Romance

Ressurreição

1872

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Ressurreição é o primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.

Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma "Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida; na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e, ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a tradução que constava na publicação de 1872.

Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e, por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas de maneira mais sorrateira.

Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à "primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "cômplice" "cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de "atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada ("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta), por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala [...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir, na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ


agosto de 2008

VIII

QUEDA

O desenlace desta situação desigual entre um homem frio e uma mulher apaixonada parece que devera ser a queda da mulher; foi a queda do homem. Para triunfar da viúva, Félix contava apenas com a sua resolução; mas a viúva, além do seu amor, tinha dous auxiliares ativos e latentes: o tempo e o hábito. Cada dia que passava caía como uma gota d'água no coração do médico e ia cavando fundo com a fria tenacidade do destino.

Ironia da sorte chamará o leitor a este desfecho de uma situação que, algumas semanas antes, tão outra se lhe afigurava. Chame-lhe antes lógica da natureza, porque o coração de Félix, que aparentava ser de mármore, era simplesmente da nossa comum argila. Não era seguramente um coração virginal e puro; tinha uma certa dose do egoísmo que a natureza maternalmente repartiu por todos os homens, e não se pode dizer que não fosse algum tanto céptico; mas estes senões, exagerava-os ele de maneira que veio a perder, na imaginação dos outros, a sua fisionomia original.

As armas com que lutava eram certamente de boa têmpera, mas, se valiam muito para esgrimir, valiam pouco para pelejar. Com uma mulher que apenas tivesse a soma de afeto necessária para dissimular o erro, o nosso herói ficaria na altura da reputação; mas o amor da viúva era um verdadeiro combate. Quando Félix chegou a encarar-lhe o coração, sentiu a fascinação do abismo, e caiu nele.

Esta queda, como disse, foi lenta; o médico começou a sentir que a presença da moça era para ele uma necessidade. Pesavam-lhe as ausências mais longas, e, o que era mais, vinham suavizar-lhas umas saudades, que ele definia por outro modo, mas que, em suma, eram saudades. Quando a ia ver, e à proporção que se aproximava dela, sentia bater-lhe alguma cousa dentro do peito; o médico dizia que era o sangue ainda juvenil e irrequieto. Seria uma razão fisiológica; mas havia também uma razão moral; era a lava da paixão que se ia formando e subindo até romper a garganta do vulcão. Longa foi a gestação do amor; mas quando o médico descobriu o estado de sua alma, não era centelha que se pudesse abafar, mas incêndio que lavrava e consumia tudo.

Decidam lá os doutores da Escritura qual destes dous amores é melhor, se o que vem de golpe, se o que invade a passo lento o coração. Eu por mim não sei decidir, ambos são amores, ambos têm suas energias. O de Félix parecia ter criado no silêncio uma força invencível.

Um potro arisco e selvagem, quando a mão do homem lhe põe o freio pela primeira vez, não se irrita mais do que o nosso herói no dia em que sentiu violada a liberdade do seu coração. Cólera singular e insensata, mas amarga e sincera. Planeou desde logo uma separação violenta, que lhe desse tempo e armas para vencer-se a si próprio. A execução seguiu de perto a ideia; e o médico cessou repentinamente as suas visitas a Catumbi.

A ausência, porém, foi ainda um auxiliar da viúva. O despeito do médico não se aplacou, transformou-se; não acusava já a fraqueza do coração, mas a rebeldia dele. O que a princípio lhe parecera necessário para restituir-lhe a paz do espírito começou a ter a seus olhos o caráter de ingratidão. Ingratidão, era já confessar muito, mas o médico foi além, achou-se ridículo. Aqui já não era possível a resistência. Algum homem pode gloriar-se de ser ingrato; dirá, com um moralista céptico, que é uma maneira de ser independente. Mas ninguém é ridículo convencido; convencer-se é emendar-se.

A essas razões que o médico dava a si próprio, e que eram filhas da consciência, acresciam outras que ele não articulava, mas sentia, as saudades, as recordações, os desejos, a voz misteriosa e constante que lhe sussurrava aos ouvidos o nome de Lívia.

Demais, a bela viúva escreveu-lhe. Félix, como um verdadeiro namorado, jurara não abrir as cartas que ela lhe mandasse, e correu à porta para receber a primeira. Não era carta de recriminações, mas de surpresa e de lágrimas. Quando veio segunda carta, já o médico sabia a outra de cor. A segunda era a última, dizia Lívia; eram já recriminações, mas não contra ele, nem contra o destino, eram recriminações contra si mesma. A melancólica resignação da moça comoveu o médico; no fim de uma semana estava aos pés dela fazendo ato de sincera contrição.

Lívia perdoou-lhe as lágrimas choradas durante aqueles oito dias de angustiosa incerteza. Perdoou-lhas como sabem perdoar as almas verdadeiramente boas - sem ressentimento. Mas a causa da ausência não a explicou Félix.

- Não me perdoou já? - disse o médico, quando ela lhe fez uma pergunta direta a este respeito -. Isso basta; não queira saber a razão desta singular loucura, que me levou tão longe do único lugar em que me é possível a felicidade. Para minha expiação basta o que sofri também nestes oito dias e a vergonha de ter...

Calou-se; receava dizer tudo. A moça ouviu aquelas palavras com manifesta satisfação, e murmurou:

- Ciúmes?

Félix estremeceu. Uma sombra ligeira pareceu toldar-lhe os olhos. Lívia inclinou para ele o rosto como querendo ler-lhe na fisionomia a verdade que ele forcejava por esconder.

- Não - disse Félix -, não foram ciúmes. Ciúmes de quê e de quem?

- De ninguém, bem sei; mas está-me a parecer, Félix, que o seu amor é um pouco visionário e melindroso. Oh! Não me lastimo por tão pouco; agradeço-lhe até. Que perderia eu com isso? Alguns dias de paz, talvez; mas a certeza de ser amada é uma grande compensação. O purgatório não é uma porta que abre para o céu? Cada qual sabe amar a seu modo; o modo pouco importa; o essencial é que saiba amar. Pode ser que eu me engane - continuou ela pondo-lhe as mãos na fronte -, mas eu creio que há nesta cabeça muita imaginação, e imaginação doente. Ou então...

- Ou então? - repetiu o médico, vendo que ela fazia uma pausa.

- Ou então, a doença está aqui - concluiu Lívia apontando-lhe para o coração -. Não importa; eu suportarei tudo, contanto que me ame.

- Oh! Lívia - exclamou Félix, depois de lhe beijar ternamente a fronte -, essa resolução será o penhor do nosso futuro. Consulte o seu coração; veja se há nele bastante misericórdia para mim, e prometo-lhe que seremos felizes.

- Tudo lhe perdoarei, contanto que me ame - disse a moça.

Compreenderia ela então que dolorosa e pesada obrigação contraíra? Talvez não. Confiava em si mesma, no prestígio do seu amor, no coração de Félix, para vencer tudo, e realizar o que era agora o sonho da sua vida.

O caminho melhor para isto era seguramente o da igreja. Que obstáculo podia haver? Um e outro dependiam exclusivamente de si; o casamento era o desfecho lógico e sacramental daquele romance. Mas nem a viúva o insinuava, nem o médico o propunha, e nesta situação mal definida alguns dias correram de tranquila felicidade.

Aos olhos estranhos buscavam ambos esconder o seu segredo; mas a reserva de Lívia era apenas a que bastava para acatar as conveniências, ao passo que a de Félix era tão completa e calculada, que à própria moça iludia. Esta facilidade de dissimulação desconsolou-a. Achava-a perfeita demais. Era um sintoma de tranquilidade que desdizia com o amor impetuoso de Félix. Demais, que razão haveria para esconder tão misteriosamente dos olhos dos outros uma cousa que deveria e não tardaria a ser pública?

A indiferença de Félix, entretanto, não era tão completa como parecia, era uma indiferença vigilante. Quando os olhos da viúva procuravam os do médico, este desviava cautelosamente os seus; mas olhava, digamo-lo assim, por baixo da pálpebra.

Foi então que começou para ela uma vida de luta.

IX

LUTA

O amor de Félix era um gosto amargo, travado de dúvidas e suspeitas. Melindroso lhe chamara ela, e com razão; a mais leve folha de rosa o magoava. Um sorriso, um olhar, um gesto, qualquer cousa bastava para lhe turbar o espírito. O próprio pensamento da moça não escapava às suas suspeitas: se alguma vez lhe descobria no olhar a atonia da reflexão, entrava a conjecturar as causas dela, recordava um gesto da véspera, um olhar mal explicado, uma frase obscura e ambígua, e tudo isto se amalgamava no ânimo do pobre namorado, e de tudo isto brotava, autêntica e luminosa, a perfídia da moça.

Lívia preferia decerto uma confiança honesta e leal, mas a desconfiança estava longe de lhe amargurar o coração, aceitava-a com alegria.

- Antes isto - dizia-lhe depois de uma reconciliação -; vejo que me ama. A confiança também se parece com a indiferença, e a indiferença é o pior de todos os males.

Esta filosofia teve seus instantes de desmaio. Não bastava a força do amor para resistir à suspeita de todos os dias, que se apagava às vezes logo, mas que renascia depois, para de novo se apagar e renascer. Lívia começou a fugir dos lugares que até então frequentava habitualmente. Raras vezes aparecia no teatro ou numa reunião. Félix compreendeu a causa desta reserva e disse-lha. A moça negou; mas, como ele insistisse em afirmar e pedir que ela não alterasse os seus hábitos, respondeu:

- É bom de dizer, Félix; assim vamos melhor; lá fora como aqui, lá pior do que aqui, a menor cousa basta para lhe transviar o espírito.

- Juro-lhe que não.

Jurava, mas quebrava o juramento. O espírito não ratificava as promessas do coração. De que lhe servia a ela a máxima prudência nas suas relações com as demais pessoas, se tudo era pouco para obter a confiança de Félix? Uma hora de inalterável felicidade era comprada à custa de muitas horas de tédio, às vezes de lágrimas. Ele as sentia decerto, e pagar-lhas-ia com sacrifícios, se precisos fossem; mas eram curtos esses lúcidos instantes.

Lívia não se acostumou a ler logo na fisionomia do médico. Ele possuía em alto grau a faculdade de esconder o bem e o mal que sentisse. Era uma faculdade preciosa, que o orgulho educara, e se fortificou com o tempo. O tempo, entretanto, a pouco e pouco lhe foi adelgaçando essa couraça, à medida que se prolongava e multiplicava a luta. Então os olhos da viúva aprenderam a soletrar-lhe no rosto os terrores e as tempestades do coração. Às vezes, no meio de uma conversa indiferente, alegre, pueril, os olhos de Lívia se obscureciam e a palavra lhe morria nos lábios. A razão da mudança estava numa ruga quase imperceptível que ela descobria no rosto do médico, ou num gesto mal contido, ou num olhar mal disfarçado.

Esta situação pôde esconder-se aos olhos de todos, menos aos de Luís Batista. Observador e perspicaz, e ao mesmo tempo sem paixões nem escrúpulos, percebeu este que quanto mais o amor de Félix se tornasse suspeitoso e tirânico, tanto mais perderia terreno no coração da viúva, e assim, roto o encanto, chegaria a hora das reparações generosas com que ele se propunha a consolar a moça dos seus tardios arrependimentos.

Para alcançar esse resultado, era mister multiplicar as suspeitas do médico, cavar-lhe fundamente no coração a ferida do ciúme, torná-lo em suma instrumento de sua própria ruína. Não adotou o método de Iago, que lhe parecia arriscado e pueril; em vez de insinuar-lhe a suspeita pelo ouvido, meteu-lha pelos olhos.

A dificuldade era certamente maior e mais delicada, mas o pretendente tinha em larga escala as qualidades precisas para ela. Era-lhe necessário afetar com a moça uma intimidade misteriosa, mas discreta, sem aparato, antes cercada de infinitas cautelas, tão hábil que ela não percebesse, mas tão claramente dissimulada, que fosse direito ao coração de Félix.

Mas a mulher dele? A mulher dele, amigo leitor, era uma moça relativamente feliz. Estava mais que resignada, estava acostumada à indiferença do marido. Dera-lhe a Providência essa grande virtude de se afazer aos males da vida. Clara havia buscado a felicidade conjugal com a ânsia de um coração que tinha fome e sede de amor. Não logrou o que sonhara. Pedira um rei e deram-lhe um cepo. Aceitou o cepo e não pediu mais.

Todavia, o cepo não o fora tanto antes do casamento. Paixão não a teve nunca pela noiva; teve, sim, um sentimento todo pessoal, mistura de sensualidade e fatuidade, espécie de entusiasmo passageiro, que os primeiros raios da lua de mel abrandaram até apagá-lo de todo. A natureza readquiriu os seus aspectos normais; a pobre Clarinha, que havia ideado um paraíso no casamento, viu desfazer-se em fumo a sua quimera, e aceitou passivamente a realidade que lhe deram - sem esperanças, é certo, mas também sem remorsos.

Faltava-lhe - e ainda bem que lhe faltava - aquela curiosidade funesta com que o anfíbio clássico, desenganado do cepo, entrou a pedir um rei novo e veio a ter uma serpente que o engoliu. A virtude salvou-a da queda e da vergonha. Lastimava-se, talvez, no refúgio do seu coração, mas não fez imprecações ao destino. E como nem tinha força de aborrecer, a paz doméstica nunca fora alterada; ambos podiam dizer-se criaturas felizes.

Ora, pois, enquanto Clarinha nenhum lugar ocupava no espírito do marido, este executou o plano que havia organizado. O resultado foi lento, mas certo. O coração de Félix bebeu aos poucos o veneno que lhe propinava tranquilamente o astuto rival; mil circunstâncias fortuitas vieram favorecer a obra de Luís Batista. O espírito de Félix era apropriado terreno para ela; a suspeita rara vez lhe morria em embrião; uma vez lançada a semente, germinava com força, crescia, apoderava-se dele, e então batia a hora da crise, a hora que o seu rival pacientemente esperou, e conseguiu.

Desta vez assentou Félix numa resolução heroica: romper o encanto que o prendia à bela viúva. Tinham já passado alguns meses, todos eles assim entremeados de felicidade e amargura. Cem vezes se convencera das suas injustiças; mas a cada suspeita nova ressurgiam as anteriores, as que ela perdoara, e a última confirmava então as primeiras, e o pobre rapaz achava-se sinceramente ludibriado e ridículo.

Escreveu uma carta longa e violenta, em que acusava a moça de perfídia e dissimulação. Havia amargura na carta, mas havia também ódio e desprezo, tudo quanto podia ferir para sempre um coração que até ali soubera amar e sofrer, mas que enfim podia cansar e desprezar.

Enviada a carta, deixou-se ele entregue à sua dor, disposto a não voltar a Catumbi. Ninguém viu então uma lágrima que o desespero lhe arrancou; e que ele se apressou de enxugar com vergonha de si mesmo. Recapitulou então todos os sucessos dos últimos dias; nunca lhe parecera mais evidente a traição da moça, nem mais cruel a situação do seu espírito. Um raio de esperança veio entretanto projetar-se na sua noite de dúvidas. Imaginou que tudo podia ser erro e ilusão, e esperou que a resposta de Lívia tudo viesse esclarecer.

Nada esclareceu a resposta da moça, porque o portador da carta voltou sem ela. Ao ciúme que o devorava, veio misturar-se o despeito; complicou-se a dor com o orgulho ofendido. Lívia apareceu-lhe com todos os caracteres de uma loureira vulgar, e loureira não traduz bem o pensamento do moço.

Nesse estado passou Félix o resto do dia. Longas lhe correram as horas, friamente longas como elas são, quando o coração padece ou espera. Enfim, caiu a tarde, apagou-se de todo o sol, as sombras da noite começaram a lutar com os derradeiros lampejos do crepúsculo, até que de todo dominaram o céu.

A melancolia da hora insinuou-se no coração do médico, e a pouco e pouco lhe aquietou o desespero do dia. Félix meditou longo tempo na situação que as circunstâncias lhe haviam criado. Viu o imenso espaço que aquele amor lhe tomara na vida, e a terrível influência que poderia exercer nela, caso não achasse forças para resistir à separação. Qual seria o meio de escapar a esse desenlace, pior que tudo? Félix pensou numa viagem, como o meio mais fácil e pronto. Dispunha mentalmente as cousas para esse fim, quando ouviu parar um carro.

Daí a pouco entrou um escravo dizendo que uma pessoa insistia em falar-lhe: era uma senhora.

- Uma senhora! - repetiu Félix.

Era Lívia. Quando Félix chegou à sala, estava ela à porta, com o rosto coberto por um véu que arregaçou imediatamente. Félix não pôde reter um grito de surpresa.

Lívia trazia pela mão um menino: era o filho. Caminhou para o médico depois de alguns instantes de absoluto silêncio, e estendeu-lhe a mão.

- Não esperava a minha visita? - disse ela com tranquilidade.

- Confesso que não.

- Devia esperar, porque eu não havia respondido à sua carta, e alguma cousa cumpria que lhe dissesse.

- Não receou que os olhos da sociedade... - disse ele.

- A sociedade está tomando chá - atalhou a viúva procurando sorrir -. Era preciso que eu viesse e vim.

Félix fez um movimento.

- Sim, era preciso - insistiu Lívia -. Uma carta seria já inútil; entre nós as cartas perderam a virtude, Félix. Eu já não sei, já não tenho palavras com que lhe restitua a confiança ao coração. Esta ousadia talvez...

A luz batia de chapa no rosto da moça; Félix viu tremerem-lhe duas lágrimas nos olhos, hesitarem um instante, e rolarem depois na face, levemente corada de agitação e de pejo.

- Fui talvez cruel no que lhe escrevi - disse ele - e quero crer que fosse também injusto, mas amo-a, é todo o meu crime...

Lívia suspirou.

- Não o amo eu também? - disse ela -. Nem por isso sou cruel ou injusta. Mas não o acuso; se o acusasse não viria aqui. Venho porque sei que padece, e a despeito de tudo devia vir.

Félix conduziu-a para o sofá, e sentou-se numa cadeira. Luís ficou de pé, entre ele e ela, meio indiferente, meio curioso do que ouvia sem entender.

- Não receou que este menino pudesse dizer alguma cousa? - perguntou Félix.

- Não pensei nisso. Fui visitar Raquel, que está muito mal; fui só com ele. Tinha a ideia de vir às Laranjeiras: isso dominava tudo. Se conseguir dissipar-lhe as novas dúvidas que o afligem, pouco me importam as consequências. Que quer? Eu sou assim. Vejo no mundo o meu amor e a sua felicidade; tudo o mais me é estranho ou nulo.

Lívia dizia estas palavras com um tom singelo e verdadeiramente d'alma, que comoveu o médico.

- Oh! Para isso basta uma cousa - disse Félix com impetuosidade -. Jura-me que nenhuma razão havia para suspeitar?

Lívia abriu muito os olhos como espantada do que ouvira; depois, abanando tristemente a cabeça:

- O senhor há de quebrar todo o meu orgulho - disse com amargura -. Eu arrisco tudo para lhe restituir a felicidade e a paz; o senhor recompensa-me este sacrifício com a humilhação. Jurar-lhe! De que serve um juramento mais entre nós? Se o que acabo de fazer não é bastante, Félix, concluamos aqui o nosso romance; e oxalá que alguma página dele possa algum dia lembrar-lhe com saudade.

Dizendo estas palavras, a moça voltou o rosto para esconder a sua comoção. Félix sentiu pungir-lhe um remorso, e teve ímpeto de cair aos pés da bela viúva. Murmurou algumas palavras, que ela não percebeu ou não ouviu, até que o menino chamou a atenção de ambos, dizendo:

- Vamos, mamãe?

Lívia levantou-se e desceu o véu sobre o rosto.

- Perdoe-me tudo - disse Félix -; ainda uma vez lhe peço perdão. Não me julgue como os outros fariam, se conhecessem esta triste história de alguns meses. Não sou mau; falta-me confiança; algum dia lhe direi por quê. Por agora, perdoe-me outra vez. Injuriei-a, bem sei; não devia pedir-lhe nada mais, porque me deu generosamente a maior consolação que o meu espírito ousaria esperar.

- Esse homem? - disse a viúva, depois de um instante.

- Por que me pergunta?

- Quero afastá-lo de minha casa, se ele lá vai, ou evitar as ocasiões de me encontrar com ele.

- É um homem que a não respeita, sequer, um libertino, cuja mulher é um anjo...

- O Dr. Batista?

- Esse.

Lívia estendeu-lhe a mão. Félix quis ainda falar-lhe, mas a viúva observou que era tarde e dirigiu-se para a porta. Félix acompanhou-a até o jardim. Ao despedir-se dela pela última vez, o médico apertou-lhe fervorosamente a mão.

- Perdoa-me?

- Sim! - disse ela.

E pela primeira vez nessa noite era a sua voz terna e amorosa como de costume.

Félix viu-a entrar no carro que partiu imediatamente. Voltou para a sala. Estava irritado contra si mesmo. Reconhecia a sua precipitação; achava-se grosseiramente injusto. Se lhe houvera lembrado a visita da moça, tê-la-ia pedido como o meio único de lhe desvanecer de todo as suspeitas. Agora que ela o deixava, acusava-se de a haver obrigado àquele extremo recurso.

A noite pareceu-lhe ainda mais longa que o dia. Velava e remordia-lhe a consciência. Ouviu bater uma por uma as horas todas, ansioso por que viesse o dia seguinte para ir a Catumbi resgatar à força de ternura e respeito a injustiça com que tratara a viúva. Cerrou os olhos quando a arraiada despontou no céu; pouco dormiu, entretanto. Ao levantar-se tinha o espírito mais sossegado, e pôde apreciar melhor a situação.

"O casamento me restituirá a confiança", pensava ele; "quando estivermos juntos os dous, afastados da convivência e do contato de estranhos, a paz morará no meu coração; só então seremos felizes sem amargura nem remorso."

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