importados de contrabando, meias-caras, como se dizia. Os correspondentes da antiga Corte adiantavam dinheiro. Xavier não perdeu o crédito.

Tinha perto de quarenta anos. Pertencia a uma antiga família agrícola, espalhada pelo Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. O pai criou-o um pouco à revelia. Já na fazenda, já na capital, aonde ele vinha muitas vezes, fazia tudo que queria e gastava à larga. O pai desejava que ele fosse doutor ou bacharel em direito; mas o filho não quis e não foi nada. Quando o velho morreu deixou-lhe a fazenda em bom estado, dinheiro nas mãos dos correspondentes, muito crédito, ordem e disciplina. Xavier tinha vinte e sete anos. Correu da corte e já achou o pai enterrado. Alguns amigos do velho, que estavam na fazenda, receberam o herdeiro com muitas provas de estima, desejos de perseverança na casa; mas o moço Xavier, ou porque eles acentuassem demasiado a afeição, ou porque se intrigassem uns aos outros, em breve tempo os pôs na rua. Parece que deles é que nasceu mais tarde a lenda das mortes mandadas cometer pelo fazendeiro.

Já ficou dito que os dous primeiros anos foram prósperos. Como a prosperidade vinha do tempo do velho, é fácil crer que continuou pelo impulso anterior. É verdade, porém, que Xavier deu todos os seus cuidados à lavoura, e juntou o esforço próprio ao que ela trazia.

Os parentes estavam satisfeitos com a conversão do moço. Um deles alcançou-lhe uma patente de coronel da Guarda Nacional, e deu-lhe conselho que tomasse para si a influência política do município. Outro, um velho tio mineiro, escreveu-lhe uma carta dizendo que casasse. "É indecente" (concluiu a carta) "que você viva aí num serralho de crioulas, como se diz por aqui. Case-se; não faltam moças bem educadas e bonitas, conquanto beleza seja prenda dispensável a uma mãe de filhos."

II

Quando a carta chegou às mãos do Xavier, estava ele jogando com um viajante que lhe pedira pousada na véspera. Não abriu a carta, não chegou a examinar a letra do sobrescrito; meteu-a no bolso e continuou a jogar. Tinha sido grande jogador; mas havia já dezoito meses que não pegava em cartas. O viajante que ali aparecera, entre outras anedotas que lhe contou, meteu algumas de jogo, e confessou que "puxava orelha da sota". A ocasião, a vocação e o parceiro abriram o apetite ao jovem coronel, que convidou o hóspede a um divertimento. O hóspede trazia cartas consigo, mas não foram precisas; Xavier, posto que resolvido acabar com o vício, tinha muitos baralhos em casa.

Jogaram três dias seguidos. Xavier perdeu dois contos de réis, e despediu o hóspede com as melhores maneiras deste mundo. Sentia a perda; mas o sabor das cartas foi muito maior.

Foi na noite do primeiro daqueles três dias que Xavier leu os conselhos do tio mineiro para que casasse e não os achou maus. No dia seguinte de manhã tornou a pensar no assunto. Quando o hóspede se despediu, a ideia do casamento apoderou-se dele outra vez. Era uma aventura nova, e a vida de Xavier fora dada a tantas, que esta devia namorá-lo. Nenhuma ambição, curiosidade apenas. Pensou em várias moças, fez-se a seleção, até que adotou a filha de um fazendeiro de São Paulo, que ele conhecera, anos passados, com dezessete de idade; devia ir em vinte e não lhe constava que tivesse marido.

Ao vê-la, dous meses depois, Xavier estava longe de crer que a mocinha de dezessete fosse aquela magnífica moça de vinte. Só mais tarde soube que ela, desde os dezessete anos, ficara namorada dele. Acordos tais são próprios de novelas; nem eu poria isto aqui, se não fora a necessidade. Parecem cousas preparadas, e, entretanto, examinando-as bem, são banais e velhas. Esquecemo-nos de que os novelistas, à força de levarem para o papel os lances e situações da realidade, deram-lhes um aspecto romanesco.

Não houve obstáculos ao casamento. O velho tio mineiro foi padrinho de Xavier, e, dentro de pouco, tornava este à fazenda fluminense, acompanhado de D. Paula Xavier, sua consorte. Viagem longa e cansativa; foram naturalmente repousar. Descansemos nós também nesta pontinha de capítulo.

III

Dona Paula não teve a lua de mel deliciosa que esperava. O casamento fora obra de reflexão e de conselho. Assim, o amor que adormecera nela, pouco depois de nascido, acordou espantado de tornar à realidade das cousas, e principalmente de não as reconhecer. Como Epimênides, via um mundo diverso do que deixara. Esfregou os olhos, uma e mais vezes, tudo era estranho. O Xavier de três anos passados não era este de hoje, com as suas feições duras, ora alegre, ora frio, ora turbulento - muitas vezes calado e aborrecido -, estouvado também, e trivial - sem alma, sem delicadeza. Pela sua parte, Xavier também não achou a lua de mel que pensava, que era um astro diferente daquele saudoso, e porventura poético, vertendo um clarão de pérolas fundidas - mais ou menos isto - que a mulher sonhara achar ao pé do noivo. Queria uma lua-de-mel patusca.

Um e outro tinham-se enganado: mas estavam unidos, cumpria acomodarem-se com a sorte. Ninguém troca o bilhete de loteria que lhe saiu branco; e se o emenda, para receber um prêmio, vai para a cadeia. O bilhete branco é o sonho; deita-se fora, e fica-se com a realidade.

Quatro meses depois de casado, Xavier teve de ir ao Rio de Janeiro, onde se demorou poucos dias; mas voltou no mês seguinte, e demorou-se mais, e afinal amiudou as viagens e dilatou as demoras. A primeira suspeita de D. Paula é que ele trazia amores, e não lhe doeu pouco; chegou a dizê-lo ao próprio marido, mas sorrindo e com brandura.

- Tolinha - respondeu ele -. Pois eu agora...? Amores...? Não me faltava mais nada. Gastar dinheiro para dar com os ossos na Corte, atrás de raparigas... Ora você! Vou a negócios; o correspondente é que me demora com as contas. E depois a política, os homens políticos, há ideia de fazer-me deputado...

- Deputado?
- Provincial
.

- Por que não aceita?

- Eu, deputado? Tomara eu tempo para cuidar de mim. Com que então, amores? - continuou ele rindo -. Você é capaz de fazer pensar nisso.

Dona Paula creu no marido, estava então grávida, e punha grandes esperanças no filho ou filha que lhe nascesse. Era a companhia, a alegria, a consolação, tudo o que o casamento não lhe deu. Como se aproximasse o termo da gestação, Xavier suspendeu as viagens à capital; mas por esse tempo apareceram na fazenda uns três sujeitos, que se hospedaram por dias, e com quem ele jogou à larga. A mulher viu que ele amava as cartas. Em si, o jogo não a incomodava; alguns parentes seus davam-se a essa distração, e nunca ouvira dizer que fosse pecado nem vício. O mal vinha da preocupação exclusiva. Durante aqueles oito dias, Xavier não pensou que era casado nem fazendeiro: todo ele era cartas. Sabia muitos jogos; mudava de um para outro, com o fim de dar descanso ao espírito.

- Enquanto se descansa, carrega-se pedra - dizia ele aos parceiros.

Acabaram os oito dias, os hóspedes foram-se, com promessa de tornar mais tarde. Xavier, apesar de haver perdido muito, estava bonachão. Outras vezes, embora ganhasse, irritava-se. Por quê? Estados de alma que os fatos externos podiam explicar até certo ponto, mas que prendiam naturalmente com a índole do homem. Não era o dinheiro que o seduzia no jogo, mas as cartas, quase que só elas. Certo, preferia ganhar a perder - até para ter sempre com que jogar; mas era o jogo em si mesmo, as suas peripécias, os seus lances, as rodas de fortuna, a ansiedade na espera, a luta, a superstição, a fé em uma carta, a descrença em outras, todas as comoções que traz o meneio delas. Quando jogava assim uma boa temporada, dia e noite, ficava farto por algum tempo. O pior é que o prazo do descanso ia diminuindo, e a necessidade vinha cada vez mais cedo.

IV

Quando veio a hora de nascer o filho, estava Xavier em um dos estados de desejo; o acontecimento pôde distraí-lo. Já tinha em casa médico e uma comadre, um tio da mulher e duas filhas. Não faltou nada. Havia animais encilhados e pajens prontos para correr à vila próxima, a buscar o que fosse preciso. Dona Paula padeceu muito, e as esperanças dissiparam-se na mais triste das realidades; o filho nasceu morto. A dor da mãe foi profunda, a convalescença, longa.

Quando ficou de todo restabelecida, Xavier propôs-lhe virem ao Rio de Janeiro, passar a temporada lírica; ela aceitou, menos por gosto, menos ainda por distração, que por ceder ao pequeno acesso de ternura do marido. Com efeito, ele expediu ordens para que arranjassem casa e todas as comodidades. Vieram; Xavier assinou um camarote. Dona Paula tinha aqui parentes, amigos, conhecidos; a vida teve desde logo um bom aspecto. Pela sua parte, o marido mostrava-se mais atento aos seus desejos. Era uma renascença? Ela supôs que sim, e isto ajudou a fazê-la sarar da alma. Não faltava quem a cortejasse, quem a admirasse, e, naturalmente, quem a invejasse, pela beleza, pela graça, pelas maneiras simples e discretas, particularmente suas. Xavier parecia tirar vaidade desse efeito geral. Seria mais um elo que os prendesse intimamente.

Entretanto, pouco depois de chegados, começaram as suas noitadas fora de casa. Da primeira vez, quando ele se recolheu (quatro horas da manhã), ainda D. Paula estava acordada, ansiosa, vestida, e atirou-se a ele, satisfeita de o ver. Sinceramente, receava algum perigo; não pensou em amores nem cartas. Xavier não correspondeu à ansiedade da mulher, nem entendeu os seus receios. Respondeu-lhe irritado; disse-lhe que fizera mal em não ter dormido.

- Sou alguma criança?

- Mas, Xavier...

- Roceiro, sou; mas conheço a cidade na ponta dos dedos. Você está já com as manhas das moças da Corte; não tarda algum ataque de nervos. Que choro é esse? Vá dormir, não me aborreça. Descanse, que não me perco.

A segunda noitada foi dali a três dias; D. Paula só tarde pôde dormir; acordou, quando ele chegou, mas não descerrou os olhos. Desconfiou que fossem mulheres; ele confessou-lhe, no dia seguinte, que estivera em casa de um amigo, jogando o voltarete.

- Quando demos por nós eram duas horas da noite - concluiu.

Dali em diante, quando tinha de passar fora a noite, não saía de casa sem lhe dizer: - Vou ao voltarete. Dona Paula soube que era verdade, e acostumou-se a dormir à hora da roça, porque nas noites de teatro ou de visitas, ele não deixava de a acompanhar, e dormiam naturalmente tarde.

V

Voltaram à Corte uma e muitas vezes, até que Xavier abandonou de todo a fazenda nas mãos do administrador, e ficou a viver aqui. Por casa, entregou a mulher a si mesma e continuou a vida de sempre. Eram já passados três anos. O costume e o decoro os prendiam; nenhum deles amava o outro. Não veio nenhum filho que pudesse suprir as lacunas do amor conjugal.

Dona Paula ia ficando cada vez mais formosa. A Corte aperfeiçoou os encantos naturais. No interior não tinha necessidade de observar todo o ritual elegante nem a grande variedade da moda.

Na Corte, a necessidade impunha-se, e achava na alma dela excelente disposição. Gostava de andar bem, de aparecer muito, de ir a toda parte; e não lhe faltavam amigos nem parentes que a acompanhassem e lhe satisfizessem todos os desejos. Bailes, teatros, passeios, teve tudo o que quis, não lhe negando o marido dinheiro para cousa alguma. Às vezes, estremunhado do jogo, ele respondia-lhe errado:

- O baile do Vergueiro?

- Sim; é no dia 7.

- Mas o trunfo era espadas.

- Que espadas?

- Eu tinha o rei e o quatro.

- Ora, Xavier, não falo de cartas, falo do baile do Vergueiro, no dia 7 de outubro; estamos convidados.

Não pareça demais essa confusão do homem. Naturalmente, alguma partida especial, grave, luta grande, ou pelo dinheiro ou pela honra da vitória, tomara a casa do cérebro onde nenhuma outra ideia achava alojamento. Dona Paula chegava já a rir desses desconchavos. Depois, explicava o riso, e ele ria também, e referia o motivo da trapalhada. Quando ela notava que isso mesmo o aborrecia, evitava explicações. O marido era enfadonho, longo, repisava o que dizia, e achava pequeno interesse em cousas que, para ela, não valiam nada. Já lhe não importavam horas de chegada. Ele entrava de madrugada, às vezes de manhã, às seis horas e mais. Dona Paula dormia até nove, e almoçava só. Outras vezes, o jogo era em casa; mas a casa era grande, e a sala do jogo era ao fundo. Na frente ela recebia, tocava e ria. Era convenção entre ambos, em tais casos, dizer que ele estava fora.

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