Conto

Um Quarto de Século

1893

Um quarto de século *

Capítulo primeiro

Eram quatro horas da tarde. Oliveira e Tomás conversavam à porta da casa do Desmarais, rua do Ouvidor, ano de 1868, quando passou do lado oposto uma senhora, vestida de preto. Oliveira disse a Tomás:

- É a viúva Sales; espera.

E, atravessando a rua, foi falar à viúva Sales, cinco a seis minutos apenas. As últimas palavras foram estas:

- Mas posso contar com a senhora?

- Mana Rita está constipada; se ela ficar boa, vamos.

- Vou rezar para que fique boa.

- Os hereges não rezam - replicou a viúva sorrindo e despedindo-se.

Oliveira tornou à porta do Desmarais. Tomás seguiu com os olhos a viúva, até que ela dobrou a primeira esquina.

- Não é possível - disse ele.

- Que é que não é possível?

- Essa viúva... É viúva de um médico, um doutor João Sales?

- Isso.

- Dona Raquel?

- Exatamente.

- Filha de um conselheiro de guerra?

- Xavier de Matos. Conheces?

- Sim, conheço, isto é, conheci. Foi há muitos anos. Está mudada.

- Um pouco mais gorda.

- Conheci-a magrinha.

- Mas não está mais velha. Queres vê-la, queres jantar com ela, lá em casa, sábado?

- Ela vai?

- Prometeu que iria, se a mana ficasse boa.

- Sim, Mariana, mais velha que ela.

- Não, Rita, mais moça. A mais velha morreu há anos; era casada com um deputado do Norte. A moça não casou. Vivem juntas.

- Vou.

- Seis em ponto.

- Em ponto.

- Bem, agora que a viste, que tens algumas notícias, que vais jantar com ela e conosco, sábado, às seis horas em ponto, quero que me digas tudo ou só metade, o que puder ser contado.

- Tudo é nada - respondeu Tomás -. Que diabo de ideia é essa?

- Meu caro, quando eu me despedi dela, tu não me viste chegar ao pé de ti; ias atrás dela com os olhos, com os ouvidos, com tudo. O coração batia-te que se ouvia cá fora como o meu relógio de parede bate as horas, nos primeiros dias da semana, por estar de corda nova. Relojoeiro, desfaz o teu relógio.

Tomás sorriu, mas não sorriu bem; parecia acanhado. Oliveira não soube ser discreto. Íntimos desde a Faculdade de Direito de São Paulo, onde se formaram, foram confidentes um do outro, até o dia em que a vida os separou; novamente ligados, Oliveira cuidava estar no mesmo ponto em que a vida os deixara antes. Tomás, pela sua parte, vacilava. Evidentemente, havia alguma cousa que dizer.

- Tudo é pouco.

- Esse pouco.

- Gostei dela em solteira, mas foi cousa que passou, como outras. Sabes que nós, por esse tempo, namorávamos a todas.

- Mas nunca me falaste desta.

- Provavelmente, falei; mas eram tantas! Bom tempo, Oliveira! Era melhor que isto de hoje com os nossos bigodes grisalhos, tu pai de filhos, eu solteirão desamparado, quarenta e quatro anos no lombo; tu tens mais três.

- Mais dous.

- Creio que já foram quatro, mas o tempo diminui tudo, começando por si mesmo.

- Vai para o diabo. Quarenta e seis, feitos em março.

Trocaram ainda algumas palavras, e despediram-se. Oliveira meteu-se no carro que estava no largo de São Francisco de Paula e foi para Andaraí. Tomás meteu-se na gôndola e guiou para o Catete.

II

Tomás de Castro Rodrigues tinha realmente alguns fios de prata nos bigodes e nos cabelos; vieram-lhe cedo e tendiam a multiplicar-se. Bonita figura, bem posta sobre uns pés pequenos, elegante, com certa graça do outono, dava ainda um noivo decente. Não casara por não achar noiva que o quisesse, dizia ele; mas, realmente, por causa de uma paixão da mocidade, esta mesma viúva Sales que passou agora na rua do Ouvidor, então Raquel, simples Raquel.

Não tomes isto ao pé da letra, para me não acusares de romantismo. É certo que ele prometeu não casar nunca, depois da paixão Raquel; mas não foi precisamente a paixão que o deixou solteiro. Esta doeu-lhe por muito tempo, fê-lo empreender uma viagem à Europa, onde se demorou quatro anos. Os quatro anos, porém, não foram gastos em suspirar. O tempo e a distância depressa o fizeram sarar; a própria vida é que o confinou na solidão. Solidão fácil, aliás, composta de prazeres, viagens, distrações amorosas e outras. Quando se afastou da Europa, tornou para o Rio de Janeiro, onde assistiu à morte do pai, que lhe deixou todos os seus bens. Tomás era filho único. Já então Raquel, tendo casado com um negociante de Pelotas, havia partido para o Sul. Tomás começou a advogar; parece que defendeu algumas causas, perdeu-as todas, ou quase todas. Não fechou a banca; mas achava meio de não se meter em muito trabalho; este foi naturalmente fugindo, de maneira que, em pouco tempo, acabaram os clientes. A banca era pretexto para ter um lugar de descanso e conversação, e dar emprego a um servente.

Assim se passaram três a quatro anos. A Europa entrou a fazer cócegas ao advogado sem causas; mas o amigo Oliveira, já então casado, deu-lhe de conselho que entrasse na política. A ideia de ser ministro foi talvez o único motivo de aceitação deste conselho por um homem que não tinha partido nem inclinações políticas. Na faculdade escrevera e falara nas liberdades públicas, no futuro dos povos, nas instituições democráticas, tudo isso, porém, sem convicção profunda nem superficial, um simples uso, uma espécie de oração necessária. Concluindo o curso, não pensou em libertar nem oprimir os povos. Agora a perspectiva ministerial fez alguma cousa; podia ser até que ele desse um bom orador, tendo sido dos melhores de seu tempo em São Paulo.

Oliveira arranjou-lhe a cadeira, por intermédio de um parente ministro; aproveitou-se uma vaga, e Tomás entrou na Câmara. No distrito que o elegeu ficou o seu nome execrado; disseram-lhe todas as cousas feias, ambicioso vulgar, intruso, lacaio de ministro, gatuno, e besta. "Não é diploma que ele leva daqui; é uma gazua", escreveu um jornal. Tomás quis rejeitar o diploma; não tinha a ambição necessária, ou qualquer sentimento equivalente, para suportar todo esse despejo de injúrias; mas Oliveira riu-lhe na cara, disse-lhe que não fosse tolo e ficasse; que os autores da palavrada não sentiam nada do que diziam, era a irritação própria da pretensão de outro candidato. Tomás obedeceu e entrou na Câmara.

Não foi ministro, proferiu dous discursos, aborreceu-se ao fim de algum tempo; cinco anos depois fazia outra viagem à Europa. Lá esteve, tornou a ir e regressou agora, há quatro meses, sem carreira, sem ambições, sem família. Conservava a riqueza, isso sim, não era gastador, vivia das rendas.

Resta dizer da paixão que primeiro o levou a andar por esse mundo. Já notei que, indiretamente, foi ela que o impediu de casar. É possível que, se houvesse de fazer vida regular, casasse e fundasse família. Raquel tinha vinte anos, quando ele a viu pela primeira vez, em um baile do Cassino Fluminense. Era linda entre as lindas. Não lhe parecendo que ela o rejeitasse, buscou relacionar-se com a família. Houve da parte dele confiança demasiada; desde que começou a ir à casa dela, Raquel retraiu-se. Mas isto mesmo tornou mais forte a paixão do rapaz - ou antes, foi isso que verdadeiramente a gerou. Até então o sentimento não passava do tom médio e comum de tantos amores que acabam em nada ou em casamento. Que motivo tinha Raquel para aceitá-lo a princípio e retrair-se depois? Talvez a lua o explique, talvez o vento. Não foi o mesmo que teve, mais tarde, para aceitá-lo novamente; aqui foi a piedade. Em verdade, a paixão do moço era tal que ela entendeu de bom aviso dar-lhe novas esperanças, e acabar casando. Pode ser que fosse assim, se ela não adoecesse daí a algumas semanas, indo para Minas, convalescer. Antes de concluído o prazo, Tomás correu a visitá-la. Esse encontro, após a ausência e a moléstia, devia desenganá-lo. Raquel desacostumara-se de o ver, não tivera saudades, não lhe escrevera apesar das cartas dele, e o acolhimento foi apenas polido, senão pior. A piedade gastara as forças na tentativa de um amor que não queria nascer. Tomás voltou desesperado.

A verdade parece ser que Raquel era, mais que tudo, desconfiada e tímida. Pelo mesmo tempo em que Tomás a cortejava, era pretendida por mais dous homens, e essa competência produziu efeito contrário ao que se devia supor. Em casa, Raquel era chamada esquisitona. Acresce que um dos dous pretendentes, depois de desenganado, casou com outra moça, amiga dela, sem intervalo de dous meses. Essa facilidade de passar de uma a outra mulher fê-la ainda mais tímida e desconfiada. Tinha medo de entregar-se. De resto, foi a própria violência do amor de Tomás que o perdeu. Raquel achou a nota excessiva e teve medo. A separação fez-se com dor para ele, naturalmente sem saudade para ela. Nenhum pretendente os separou. Foi só depois que apareceu o negociante de Pelotas, sem paixão, apresentado pelo pai, como moço de muito futuro, e sério. Sales tinha trinta anos. Raquel aceitou-o sem combate nem entusiasmo; casou e partiu. Já Tomás estava na Europa.

Sales, negociante de Pelotas e doutor em medicina, liquidou a casa no fim de poucos anos e veio para o Rio de Janeiro. A ideia dele era viver uma vida elegante, participar de todos os prazeres da alta roda da capital. Contava com o papel eminente que caberia à mulher, agora mais bela que nunca. Assim foi. Em poucas semanas, em três meses, o nome de Raquel andava em todas as bocas, a pessoa, em todos os bailes e teatros. Toda a gente a conhecia na rua. Sales comprou uma carruagem e uma parelha de cavalos ingleses. A primeira modista era dela. Não eram dela as primeiras modas porque vinham feitas da Europa; mas entre as primeiras divulgadoras de um corte, de uma fazenda ou de um chapéu, estava a bela Raquel - ou a bela Sales, como iam dizendo alguns, até que este nome se generalizou.

Pouco mais de um ano bastou a cansar o marido. Os hábitos do comércio ou da província - os dele, ao menos - não se podiam casar com a vida agitada, que ele mesmo quisera e escolhera. Os bailes pareciam-lhes tristes, ao cabo de um ou duas horas. Quando havia jogo, Sales atirava-se às cartas, enquanto a mulher valsava ou polcava. Gostava mais do teatro, e particularmente do teatro lírico; mas, se a primeira e segunda estação o encantaram, a terceira entrou a aborrecê-lo. Em casa, recebia bem e estava mais a gosto; mas, tudo somado, a realidade da vida elegante não correspondia à expectação. Além do mais, para um homem afeito às lidas do comércio, a vida ociosa era pesada e vazia. Não sabendo que fazer do tempo, Sales lembrou-se de exercer a medicina. Curava de graça; não lhe faltavam doentes, e atrás deles a reputação. Assim passou alguns anos, até que ele próprio adoeceu, e, mais infeliz que os seus enfermos, sucumbiu.

III

No sábado marcado, Tomás acudiu a Andaraí, onde já achou a viúva. Oliveira tinha anunciado a vinda do amigo, mas nem então, nem quando este chegou, houve da parte de Raquel a menor emoção. Ela falou ao namorado de outros dias, como se nada houvesse passado entre ambos, em bem ou em mal. Oliveira fê-los sentar, à mesa, ao pé um do outro; mas a vizinhança não alterou a disposição da viúva.

Tomás achou-a ainda bela, e, a muitos respeitos, melhor. Trinta e sete ou trinta e oito anos, é o que devia ter. Era conversada, interessante, atenta, falando de tudo e bem, sem excesso, sem impertinência, calando a tempo, tudo isso com uma boca fresca e uns olhos capazes de paixão e de mando. Assim pareceram eles a Tomás, que estava comovido e ia-se sentindo acanhado. Para um homem vivido, o estado era inexplicável, se não fora a situação especialíssima. Ele supôs, e qualquer pessoa o suporia, que o longo celibato e a diferença dos tempos o teriam armado contra essa senhora, e foi o contrário. Já não falo dos termos da separação de outrora, que eram um atrativo mais, não diminuído pela viuvez. A viuvez era antes um pico.

Raquel demorou-se pouco. A irmã, que estava presente, embora restabelecida, não podia apanhar sereno e a noite esfriava. Foi a razão dada pela viúva Sales para sair e não cantar, como lhe pedia Oliveira.

- Uma só daquelas músicas espanholas, que a senhora canta com tanta graça.

- Deixei a graça em casa; fica para outra vez.

A mulher de Oliveira ofereceu-lhes pousada por uma noite. Era impossível que D. Rita saísse; podiam ficar; iria levá-las no dia seguinte. Raquel não aceitou nada e despediram-se às nove horas. Tomás não ousou apertar fortemente a mão que ela lhe estendeu, à despedida, posto que esse fosse o seu desejo; tocou-lhe apenas nos dedos. Entretanto, esperava que ela lhe oferecesse a casa, e Raquel não lhe ofereceu cousa nenhuma.

Oliveira deu o braço a D. Rita, até o carro, deixando ao amigo a fineza de ir com a viúva. Tomás aproveitou o favor. Entre a casa, que ficava no centro de uma chácara, e a rua havia cerca de trinta passos; Tomás fê-los compridos como léguas, sem achar uma palavra que dizer. Sentia o braço dela no seu, francamente pousado, sem cerimônia nem medo, e a sensação que isto lhe dava ainda mais lhe atava a língua. Enfim, chegaram ao carro.

- Obrigada - disse-lhe Raquel estendendo a mão.

Quando o carro partiu:

- Que tal a achaste? - perguntou Oliveira.

- Achei-a bem.

- Estavas pálido.

- Eu?

- Deixa ver a tua mão; está fria. Seriamente, tu sentiste alguma cousa.

- Cousa nenhuma; tive recordações, mas, aos quarenta e quatro anos, as recordações são como brinquedos velhos e quebrados. Achei-a elegante. Queres que te diga? Mais distinta que em solteira.

- Mais senhora, mais tranquila. O que tu queres dizer é que, em solteira, dava-te as mãos para que as beijasses.

- Nunca lhe beijei as mãos.

- Nunca! Nem os olhos?

- Menos ainda os olhos. Era muito arisca.

Tinham subido a escada de pedra, e parado à porta da sala de visitas. Oliveira pegou na mão do amigo, e, depois de alguns segundos:

- Se resolveres casar com ela, fala-me - disse.

- Casar?

- Fala-me - repetiu Oliveira.

- Tu estás tonto...

- Não é conselho que te estou dando; digo-te só que, se resolveres, estou pronto a servir de terceiro. Faz-se isto aos amigos velhos. Tu estás velho.

- Um pedido; não digas nada à tua mulher.

- De quê?

- Do que houve entre mim e Raquel.

- Já sabe. Contei-lhe tudo hoje de manhã; mas descansa, é discreta. Anda tomar uma xícara de chá; tens as mãos frias...

Tomás foi acabar a noite em um teatro. Não perdeu o sono, e acordou à hora do costume. Entretanto, a segunda ou terceira ideia que lhe acudiu, depois de acordado, foi a formosa viúva. Gostou de pensar nela; reconhecia que ela fora apenas polida, nem sequer faceira, nada que revelasse o desejo de lhe parecer bem. Durante uma semana pensou muitas vezes em Raquel. Chegou a esperá-la na rua do Ouvidor. Sabendo onde morava, passou por lá duas vezes, sem a ver. Quinze dias depois do jantar, indo a Niterói, achou-a na barca. Ia só, com um véu pelo rosto, e parece que o vira, porque voltou a cara para o lado do mar. Tomás hesitou um instante; afinal foi cumprimentá-la. Raquel falou-lhe com afabilidade; ele sentou-se no mesmo banco.

- Há de crer que não vou à Praia Grande há dez anos? - disse ele.

- Eu, há dous meses. Vou visitar uma tia que está doente.

- Uma tia? Não me lembra - aventurou Tomás.

- Uma tia do finado.

O finado era o marido. Raquel referiu-lhe a moléstia, a idade, os costumes da pessoa, como se fossem cousas que o interessassem. Depois falou do mar. Depois falou do céu. Tudo como quem mata a alfinetadas um tempo que não quer morrer. Tomás pouco dizia; todo ele era ouvidos para escutá-la, olhos para vê-la, com os seus ombros fortes, as mãos finamente enluvadas, e os olhos, que pareciam de esfinge, agora que o véu os cobria. Pareciam ao nosso herói; ele é que o dizia consigo, romanticamente, não eu, que apenas traduzo aqui o próprio sentir do solteirão. Esfinge era imagem velha; mas tinha para ele a mocidade da sua mocidade.

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