Conto

Um Quarto de Século

1893

III

No sábado marcado, Tomás acudiu a Andaraí, onde já achou a viúva. Oliveira tinha anunciado a vinda do amigo, mas nem então, nem quando este chegou, houve da parte de Raquel a menor emoção. Ela falou ao namorado de outros dias, como se nada houvesse passado entre ambos, em bem ou em mal. Oliveira fê-los sentar, à mesa, ao pé um do outro; mas a vizinhança não alterou a disposição da viúva.

Tomás achou-a ainda bela, e, a muitos respeitos, melhor. Trinta e sete ou trinta e oito anos, é o que devia ter. Era conversada, interessante, atenta, falando de tudo e bem, sem excesso, sem impertinência, calando a tempo, tudo isso com uma boca fresca e uns olhos capazes de paixão e de mando. Assim pareceram eles a Tomás, que estava comovido e ia-se sentindo acanhado. Para um homem vivido, o estado era inexplicável, se não fora a situação especialíssima. Ele supôs, e qualquer pessoa o suporia, que o longo celibato e a diferença dos tempos o teriam armado contra essa senhora, e foi o contrário. Já não falo dos termos da separação de outrora, que eram um atrativo mais, não diminuído pela viuvez. A viuvez era antes um pico.

Raquel demorou-se pouco. A irmã, que estava presente, embora restabelecida, não podia apanhar sereno e a noite esfriava. Foi a razão dada pela viúva Sales para sair e não cantar, como lhe pedia Oliveira.

- Uma só daquelas músicas espanholas, que a senhora canta com tanta graça.

- Deixei a graça em casa; fica para outra vez.

A mulher de Oliveira ofereceu-lhes pousada por uma noite. Era impossível que D. Rita saísse; podiam ficar; iria levá-las no dia seguinte. Raquel não aceitou nada e despediram-se às nove horas. Tomás não ousou apertar fortemente a mão que ela lhe estendeu, à despedida, posto que esse fosse o seu desejo; tocou-lhe apenas nos dedos. Entretanto, esperava que ela lhe oferecesse a casa, e Raquel não lhe ofereceu cousa nenhuma.

Oliveira deu o braço a D. Rita, até o carro, deixando ao amigo a fineza de ir com a viúva. Tomás aproveitou o favor. Entre a casa, que ficava no centro de uma chácara, e a rua havia cerca de trinta passos; Tomás fê-los compridos como léguas, sem achar uma palavra que dizer. Sentia o braço dela no seu, francamente pousado, sem cerimônia nem medo, e a sensação que isto lhe dava ainda mais lhe atava a língua. Enfim, chegaram ao carro.

- Obrigada - disse-lhe Raquel estendendo a mão.

Quando o carro partiu:

- Que tal a achaste? - perguntou Oliveira.

- Achei-a bem.

- Estavas pálido.

- Eu?

- Deixa ver a tua mão; está fria. Seriamente, tu sentiste alguma cousa.

- Cousa nenhuma; tive recordações, mas, aos quarenta e quatro anos, as recordações são como brinquedos velhos e quebrados. Achei-a elegante. Queres que te diga? Mais distinta que em solteira.

- Mais senhora, mais tranquila. O que tu queres dizer é que, em solteira, dava-te as mãos para que as beijasses.

- Nunca lhe beijei as mãos.

- Nunca! Nem os olhos?

- Menos ainda os olhos. Era muito arisca.

Tinham subido a escada de pedra, e parado à porta da sala de visitas. Oliveira pegou na mão do amigo, e, depois de alguns segundos:

- Se resolveres casar com ela, fala-me - disse.

- Casar?

- Fala-me - repetiu Oliveira.

- Tu estás tonto...

- Não é conselho que te estou dando; digo-te só que, se resolveres, estou pronto a servir de terceiro. Faz-se isto aos amigos velhos. Tu estás velho.

- Um pedido; não digas nada à tua mulher.

- De quê?

- Do que houve entre mim e Raquel.

- Já sabe. Contei-lhe tudo hoje de manhã; mas descansa, é discreta. Anda tomar uma xícara de chá; tens as mãos frias...

Tomás foi acabar a noite em um teatro. Não perdeu o sono, e acordou à hora do costume. Entretanto, a segunda ou terceira ideia que lhe acudiu, depois de acordado, foi a formosa viúva. Gostou de pensar nela; reconhecia que ela fora apenas polida, nem sequer faceira, nada que revelasse o desejo de lhe parecer bem. Durante uma semana pensou muitas vezes em Raquel. Chegou a esperá-la na rua do Ouvidor. Sabendo onde morava, passou por lá duas vezes, sem a ver. Quinze dias depois do jantar, indo a Niterói, achou-a na barca. Ia só, com um véu pelo rosto, e parece que o vira, porque voltou a cara para o lado do mar. Tomás hesitou um instante; afinal foi cumprimentá-la. Raquel falou-lhe com afabilidade; ele sentou-se no mesmo banco.

- Há de crer que não vou à Praia Grande há dez anos? - disse ele.

- Eu, há dous meses. Vou visitar uma tia que está doente.

- Uma tia? Não me lembra - aventurou Tomás.

- Uma tia do finado.

O finado era o marido. Raquel referiu-lhe a moléstia, a idade, os costumes da pessoa, como se fossem cousas que o interessassem. Depois falou do mar. Depois falou do céu. Tudo como quem mata a alfinetadas um tempo que não quer morrer. Tomás pouco dizia; todo ele era ouvidos para escutá-la, olhos para vê-la, com os seus ombros fortes, as mãos finamente enluvadas, e os olhos, que pareciam de esfinge, agora que o véu os cobria. Pareciam ao nosso herói; ele é que o dizia consigo, romanticamente, não eu, que apenas traduzo aqui o próprio sentir do solteirão. Esfinge era imagem velha; mas tinha para ele a mocidade da sua mocidade.

IV

Repetiram-se os encontros. Poucas semanas depois, Tomás fazia à viúva a sua primeira visita. Já então se podia dizer completamente enamorado, posto não ousasse confessá-lo, antes buscasse encobri-lo. Nada lhe dava certeza de poder ser aceito; mas também é verdade que não achava aparência de recusa. A viúva era atraente, cortês, interessante, ouvia-o com muito prazer, chegava a falar de outros tempos sem hesitação.

O quarto de século de distância eliminou-se, como um castelo em ruínas de um teatro dá lugar a um campo alastrado de verdura, ao aceno do contrarregra. Tudo se renovava inteiramente. Casamento de uma, ausência, dispersão de sentimentos, cansaço, fastio, desapareceram; e não foi só a moça que substituiu a viúva, mas o próprio sonho antigo que integralmente emergiu dos tempos. Tomás achou em si a força necessária para restaurar as suas imaginações perdidas. O que ele outrora pedia ao casamento com a solteira, achou-o nas mãos da viúva, como se o ofício delas não fosse mais que esperar por ele, guardando-se intactas do mundo e seus favores.

Seis meses não é pouco tempo entre um solteirão e uma viúva; mas tal foi o prazo decorrido sem que ele dissesse nada. Oliveira, a princípio, quis precipitar as cousas; a mulher disse-lhe que não; seria tomar a responsabilidade do que podia acontecer.

- Não são duas crianças - observou ela.

- Por isso mesmo - confirmou Oliveira rindo.

Um dia, enfim, Tomás resolveu pedir a viúva.

Escreveu-lhe uma carta, que rasgou por achá-la extensa; escreveu outra mais extensa e mandou-lha.

Raquel, logo que deu com as primeiras palavras, interrompeu a leitura e deixou-se estar com os olhos no ar, perdidos. Sabia o conteúdo do papel; talvez houvesse ajudado a escrevê-lo. É o que perguntava agora a si mesma, um pouco arrependida, um pouco satisfeita. Não vos admireis deste sentimento duplo, que parecerá contraditório, e na verdade o é; mas contradição também é deste mundo. Raquel, já viúva, rejeitara duas propostas de casamento. Era a terceira, e podia rejeitá-la, como as outras. Que é que a impedia de o fazer? Não chegava a explicar-se.

A idéia de que ele ficara solteiro, para não casar nunca, e rompia a promessa para acabar casando com ela foi a causa principal da animação que lhe dera agora. A animação tinha de produzir os seus efeitos. Diante destes é que a viúva parecia espantada. Os olhos perderam-se cada vez mais, até que buscaram a carta e leram o que dizia.

O estilo era inflamado. Uma só vez a carta aludia ao passado: "Se achar que este meu modo de sentir é juvenil, saiba que dia houve em que o meu coração parou, e que a minha idade é a dele". Raquel releu a carta, naturalmente não lhe respondeu logo; fá-lo-ia no dia seguinte. Tinha de refletir primeiro.

- Sim ou não? - perguntou a si mesma.

E depois de alguns minutos:

- Amanhã; tenho tempo.

Parecerá esquisito que ainda agora hesitasse; mas a esquisitice também é deste mundo. Gostava do antigo noivo; não encarava até então a idéia de casar. Podia propor um adiamento. Verdade é que o adiamento acabaria, e sempre chegaria a necessidade de dar resposta. No dia seguinte, sentou-se pegou na pena e começou dez vezes um bilhete em que lhe dizia que ia pensar; não atinava com o modo de concluir, e, por fim, achou que o alvitre era mau. O melhor era recusar logo. Com que palavras escreveria a negativa? Era melhor aceitar; mas como?

Tudo isso parecer-vos-á insuportável, leitora atenta, e a mim também, que o estou contando, não menos que à própria dama em cujo cérebro todos esses pensamentos se esbarravam uns nos outros, sem vitória de nenhum. Passaram-se três dias. Ao quarto, Raquel consultou a irmã, que a animou a aceitar o marido.

- Estás certa que nenhum interesse o atrai?

- Seguramente.

- Pois aceita.

Raquel respondeu enfim, com duas linhas apenas, que pareceram a Tomás muito mais compridas que a longa carta que lhe escrevera: "Dou-lhe a minha mão, e espero que sejamos felizes". Tomás foi agradecer-lhe a resposta. Estava trêmulo, como se contasse vinte anos, e fosse aquele o primeiro amor. A própria Raquel, uma vez decidida, tinha a comoção da adolescência. Pouco mediou entre a aceitação e a realização. Dois meses depois estavam casados.

V

Após um quarto de século, voltara Tomás ao ponto donde partira. Tendo navegado mares longos e enfadonhos, ei-lo que aporta à mesma terra vizinha, cujo acesso fora o sonho dos primeiros anos.

- Raquel, vinte e cinco anos de separação e desesperança - disse ele na carruagem que os trazia da igreja.

A lua de mel foi passada em Petrópolis, longe do universo, porque eles acharam uma casa separada do centro, e não saíram dela uns três dias. O plano do marido era não sair nunca; uma tarde, porém, transpondo o jardim, chegaram à rua, depois à outra rua. No dia seguinte, foram à rua do Imperador; antes do fim da semana seguiram em carro ao alto da serra, a ver chegar o trem.

Não se pense que lhes foi indiferente a vista de cousas estranhas. Ao contrário, acharam certo prazer em mostrar aos outros a própria felicidade, Raquel ainda mais que o marido. Duas semanas depois de subidos a Petrópolis, recebeu Tomás uma carta de Oliveira. Era longa, banal, mas amiga; acabava perguntando quando esperavam descer do céu.

- Podemos ir amanhã - propôs a mulher.

- Já!

- Se você quiser; eu estou bem.

Tomás refletiu um instante.

- Sim, podemos ir amanhã ou depois.

A eternidade ficou reduzida de alguns séculos de séculos; mas, como todas as eternidades deste mundo são assim, a questão é saber em que proporção se reduzem. Ora, eles tiveram duas semanas de lua de mel; havia-as muito menores.

Três, quatro, cinco meses passaram, sem acontecimento apreciável. Mas há uma falta de acontecimentos que o estado moral supre, e um homem e uma mulher podem viver mais que Alexandre ou César. Tal não era o estado do casal recente. Ao cabo de três meses, Tomás sentia em Raquel uma placidez de espírito, que não era o alvoroço que esperava, nem ainda o dos primeiros dias. Esse mesmo dos dias iniciais não correspondeu à esperança, mas confundia-se com o dele, e ambos lhe pareceram no mesmo grau infinito. Pouco a pouco, o estado normal vingou; ao fim de seis semanas, a diferença apareceu, até que, dobrado o prazo, Raquel ficou sendo uma senhora tranquila, sem assomos de nenhuma espécie, sem inquietações nem saudades. Tudo o que pode definir bem a ausência de paixão parecia reunir-se nela. Quando a convicção desse estado entrou no ânimo do marido, houve uma tal ou qual sombra no céu conjugal. O pior é que ela não deu pelo fenômeno. Tomás encerrava-se longas horas no gabinete, a pretexto de trabalho, mas realmente para ler romances parisienses, comprados às dúzias. Raquel não ia arrancá-lo ao suposto trabalho, nem ralhava pelo excesso de esforço que devia atribuir-lhe. Um dia, quando muito, perguntou-lhe o que estava fazendo.

- Estou compondo um livro - disse ele -, um estudo, uma obra política.

- Você quer ser deputado?

- Não.

E depois de um instante, sorrindo:

- Você gostaria de ouvir os meus discursos na Câmara?

- Naturalmente.

Há mil modos de dizer naturalmente; Raquel escolheu um que não significava a coparticipação da glória, e não o fez por afligi-lo, mas por não saber de outro. Tomás, que de começo lia os romances com pouca atenção, acabou lendo-os por gosto e voltando assim a uma das suas diversões antigas. As longas reclusões eram menos aborrecidas que dantes. Outras vezes demorava-se fora, ia a reuniões, ao teatro, a jantares, sem que Raquel achasse que dizer uma palavra amarga. Também não o recebia triste nem alegre. Uma ou outra vez bocejava este gracejo:

- Sim, senhor, bela vida para um homem casado.

- Eu te explico...

Tomás explicava-se, mas era difícil saber se ela escutava a explicação. Não tinha nos olhos sequer uma sombra de desconfiança. Nem ciúmes, nem despeito, nem nada.

Ao fim de seis meses Raquel foi a um baile. Havia anos que não pisava em nenhum, e já depois de casada, recusara ir a dous. Aceitara aquele. Não teve a folgança de outro tempo, mas achou alguma cousa que podia trazê-la. Daí a aceitação do segundo em que dançou, e de mais dous. O marido fez-se sócio do Cassino Fluminense, a pedido dela.

- Com uma condição - disse Raquel -; é que uma quadrilha será nossa.

- Justo.

Assim fizeram nos dous primeiros bailes; no terceiro, já não dançaram juntos.

"Raquel casou comigo sem entusiasmo", pensava ele; "foi como quem aceita um vestido novo. Não digo novo, mas bonito, talhado à moda..."

Um dia, chegou a insinuar-lhe isto mesmo, no terraço da casa, antes do jantar. Ambos liam; ele, erguendo os olhos da página, viu que ela estava com o livro no regaço e as pálpebras caídas.

- É do livro ou do companheiro? - perguntou ele.

Raquel sorriu constrangida, mas não disse nada.

Como ele insistisse:

- É do companheiro - respondeu.

- Talvez.

- Que ideia!

- Sim, a resposta é de gracejo, mas bem pode ser exata, sem que você dê por isso. Não me há de fazer crer que lhe dou a felicidade esperada, se é que esperou alguma. Não; você casou para fugir à importunação. A liberdade era melhor; podia ser até - quem sabe? - podia ser que a sorte... Não falemos nisto!

Raquel olhava espantada. Tomás atirara o livro para um sofá e erguera-se, metendo as mãos nas algibeiras das calças. Mordia o beiço, e olhava para fora. Raquel fechou tranquilamente o livro.

- Tomás, que ideias são essas?

- Que ideias?

- Essas.

- Essas quais?

- Essas! Não compreendo nada do que você me acaba de dizer. Principalmente, não compreendo que na nossa idade... Não somos crianças, Tomás, esses arrufos são bons para os vinte anos. Pois você crê que eu viva aborrecida...?

- Não vive de outra maneira - interrompeu o marido -. Eu sinto, eu vejo, eu percebo tudo. Peço-lhe que não me obrigue a ir adiante. Olhe se os bailes a aborrecem, apesar de não ser criança? Tudo que é ir divertir-se é excelente; a minha companhia é que é um aborrecimento mortal.

Era a primeira vez que ele falava assim, em tal maneira, e com tal despeito, que Raquel sentiu-se lisonjeada. Vendo que era sincero, posto lhe parecesse esquisito, ela disse quatro ou cinco palavras amigas e alegres; ergueu-se, arrancou-lhe as mãos dos bolsos e fechou-as nas suas.

- Criança! - disse-lhe -. Pois você então pensa deveras que me aborrece? Tudo porque fechei os olhos, lendo um livro aborrecido. Ora, Tomás. Vamos, ria, ria um pouco.

- Deixa...

- Há de rir. Vamos, ria!

Tomás acabou rindo. O melhor era terminar ali mesmo o debate, e, se não estivessem expostos, terminá-lo com um beijo. Mas o riso do marido foi tão forçado que a mulher entendeu desculpar-se do que lhe parecia fastio ou indiferença. Era o modo dela. Nunca fora expansiva; a própria mãe a achava sempre assim; ia a falar do primeiro marido, mas recuou a tempo.

Um tanto vexado da cena, Tomás depressa se reconciliou; ela, por sua parte, buscou trocar de maneiras; troca difícil. Tomás não achara no casamento a realização esperada de um sonho de longos anos. Toda essa mulher, deixada em botão, achada em flor, parecia uma flor sem cheiro. Raquel sacrificou os seus bailes; passou a fazer reuniões em casa, dava jantares, cercava-se de amigas. Conseguia prendê-lo; lia até o fim, com olhos abertos, todos os livros que ele lhe dava. Entrou a censurá-lo, quando ele se demorava fora; e, em vez de ir dormir, como a princípio, deixava-se estar até uma e duas horas, quando ele voltava do teatro, nas noites em que ia só ou com algum amigo. A solicitude teve o mesmo efeito da indiferença; tudo acabou no mesmo tédio.

"Talvez o mal esteja em mim", pensou ele um dia.

E, inclinando o espírito aos tempos de solteiro, sentiu grande saudade. Para reaver um pouco da sensação antiga, convidou a mulher a uma viagem à Europa; foram, gastaram dous anos, tornaram mais conservados; mas a viagem não apertou os laços da afeição. Realmente, o consórcio era para ele mesmo um ofício novo, aprendido fora de tempo, quando a pessoa só ama e conhece outro ofício.

Já se não queixava; deixava-se ir com os anos. Vieram os cinquenta. A cunhada morreu. A casa fez-se mais deserta. Tomás, fora do voltarete, só achava prazer na rua do Ouvidor. Era ainda e sempre o mesmo homem elegante. Deleitava-se em ver passar as senhoras, mirá-las com os olhos e as ideias. Chamava a isto liberdade - uma liberdade que perdeu, que entregou por seu gosto nas mãos do casamento.

Mudando de casa por esse tempo, mandou preparar ao rés do chão um gabinete para si, exclusivo, reprodução do último aposento de solteiro. Nada havia ali que cheirasse ao casamento, nem a fotografia da mulher, nada. Era a casa do celibato, em que ele se metia duas e três horas diariamente, para viver outra vida não totalmente outra, mas algo que a lembrasse.

Raquel não se opôs à alteração nem a sentiu. Viviam em boa paz, uma santa paz bocejada e ininterrupta. Os anos vieram vindo. Um dia, Raquel caiu doente, uma febre perniciosa que a levou em poucos dias. Tomás foi dedicado, não poupou esforços de toda a espécie para salvá-la; ela morreu-lhe nos braços, ele quis acompanhá-la ao enterro. Oliveira foi ter com o amigo.

- Tomás - disse-lhe -, tu não podes viver só aqui; anda cá para casa. Arranjo-te um cômodo grande e livre; ficas a teu gosto.

- Obrigado, Oliveira; deixa-me; algum dia, pode ser.

Meteu-se no aposento de solteiro, agora de viúvo, sempre de solitário. Nada alterou na casa, em cima, onde almoçava e jantava. Fez no ano seguinte outra viagem à Europa, muito mais alegre, como um pássaro livre. Gostava da lufa-lufa de estradas de ferro, de hotéis, de teatros, de revistas militares, boulevards; foi à França, foi à Inglaterra, à Alemanha, e voltou o mesmo velho petimetre. Vinte e quatro horas depois de chegado, estava no cemitério, visitando a sepultura da mulher. Deu-lhe um mausoléu rico e belo, obra de um escultor italiano, e continuou a visitá-la naquele palácio último. Os empregados do cemitério já o conheciam.

- É o viúvo da D. Raquel - diziam eles pelo epitáfio -. Se todos fossem como este!

Não podiam crer, nem eu digo isto, que ele amasse mais a mulher morta que viva; é falso. O que se pode admitir é que ele sentia antes a perda da mulher que do casamento.

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