Romance

Ressurreição

1872

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Ressurreição é o primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.

Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma "Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida; na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e, ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a tradução que constava na publicação de 1872.

Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e, por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas de maneira mais sorrateira.

Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à "primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "cômplice" "cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de "atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada ("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta), por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala [...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir, na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.

Esta não pretende ser uma edição crítica, nela não há notas editoriais. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ


agosto de 2008

XI

O PASSADO

- Serei indiscreto perguntando que passado foi esse? - disse Félix depois de alguns instantes.

- Oh! Descansa! Não me pesa nada na consciência; mas no coração...

- Amaste alguém?

- Amei a meu marido.

A esta resposta de Lívia seguiu-se novo e longo silêncio. A memória do passado a que ela tão misteriosamente aludira parecia doer-lhe na alma. Arfava-lhe o seio, e as mãos, em que o médico amorosamente tocou, estavam geladas e trêmulas.

- Não acreditas que eu possa compreender-te melhor que os outros? - perguntou finalmente o médico.

- Talvez não.

Félix fez um gesto de despeito. A moça arredou o vestido e abriu espaço no sofá, onde o médico se sentou a um sinal dela.

- Talvez me não compreendas melhor que os outros - continuou Lívia - e com isto não quero dizer que sejas tão vulgar como os mais deles. Não o és; mas há cousas que um homem dificilmente compreenderá, creio eu.

- Nem quando ama? - perguntou Félix.

Lívia não respondeu; Félix continuou:

- Mas que passado foi esse? Posso não compreender-te, como dizes, mas saberei dizer-te algumas palavras de consolação, e dissipar com elas a tristeza que te ficar desta confidência, que não é um remorso, decerto.

- Amei a meu marido - começou Lívia - e toda a minha confidência se resume nessas poucas palavras. Tive uma paixão da primeira idade, quando o amor vem surpreender a ignorância do coração. Será esse o amor mais forte? Há quem diga que o primeiro amor nasce apenas da necessidade de amar. Pode ser. Hoje que te amo sinto que pode ser assim. Em todo o caso, aquele afeto dominou-me toda; cobrei uma vida que me parecia imortal.

- E ele?

- Amava-me, creio, mas não entendíamos o amor do mesmo modo; tal foi o meu doloroso e tardio desencanto. Para mim era um êxtase divino, uma espécie de sonho em ação, uma transfusão absoluta de alma para alma; para ele o amor era um sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal, sem ardores, sem asas, sem ilusões. Erraríamos ambos, quem sabe?

- Vejo que eram incompatíveis - interrompeu Félix -; mas, por que exigir de todos essa maneira de ver e sentir, que é mais da imaginação que da realidade?

Lívia levantou os ombros.

- Estou explicando a situação da minha alma - continuou ela -. Foi aflitiva e triste; não lha ocultei. Riu-se de mim. Era um homem apático e frio; honesto, é verdade, e bom coração, mas falávamos língua diversa e não nos podíamos entender. Confiei todavia na influência do amor. Empreendi a tarefa de o trazer à atmosfera dos meus sentimentos, errada tentativa, que só me produziu atribulação e cansaço. Fatigava-o com isso a que ele chamava pieguices poéticas; da fadiga passou à exasperação, da exasperação ao tédio. No dia em que o tédio apareceu conheci que o mal estava consumado. Quis emendá-lo e não pude. Tinha feito da nossa vida conjugal um deserto; e se a minha alma clamava contra o destino, minha consciência me acusava de um erro, o erro de haver perturbado a paz doméstica, a troco de um sonho que não veio. Não me faço melhor do que sou, bem vês; mas uma parte da culpa não será da natureza que me fez tão pueril? Tal é o meu receio agora - continuou Lívia depois de alguns segundos de silêncio -; às vezes cuido que não vim ao mundo para ser feliz nem para dar a felicidade a ninguém. Nasci defeituosa, parece. Serás tu capaz de desfazer a apreensão ou corrigir o defeito?

A viúva concluiu estendendo-lhe a mão, que o médico apertou entre as suas. Um sorriso de simpatia ou de comiseração, ou de ambas as cousas juntas, entreabriu os lábios de Félix. Nenhum deles falou; ambos pareciam conversar consigo mesmo. Enfim, a viúva repetiu a pergunta.

- Talvez possa dissipar-te a apreensão - respondeu Félix -; mas, creio que não será fácil. Tens um coração ainda muito criança, e que o há de ser até a morte, penso eu.

Félix calou-se, e contemplou à vontade a fisionomia da viúva, que tinha os olhos postos no chão, absorta e pensativa. A pouco e pouco o rosto do médico se foi igualmente fechando, e ambos, durante largo espaço, se deixaram ir na corrente de seus pensamentos sombrios. Félix foi o primeiro que despertou do letargo.

- Naufragaste à vista de terra - disse ele -, e do naufrágio trouxeste apenas úmidos os vestidos. Sabes o que é naufragar em mar alto e solitário, e perder tudo, até a vida? Foi assim comigo.

- Sim? - disse Lívia com um tom em que a alegria se misturava à curiosidade.

Félix não pôde reter um sorriso.

"O infortúnio é egoísta", pensou ele.

E continuou:

- Sim, perdi muito mais. Abraçar um cadáver, que é isso para quem já abraçou uma serpente? Tu perdeste apenas alguns anos de amor mal compreendido; não perdeste um bem precioso, que o tempo me levou: a confiança. Podes hoje ser feliz do mesmo modo que o querias ser então; basta que te ame alguém. Eu não, minha querida Lívia, falta-me a primeira condição da paz interior: eu não creio na sinceridade dos outros.

Aqui parou como se esperasse alguma observação da viúva; ela, porém, olhava para ele tranquila e até risonha. Félix continuou as suas confidências do passado. Eram histórias de afeições malogradas e traídas, contadas com sincera expansão, como se estivesse falando a si mesmo. Às vezes a comoção fazia tremer-lhe a voz, e nessas ocasiões, sobretudo, lia-se nos olhos da moça o enlevo com que ela ouvia falar-lhe o coração.

- Ninguém esperdiçou mais generosamente os afetos do que eu - continuou o médico -, ninguém mais do que eu soube ser amigo e amante. Era crédulo como tu; a hipocrisia, a perfídia, o egoísmo nunca me pareceram mais que lastimáveis aberrações. Meu espírito criara um mundo seu, uma sociedade platônica,- em que a fraternidade era a língua universal, e o amor, a lei comum. Deixei-me ir assim, rio abaixo dos anos, gastando a seiva toda da juventude, sem cálculo nem arrependimento, até que me bateu a hora das decepções funestas.

Calou-se. Sentira um rumor próximo; era Viana que passeava na chácara entregue às suas combinações de horticultura. Ouviria ele a voz de Félix? Parece que sim, porque a pouco e pouco se foi afastando do lugar. Os dous ficaram outra vez sós. O médico prosseguiu:

- Não me caíram as ilusões como folhas secas que um débil sopro desprega e leva, foram-me arrancadas no pleno vigor da vegetação. Não me deixaram essas doces recordações, que são para as almas enfermas como que uma aura de vitalidade. Meu espírito ficou árido e seco. Invadiu-me então uma cruel misantropia, a princípio irritada e violenta, depois melancólica e resignada. Calejou-se-me a alma a pouco e pouco, e o meu coração literalmente morreu.

Félix continuou a narração por este mesmo tom elegíaco e triste. Foi longa e fiel. Se a viúva não o escutasse só com o coração, poderia perceber alguma cousa mais do que ressentimento e amargura. Félix não era virtualmente mau; tinha, porém, um cepticismo desdenhoso ou hipócrita, segundo a ocasião. Não perceberia só isso; veria também que a natureza fora um tanto cômplice na transformação moral do médico. A desconfiança dos sentimentos e das pessoas não provinha só das decepções que encontrara; tinha também raízes na mobilidade do espírito e na debilidade do coração. A energia dele era ato de vontade, não qualidade nativa: ele era mais que tudo fraco e volúvel.

Lívia não percebia nada disto; escutava-o com a fé pia de um coração amante. Sabendo que a razão do atual abatimento eram os infortúnios passados, ela confiava de si mesma o renovar aquela alma que envelhecera antes do tempo. Tais foram as suas consolações quando o médico terminou a longa confidência. Ele agradeceu-lhas comovido, não sem lhe perguntar se ela teria força bastante para concluir essa missão piedosa.

- Tenho - afirmou Lívia.

- É certo que me ressuscitaste - continuou o médico -; e se o futuro me guarda ainda alguns dias de felicidade sem mescla, a ti só os deverei, minha boa Lívia; tu só haverás feito o milagre. Mas...

- Mas? - repetiu a moça com impaciência.

- A obra não está completa - continuou Félix -; metade apenas. Fizeste brotar dentre as ruínas uma flor solitária, mas bela; única neste árido terreno do meu coração. Não basta; é preciso agora um raio que a anime e lhe conserve o perpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas a de todos os dias, a que não falece nunca e nos restitui a serenidade dos primeiros tempos. Sem ela, o meu amor será um largo e inútil martírio.

Dizendo isto, conchegou-a ao seio; tocavam-se quase os rostos, que a ternura, não a voluptuosidade, enlanguescia. Não foi longo esse instante de mútua contemplação, mas valeu por muitas horas de prática. Se a vida pudesse ser eternamente aquilo, é provável que o coração de Félix adquirisse a paz que almejava. Enfim, a moça deixou cair o corpo, como se lho debilitasse o peso de comoções tão vivas, e a palavra afluiu aos lábios de ambos.

Falaram então em prosa; conversaram de seus projetos de futuro, dos arranjos do casamento, de uma viagem que fariam logo depois. Iam levantar-se quando ao longe lhes apareceu o irmão de Lívia. Caminhava apressadamente e alegre, ao encontro dos dous namorados. Félix compôs o rosto com a expressão que o caso pedia; Viana aproximou-se, e disse à irmã que o Coronel Morais estava na sala com a filha.

Lívia pediu licença ao médico e dirigiu-se para a casa. Félix deu o braço a Viana.

- Falávamos das suas reformas - disse ele - e fazíamos prosaicamente o orçamento da despesa que vai ter.

Viana sorriu-se à socapa, mas não deixou cair o assunto no chão. Falou com volubilidade dos seus planos, que eram vastos e originais, concluindo por uma singela confissão, acompanhada de um olhar indagador.

- Receio - disse ele - que a Lívia se case mais tarde ou mais cedo.

Félix limitou-se a sorrir com indiferença; entravam ambos na sala.

XII

UM PONTO NEGRO

Lívia e Raquel estavam assentadas no sofá; o coronel, encostado a uma cadeira, consultava o relógio. Não consultava; tinha o relógio na mão, diante dos olhos, mas os olhos reviam-se na filha, enquanto esta respondia às perguntas da viúva.

- Aqui está a doente - disse Lívia apenas viu assomar à porta da sala o médico e o irmão.

Raquel voltou a cabeça, e não pôde reter uma exclamação de surpresa e de alegria. Félix adiantou o passo e foi apertar-lhe a mão.

- Então? Não está salva? - disse ele olhando alternadamente para as duas moças.

- Foi o senhor que a salvou - disse o coronel chegando-se ao grupo.

- Não fui; auxiliei a natureza, nada mais.

- Havemos de pô-la totalmente boa e viva como era antes - disse Lívia dando um beijo na convalescente.

Raquel ouviu este diálogo com um sorriso triste que parecia ainda mais triste naqueles lábios sem cor. Estava extremamente pálida e magra; os olhos, agora que o fogo da febre se apagara neles, pareciam amortecidos e fundos. Ainda assim, não perdera ela a sua natural gentileza. Mais: a própria morbidez do aspecto como que lhe dava realce maior.

Talvez essa circunstância influísse na impressão que o médico agora recebia; pela primeira vez lhe pareceu Raquel uma mulher.

O coronel respirava felicidade por todos os poros. A alegria que perdera durante a moléstia da filha, voltava agora mais que nunca ruidosa e comunicativa. Era um velho palreiro e jovial, amigo da palestra e de anedotas, antes gracioso que chocarreiro, tendo aquela amável gravidade com que a gente se familiariza sem perder o respeito. De quando em quando olhava para a filha com olhos paternalmente namorados, então parecia esquecer-se do resto do mundo, porque o mundo inteiro, ao menos parte dele, que a outra parte lhe ficara em casa, estava ali resumida naquela franzina e alquebrada criatura.

- E promete-me que ma restituirá - disse ele à viúva -, não corada, que ela nunca o foi, mas com aspecto de saúde, viva como era, e alegre, e até se quiser travessa?

- E por que não? Os ares são bons; os carinhos serão fraternais, e melhor que os ares e os carinhos, há de curá-la a natureza, e creio também que a boa vontade dela. Não é assim? - disse Lívia batendo na face de Raquel.

A resposta de Raquel foi dar-lhe um beijo, e sorrir, não já tristemente como da primeira vez. A tarde caíra de todo. O coronel fez algumas recomendações derradeiras à filha, agradeceu à viúva e ao médico, meteu-se no carro e voltou para Catumbi. Lívia foi mostrar à amiga o seu aposento; Félix despediu-se de ambas e dirigiu-se para a porta.

- Volta? - perguntou Lívia.

- Talvez não, minha senhora - respondeu Félix, cuja intenção positiva era ir lá tomar chá.

A presença de Raquel veio de algum modo alterar as relações dos dous namorados. Já não podiam ser frequentes as entrevistas solitárias em que ambos se esqueciam do mundo e de si. Mais que nunca, procurou Félix recatar o seu amor das vistas alheias, por modo que, apesar da convivência que tinha com os dous, Raquel nada suspeitou entre eles. Alguma cousa adivinharia se reparasse que a viúva, quando estava com ela, quase que só falava do médico; mas, como ela também não falava de outra pessoa, parecia-lhe que era antes a viúva quem a imitava.

Por esse tempo começou Meneses a frequentar a casa de Viana, com quem travara relações alguns meses antes. Félix fez a respeito dele um elogio sincero e merecido. O parasita acompanhou a boa opinião do médico com um entusiasmo que cheirava a bons jantares. O advogado correspondeu à expectação da viúva e não tardou que se tornasse familiar na casa.

Estava curado da sua malfadada paixão. Curado e vexado, dizia ele, quando Félix o interrogou a esse respeito.

- Estes amores são as lições da escola de meninos - concluiu Meneses sorrindo -. Já saíste da primeira escola; por que não sobes de estudos?

A esta metáfora, um tanto rebuscada, respondeu Félix com um sorriso que podia confessar e negar ao mesmo tempo. Meneses, que não tinha nenhuma intenção oculta nas suas palavras, não se deu a averiguar qual das duas expressões convinha ao sorriso do amigo. As relações de ambos pareceram estreitar-se mais. Com um pouco mais de expansão e confiança, teria o médico referido ao amigo os seus amores e a sua felicidade próxima. Não o fez, nem Meneses lho adivinhou. Teve suspeitas uma noite em que surpreendeu os olhos da viúva amorosamente cravados no médico, mas a indiferença com que este se levantou para ir gracejar com Raquel de todo o dissuadiu.

Os dias foram assim passando, longos para os dous amantes, breves para Meneses e Raquel, que achavam naquela casa a mais deliciosa companhia deste mundo.

Aqui podia acabar o romance muito natural e sacramentalmente, casando-se estes dous pares de corações e indo desfrutar a sua lua de mel em algum canto ignorado dos homens. Mas para isso, leitor impaciente, era necessário que a filha do coronel e o Dr. Meneses se amassem, e eles não se amavam, nem se dispunham a isso. Uma das razões que desviavam da gentil menina os olhos de Meneses era que este os trazia namorados da viúva. De admiração ou de amor? Foi de admiração primeiro, e depois foi de amor; cousa de que nem ele, nem o autor do livro temos culpa. Que quer? Ela era formosa e moça, ele, rapaz e amorável, e de mais a mais, inexperiente ou cego, que não adivinhava a situação anterior da viúva e do médico, ainda por entre os véus com que lha ocultavam.

Ao inverso de Félix, cujo espírito só engendrava receios e dúvidas, Meneses era antes de tudo propenso às fantasias cor-de-rosa. Irmanavam-se no ponto de serem joguetes de sua imaginação. Meneses facilmente entreviu um mundo de esperanças. A afabilidade com que a viúva o tratava pareceu-lhe auspiciosa; o mais inocente de todos os sorrisos servia-lhe de base a um castelo de vento; uma expressão qualquer, simples cortesia de sala, afigurava-se-lhe cheia de mil promessas de futuro. Nem futuro nem esperanças havia; havia a candura dele, que era botão de flor, ainda entrefechado à corrupção da vida.

Tal era o contraste desses dous caracteres, que a estrela da viúva, não sei se boa ou má estrela, reuniu a seus pés. Um, se viesse a adorar um rosto hipócrita, desceria na escala das degradações, com os olhos fitos na quimera da sua felicidade; outro, ardendo pela mais angélica das criaturas humanas, quebraria com as próprias mãos a escada que o levaria ao céu.

Félix percebeu, enfim, o que se passava no coração do amigo. Sua primeira impressão foi de cólera, não porque duvidasse logo da moça, mas por isso mesmo que outro homem se atrevia a amá-la. E não havia perigo em tal situação? A simples pergunta era suficiente para dar largas ao espírito de Félix. Veio imediatamente a ideia de que à moça não fosse desagradável o amor de Meneses. A vaidade, primeiro, depois o hábito, enfim a curiosidade do coração, os levariam um para o outro. Talvez os houvessem levado já.

Aconteceu uma vez que, falando dela, a fisionomia de Meneses, de risonha que estava, se tornasse subitamente séria. Félix era mais hábil que ele, não lhe foi difícil sondar-lhe o coração. O amigo contou-lhe tudo, com o fervor que lhe era próprio, e a singeleza de um homem ainda pouco conversado nas cousas do mundo. O médico escutou-o com sofreguidão, mas aparentemente quieto.

- E esperanças? - disse ele.

- Poucas ou muitas; não sei bem o que seja. Há ocasiões em que tudo se me afigura fácil e decisivo; outras vezes desanimo e descreio de mim mesmo. Ela é afável comigo, mas também o é contigo e com os mais. Adivinharia já alguma cousa? Quero crer que sim, e visto que se não agasta, é bom sinal, penso eu. O pior de tudo é que eu me não atrevo a dizer-lhe o que sinto.

Uma só palavra bastava ao médico para arredar do seu caminho aquele rival nascente; Félix repeliu essa ideia, metade por cálculo, metade por orgulho - mal-entendido orgulho - mas natural dele. O cálculo era cousa pior; era uma cilada - experiência, dizia ele -, era pôr em frente uma da outra duas almas que lhe pareciam, por assim dizer, consanguíneas, tentá-las a ambas, aquilatar assim a constância e a sinceridade de Lívia.

Assim pois, era ele o artífice do seu próprio infortúnio, com as suas mãos reunia os elementos do incêndio em que viria a arder, senão na realidade, ao menos na fantasia, porque o mal que não existisse depois, ele mesmo o tiraria do nada, para lhe dar vida e ação.

Meneses explicou ainda mais o estado de sua alma; não era amor violento que sentia, era afeição serena e branda: tranquila, mas irresistível fascinação. O médico, por um sentimento de pudor que lhe ficara, não animou abertamente as esperanças do amigo; entretanto, a sua palavra era tão alegre, o riso de tão boa feição, que o espírito de Meneses para logo sentiu reflorirem-lhe as esperanças, se é que elas haviam secado alguma vez.

XIII

CRISE

Lívia não percebeu logo o amor de Meneses; mas, era impossível que tarde ou cedo o não suspeitasse. Não se fingiu admirada, quando ele lho confiou depois de algum tempo de assiduidade nas Laranjeiras. Nem se admirou nem se irritou; além de não ser motivo para cólera, havia entre ambos, como Félix dissera um dia, certa conformidade de sentir e pensar, que de algum modo os vinculava.

A resposta que lhe deu foi certamente fria e decisiva, não desdenhosa nem severa. Quando viu porém a tristeza que lhe causou, esqueceu de todo as formalidades convencionais e necessárias; procurou suavizar as penas do moço. Tirou-lhe toda a esperança presente ou futura; não poderia amá-lo nunca. A amizade, porém, que lhe tinha, talvez o consolasse do desengano. Isso apenas; não devia simular um amor que não sentia nem acenar-lhe com uma felicidade que lhe não podia dar.

- Que me não pode dar! - repetiu Meneses apegando-se ainda a uma esperança fugitiva -; e se eu esperar que algum dia soe a hora da felicidade que me nega? Nada depende de nós; os próprios movimentos do coração parecem nascer de mil circunstâncias fortuitas, se não é que os rege uma lei misteriosa, e essa... Quem sabe? Um dia, talvez - ouso crê-lo -, um dia sentirá que a simpatia que lhe inspiro se transforma, e...

- Basta! - interrompeu Lívia em tom imperioso.

Meneses calou-se; ela continuou:

- O amor não é isso que o senhor diz; não nasce de uma circunstância fortuita, nem de uma longa intimidade, é uma harmonia entre duas naturezas, que se reconhecem e completam. Por mais semelhante que seja o nosso espírito, sinto que Deus não nos fez para que o amor nos unisse.

Meneses não estava para estas averiguações teóricas; é até duvidoso que prestasse atenção às últimas palavras da viúva. O quimérico edifício que tão laboriosamente construíra, via-o ele desfazer-se em fumo, e esta só impressão o dominava agora.

Decorreu algum tempo de completo e acanhado silêncio. Estavam encostados à janela que dava para o jardim. Meneses não ousava levantar os olhos para ela; não era só natural vexame da posição em que se achava, era também medo de contemplar ainda uma vez o bem que perdia. Lívia compreendia esse estado da alma do moço. Lastimava - quem sabe? - não ser ele o escolhido do seu coração. Era o mais que lhe podia dar, e era muito. Enfim:

- Fiquemos amigos - disse ela -. A amizade lhe fará esquecer o amor; é mais serena que ele, e talvez menos exposta a perecer. Conheço que sou egoísta; peço-lhe uma cousa que só a mim aproveitará. Amigos, não lhe será difícil achá-los; eu não os acharia tão facilmente nem tais como o senhor.

Meneses tocou levemente na mão que ela lhe estendeu ao terminar estas palavras. O pedido que ela lhe fazia era mais afetuoso que judicioso; a um coração desenganado não há imediatamente compensações possíveis nem eficazes consolações. A bondade da viúva o comoveu todavia; ia agradecer-lhe quando Raquel entrou na sala.

Raquel estacou. Ambos estavam acanhados. A viúva foi a primeira que rompeu o silêncio chamando a filha do coronel. Que queria dizer o sorriso benévolo, mas sonso, que lhe pairava nos lábios? Não o viu Meneses, que olhava para fora, mas viu-o a viúva e estremeceu.

Meneses não voltou lá durante uma semana; prolongaria a ausência, se o amor, fecundo de ilusões, lhe não houvesse enchido o peito de esperanças novas. Lívia tratou-o com a costumada afabilidade, talvez com afabilidade maior. Como a confiança de Félix não se havia alterado, Lívia usava assim uma dissimulação honesta, por simples motivo de piedade e gratidão. Estava no seu caráter este modo de interpretar as cousas, e de as tratar assim sem grande respeito às conveniências sociais. Profanas, diria eu antes, se quisesse exprimir os verdadeiros sentimentos da viúva, que achava naquela obra de simpatia uma espécie de missão espiritual.

Às missionárias daquela espécie, se as há, desejo-lhes maior perspicácia ou mais feliz estrela. Nem a estrela nem a perspicácia da nossa heroína estavam acima do seu coração. O sentimento que a impelia era bom; o procedimento é que era errado. Ela não atentava nisso. Interrogava o rosto do médico, mais confiante e alegre que nunca, e só isto lhe bastava a seus olhos. Fossem eles menos namorados, e veriam que a tranquilidade de Félix era tão exagerada e fora dele, que não podia ser sincera.

A esses erros e ilusões, que podiam conter os elementos de um drama não remoto, veio juntar-se ainda a ilusão de Raquel. Esta aplaudia sinceramente os sentimentos que atribuía à viúva em relação a Meneses; o sorriso com que os surpreendera não queria dizer outra cousa. Fê-lo sentir um dia à viúva; a energia com que ela lhe respondeu mais a persuadiu ainda. Lívia quis então referir-lhe tudo, o verdadeiro objeto do seu amor e o seu próximo casamento; mas, posto que a idade não as separasse muito, Lívia considerava-a ainda criança e reprimiu o seu primeiro impulso.

Raquel ficou com as suas suspeitas.

Perdoemos agora à inexperiência da boa moça - criança, como dizia a viúva - a leviandade com que insinuou ao médico as suspeitas que alimentava. Fê-lo por meio de alusão delicada e fina numa ocasião em que o pedia a conversa. O golpe foi profundo, a prova pareceu decisiva desta vez.

Raquel notou a impressão do médico. O sorriso inocente e brincão que lhe entreabria os lábios repentinamente se lhe apagou. Félix olhava para ela sem ver a mudança que se lhe havia operado. Viu-a enfim, mas não a entendeu. Tentou fazer-se galhofeiro como sempre fora com ela; conseguiu fazê-la sorrir.

Os dias que se seguiram a este foram de triste provação para a viúva. Sabemos já que o ciúme de Félix era às vezes ríspido. Nunca o fora mais que desta vez. Longas cartas trocaram ambos, amargas as dela, as dele friamente cruéis e chocarreiras. Félix não lhe disse logo a causa desta nova crise: adivinhou-a Lívia, e tudo lhe contou lealmente, sem lhe negar a boa intenção com que tratava o coração de Meneses. Era mostrar-se muito pouco mulher. Félix viu em tudo aquilo um tecido de absurdos.

O que lhe disse então foi o transunto das cartas que lhe escrevera. Grosseiro, irônico, incoerente, tudo isso foi nas palavras com que fulminou a pobre senhora.

Lívia não protestava. Quis interrompê-lo uma vez; quando ele acabou nada achou que lhe merecesse resposta. Estavam na sala. Olhou assustada para todas as portas, deixou-se cair frouxamente numa cadeira e tapou o rosto com as mãos.

Félix deu um passo para ela; o movimento era bom, mas o arrependimento veio logo.

- Adeus! - disse ele.

A moça descobriu o rosto.

- Félix! - exclamou ela.

O médico parou alguns instantes. Lívia levantou-se e foi a ele arrebatadamente. Chegou a pegar-lhe numa das mãos, abatida e lacrimosa ia começar uma última súplica. Ele porém puxou a mão violentamente, olhou para ela, e depois de longo silencio, repetiu:

- Adeus!

A+
A-