Ressurreição
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Ressurreição é o primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.
Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma "Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida; na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e, ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a tradução que constava na publicação de 1872.
Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e, por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas de maneira mais sorrateira.
Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à "primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "cômplice" "cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de "atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada ("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta), por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala [...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir, na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.
Esta não pretende ser uma edição crítica, nela não há notas editoriais. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
X
A ENFERMA
A doença de Raquel era grave; durante alguns dias chegaram a recear um desenlace funesto. Os velhos pais quase enlouqueceram, quando o médico os preparou para a terrível catástrofe. A menina percebeu o seu estado, mas nem o medo da morte, nem a saudade da terra lhe fez doer o coração. Morria como flor que era. A mágoa era toda para os que a viam assim condenada sem remédio.
O médico assistente dera à moléstia um nome tirado não sei se do grego, se do latim. Na opinião da mãe, havia alguma cousa mais do que o nome e a moléstia; havia uma inexplicável melancolia, anterior à doença, uma espécie de tédio precoce da vida, se não era antes alguma esperança malograda - ou, mais claramente, alguma afeição sem esperança.
Para obter dela a confissão que imaginava, tinha D. Matilde o necessário tato e doçura: era mulher e mãe. Mas, ou porque nada houvesse realmente, ou porque quisesse levar consigo o segredo da sua melancolia, Raquel nenhuma confissão lhe fez.
Dous dias depois da visita de Lívia, Félix foi à casa do coronel. O coronel estava na sala, mergulhado numa poltrona, com os olhos parados e as feições abatidas pela vigília e pela dor. Quis levantar-se quando Félix apareceu à porta, mas este correu para ele e impediu o movimento.
- Soube anteontem do estado de sua filha - disse Félix sentando-se ao lado do velho pai -. Disseram-me que estava mal...
- Mal - repetiu o coronel -, definitivamente mal. A pouca esperança que tínhamos veio tirar-no-la o médico. O senhor não sabe o que é perder assim metade da alma.
Félix disse algumas palavras banais de consolação, e chegou até a falar de esperança; mas, ainda que a esperança fala sempre ao coração dos desgraçados, o bom velho em outra cousa não acreditava mais que na morte.
Algum tempo estiveram calados; enfim o coronel rompeu o silêncio:
- Raquel é muito sua amiga - disse ele -. Duas vezes perguntou pelo senhor.
- Desde quando está doente?
- De cama está há quinze dias; mas já sofria antes disso. A princípio não me deu muito cuidado; a moléstia, porém, agravou-se rapidamente, e tem ido a pior.
Foram interrompidos pelo médico assistente. Tinha este sido companheiro de Félix na escola. Ao vê-lo ali suspeitou que o tivessem mandado chamar; Félix apressou-se a explicar o motivo da sua visita.
- Em todo o caso, doutor - disse o outro -, aproveito as suas luzes, e façamos, se lhe parece, uma conferência.
O coronel foi ver se Raquel estava acordada; voltou pouco depois e acompanhou os dois médicos à alcova da doente.
Félix foi o primeiro que assomou à porta; parou alguns instantes, impressionado com o espetáculo que se lhe oferecia.
Sentada à cabeceira da cama estava D. Matilde, descorada e abatida, com os olhos túmidos, e porventura cansados de chorar. Aos pés da cama via-se uma moça amiga da infância de Raquel, e sua dedicada enfermeira nesta ocasião. Ambas, triste e silenciosamente, contemplavam a doente.
Raquel estava branca como a fronha do travesseiro em que descansava a formosa cabeça. Tinha os lábios entreabertos e a respiração curta e difícil. O pequeno rumor que fizeram os médicos ao entrar um pouco a sobressaltou. Raquel abriu os olhos, que ardiam de febre.
Quando Félix se aproximou do leito e tomou o pulso da moça, esta olhou para ele e fez um gesto de espanto. Olhou depois em volta de si, como se duvidasse do lugar em que se achava. D. Matilde inclinou-se para a filha e disse:
- É o Dr. Félix.
Raquel olhou outra vez para Félix, com aquele sorriso apagado e triste dos doentes e murmurou:
- Obrigada!
- Como se sente? - perguntou Félix.
- Melhor - disse ela com uma voz tão fraca que parecia um suspiro
- Deveras melhor?
Raquel fez um gesto de indiferença e não respondeu.
- Vamos lá, não desanime - disse Félix - e sobretudo não faça entristecer seus pais, que lhe querem tanto.
Félix examinou a doente, fazendo-lhe algumas perguntas, a que ela debilmente respondia. Quando ele cessou de a interrogar, a moça murmurou:
- Morro, não é?
- Não - disse Félix -, não há de morrer, não deve morrer. Tem ainda vida larga, mas é preciso ânimo.
Raquel fez um gesto de quem não acreditava nas boas palavras do médico e voltou as olhos para a mãe. D. Matilde tinha os seus cravados em Félix, como se lhe quisesse ler no rosto a sentença da filha. A doente pareceu adivinhar o pensamento, e disse com esforço:
- Por que não dá as suas consolações a mamãe?
A conferência não durou muito tempo. Félix começou opinando por uma modificação no tratamento até ali seguido, e declarou que não julgava todas as esperanças perdidas. O colega concordou facilmente na alteração pedida por Félix, tanto mais, disse ele, quanto as esperanças eram nenhumas.
Em sua opinião, Raquel estava irremediavelmente perdida. Não era opinião aérea e infundada; ele podia demonstrá-la com argumentos cabais e irrefutáveis. Demonstrou-o efetivamente, durante vinte minutos, com a justa apreciação dos fatos, os dados seguros da ciência, e uma dialética tão cerrada que era impossível fazer-lhe a menor objeção.
Quinze dias depois, entrava Raquel em convalescença.
No sentir dos pais, era Félix o salvador da filha. Fora ele quem lhes restituíra a esperança, e a realizara com os seus bons conselhos e diligente desvelo.
O colega de Félix, para quem o restabelecimento da moça era a destruição de todas as noções médicas recebidas, ficou profundamente surpreendido com esse resultado. Em todo caso, era impossível negá-lo; limitou-se a aplaudi-lo, e quando a moça entrou em convalescença aconselhou os pais que a mandassem para algum arrabalde da cidade, a fim de respirar ares melhores.
Não podia vir mais a propósito o conselho. Lívia mudara-se para as Laranjeiras. A ideia da mudança era de Viana, que um dia a propôs à irmã, e fora aprovado por ela. A casa ficava pouco acima da de Félix, do lado oposto.
Era um prédio elegante, levantado no meio de uma chácara, não extensa nem esmeradamente tratada. Viana, entretanto, organizara um programa de reforma, que prometia executar pontualmente. Seu contentamento parecia não ter limites; além de preferir aquele bairro ao outro em que morava, havia a circunstância de ir ficar ao pé da casa de Félix - o que era já meia felicidade, dizia ele.
Lívia aprovara a mudança sob a influência de igual ideia. Aqueles últimos dias tinham sido de plena e deliciosa paz. Seus projetos de futuro eram imensos; delineava uma vida independente de todas as escravidões sociais, vida exclusiva deles, cheia de todos os prestígios da poesia e do amor. Às vezes receava que esses sonhos fossem apenas sonhos. Ainda assim não os dera por nenhum preço deste mundo.
Estavam então nos primeiros dias de outubro; o casamento fora marcado para meado de janeiro. Marcado, entenda-se bem, apenas entre os dous, porque Félix conseguira da viúva a promessa de que a notícia seria dada nas vésperas do acontecimento.
- Mas a razão deste segredo? - perguntou Lívia depois de lhe prometer o que pedia.
- Um capricho.
A razão verdadeira era a vacilação do seu espírito; mas a que ele deu contentou perfeitamente a moça.
- Se eu tivesse o teu coração - disse ela -, desconfiava desta exigência; mas, vê lá, eu creio em ti.
Estavam sós na chácara; Viana, fiel ao seu programa de não perturbar os dous namorados, foi meditar a alguma distância nas reformas que pretendia fazer. Caminhavam os dous calados e distraídos, ou melhor, concentrados em si mesmos. De repente, a viúva levantou a cabeça e disse como continuação das suas anteriores palavras:
- Há contudo ocasiões em que esta confiança parece abalar-se, não porque eu duvide de ti, mas porque duvido do destino. Já te disse que sou supersticiosa - defeito das mulheres e das crianças. Estremeço algumas vezes, encaro o futuro, e, sem saber por que, pergunto a mim mesma qual será o fim de tudo isto. Desmaios apenas, e raros, de um coração que ambiciona, talvez, mais do que poderia obter.
- Não te parece que eu esteja emendado? - disse Félix sorrindo -. Há quantos dias não há sequer...
- Cala-te! - interrompeu Lívia tocando-lhe os lábios com os dedos -. Tenho medo de te ouvir falar assim.
E depois de um instante de silêncio:
- Não é o teu coração que me faz tremer; o teu coração é bom. Não é também o teu espírito, apesar de caprichoso, visionário, inconstante. Receio do futuro, à vista do passado.
- Do passado? - perguntou Félix estacando o passo.
Lívia suspirou.
- Que houve de mau no teu passado? - continuou o médico fitando nela um olhar perscrutador.
- Tudo.
Havia perto um velho sofá de vime. Lívia encaminhou-se lentamente para ele e sentou-se. Félix contemplou-a algum tempo do lugar em que ficara. Já não sorria; a dúvida ensombrava-lhe os olhos. Enfim, deu alguns passos e parou em frente dela.
XI
O PASSADO
- Serei indiscreto perguntando que passado foi esse? - disse Félix depois de alguns instantes.
- Oh! Descansa! Não me pesa nada na consciência; mas no coração...
- Amaste alguém?
- Amei a meu marido.
A esta resposta de Lívia seguiu-se novo e longo silêncio. A memória do passado a que ela tão misteriosamente aludira parecia doer-lhe na alma. Arfava-lhe o seio, e as mãos, em que o médico amorosamente tocou, estavam geladas e trêmulas.
- Não acreditas que eu possa compreender-te melhor que os outros? - perguntou finalmente o médico.
- Talvez não.
Félix fez um gesto de despeito. A moça arredou o vestido e abriu espaço no sofá, onde o médico se sentou a um sinal dela.
- Talvez me não compreendas melhor que os outros - continuou Lívia - e com isto não quero dizer que sejas tão vulgar como os mais deles. Não o és; mas há cousas que um homem dificilmente compreenderá, creio eu.
- Nem quando ama? - perguntou Félix.
Lívia não respondeu; Félix continuou:
- Mas que passado foi esse? Posso não compreender-te, como dizes, mas saberei dizer-te algumas palavras de consolação, e dissipar com elas a tristeza que te ficar desta confidência, que não é um remorso, decerto.
- Amei a meu marido - começou Lívia - e toda a minha confidência se resume nessas poucas palavras. Tive uma paixão da primeira idade, quando o amor vem surpreender a ignorância do coração. Será esse o amor mais forte? Há quem diga que o primeiro amor nasce apenas da necessidade de amar. Pode ser. Hoje que te amo sinto que pode ser assim. Em todo o caso, aquele afeto dominou-me toda; cobrei uma vida que me parecia imortal.
- E ele?
- Amava-me, creio, mas não entendíamos o amor do mesmo modo; tal foi o meu doloroso e tardio desencanto. Para mim era um êxtase divino, uma espécie de sonho em ação, uma transfusão absoluta de alma para alma; para ele o amor era um sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal, sem ardores, sem asas, sem ilusões. Erraríamos ambos, quem sabe?
- Vejo que eram incompatíveis - interrompeu Félix -; mas, por que exigir de todos essa maneira de ver e sentir, que é mais da imaginação que da realidade?
Lívia levantou os ombros.
- Estou explicando a situação da minha alma - continuou ela -. Foi aflitiva e triste; não lha ocultei. Riu-se de mim. Era um homem apático e frio; honesto, é verdade, e bom coração, mas falávamos língua diversa e não nos podíamos entender. Confiei todavia na influência do amor. Empreendi a tarefa de o trazer à atmosfera dos meus sentimentos, errada tentativa, que só me produziu atribulação e cansaço. Fatigava-o com isso a que ele chamava pieguices poéticas; da fadiga passou à exasperação, da exasperação ao tédio. No dia em que o tédio apareceu conheci que o mal estava consumado. Quis emendá-lo e não pude. Tinha feito da nossa vida conjugal um deserto; e se a minha alma clamava contra o destino, minha consciência me acusava de um erro, o erro de haver perturbado a paz doméstica, a troco de um sonho que não veio. Não me faço melhor do que sou, bem vês; mas uma parte da culpa não será da natureza que me fez tão pueril? Tal é o meu receio agora - continuou Lívia depois de alguns segundos de silêncio -; às vezes cuido que não vim ao mundo para ser feliz nem para dar a felicidade a ninguém. Nasci defeituosa, parece. Serás tu capaz de desfazer a apreensão ou corrigir o defeito?
A viúva concluiu estendendo-lhe a mão, que o médico apertou entre as suas. Um sorriso de simpatia ou de comiseração, ou de ambas as cousas juntas, entreabriu os lábios de Félix. Nenhum deles falou; ambos pareciam conversar consigo mesmo. Enfim, a viúva repetiu a pergunta.
- Talvez possa dissipar-te a apreensão - respondeu Félix -; mas, creio que não será fácil. Tens um coração ainda muito criança, e que o há de ser até a morte, penso eu.
Félix calou-se, e contemplou à vontade a fisionomia da viúva, que tinha os olhos postos no chão, absorta e pensativa. A pouco e pouco o rosto do médico se foi igualmente fechando, e ambos, durante largo espaço, se deixaram ir na corrente de seus pensamentos sombrios. Félix foi o primeiro que despertou do letargo.
- Naufragaste à vista de terra - disse ele -, e do naufrágio trouxeste apenas úmidos os vestidos. Sabes o que é naufragar em mar alto e solitário, e perder tudo, até a vida? Foi assim comigo.
- Sim? - disse Lívia com um tom em que a alegria se misturava à curiosidade.
Félix não pôde reter um sorriso.
"O infortúnio é egoísta", pensou ele.
E continuou:
- Sim, perdi muito mais. Abraçar um cadáver, que é isso para quem já abraçou uma serpente? Tu perdeste apenas alguns anos de amor mal compreendido; não perdeste um bem precioso, que o tempo me levou: a confiança. Podes hoje ser feliz do mesmo modo que o querias ser então; basta que te ame alguém. Eu não, minha querida Lívia, falta-me a primeira condição da paz interior: eu não creio na sinceridade dos outros.
Aqui parou como se esperasse alguma observação da viúva; ela, porém, olhava para ele tranquila e até risonha. Félix continuou as suas confidências do passado. Eram histórias de afeições malogradas e traídas, contadas com sincera expansão, como se estivesse falando a si mesmo. Às vezes a comoção fazia tremer-lhe a voz, e nessas ocasiões, sobretudo, lia-se nos olhos da moça o enlevo com que ela ouvia falar-lhe o coração.
- Ninguém esperdiçou mais generosamente os afetos do que eu - continuou o médico -, ninguém mais do que eu soube ser amigo e amante. Era crédulo como tu; a hipocrisia, a perfídia, o egoísmo nunca me pareceram mais que lastimáveis aberrações. Meu espírito criara um mundo seu, uma sociedade platônica,- em que a fraternidade era a língua universal, e o amor, a lei comum. Deixei-me ir assim, rio abaixo dos anos, gastando a seiva toda da juventude, sem cálculo nem arrependimento, até que me bateu a hora das decepções funestas.
Calou-se. Sentira um rumor próximo; era Viana que passeava na chácara entregue às suas combinações de horticultura. Ouviria ele a voz de Félix? Parece que sim, porque a pouco e pouco se foi afastando do lugar. Os dous ficaram outra vez sós. O médico prosseguiu:
- Não me caíram as ilusões como folhas secas que um débil sopro desprega e leva, foram-me arrancadas no pleno vigor da vegetação. Não me deixaram essas doces recordações, que são para as almas enfermas como que uma aura de vitalidade. Meu espírito ficou árido e seco. Invadiu-me então uma cruel misantropia, a princípio irritada e violenta, depois melancólica e resignada. Calejou-se-me a alma a pouco e pouco, e o meu coração literalmente morreu.
Félix continuou a narração por este mesmo tom elegíaco e triste. Foi longa e fiel. Se a viúva não o escutasse só com o coração, poderia perceber alguma cousa mais do que ressentimento e amargura. Félix não era virtualmente mau; tinha, porém, um cepticismo desdenhoso ou hipócrita, segundo a ocasião. Não perceberia só isso; veria também que a natureza fora um tanto cômplice na transformação moral do médico. A desconfiança dos sentimentos e das pessoas não provinha só das decepções que encontrara; tinha também raízes na mobilidade do espírito e na debilidade do coração. A energia dele era ato de vontade, não qualidade nativa: ele era mais que tudo fraco e volúvel.
Lívia não percebia nada disto; escutava-o com a fé pia de um coração amante. Sabendo que a razão do atual abatimento eram os infortúnios passados, ela confiava de si mesma o renovar aquela alma que envelhecera antes do tempo. Tais foram as suas consolações quando o médico terminou a longa confidência. Ele agradeceu-lhas comovido, não sem lhe perguntar se ela teria força bastante para concluir essa missão piedosa.
- Tenho - afirmou Lívia.
- É certo que me ressuscitaste - continuou o médico -; e se o futuro me guarda ainda alguns dias de felicidade sem mescla, a ti só os deverei, minha boa Lívia; tu só haverás feito o milagre. Mas...
- Mas? - repetiu a moça com impaciência.
- A obra não está completa - continuou Félix -; metade apenas. Fizeste brotar dentre as ruínas uma flor solitária, mas bela; única neste árido terreno do meu coração. Não basta; é preciso agora um raio que a anime e lhe conserve o perpétuo viço; essa é a confiança, não de uma hora, mas a de todos os dias, a que não falece nunca e nos restitui a serenidade dos primeiros tempos. Sem ela, o meu amor será um largo e inútil martírio.
Dizendo isto, conchegou-a ao seio; tocavam-se quase os rostos, que a ternura, não a voluptuosidade, enlanguescia. Não foi longo esse instante de mútua contemplação, mas valeu por muitas horas de prática. Se a vida pudesse ser eternamente aquilo, é provável que o coração de Félix adquirisse a paz que almejava. Enfim, a moça deixou cair o corpo, como se lho debilitasse o peso de comoções tão vivas, e a palavra afluiu aos lábios de ambos.
Falaram então em prosa; conversaram de seus projetos de futuro, dos arranjos do casamento, de uma viagem que fariam logo depois. Iam levantar-se quando ao longe lhes apareceu o irmão de Lívia. Caminhava apressadamente e alegre, ao encontro dos dous namorados. Félix compôs o rosto com a expressão que o caso pedia; Viana aproximou-se, e disse à irmã que o Coronel Morais estava na sala com a filha.
Lívia pediu licença ao médico e dirigiu-se para a casa. Félix deu o braço a Viana.
- Falávamos das suas reformas - disse ele - e fazíamos prosaicamente o orçamento da despesa que vai ter.
Viana sorriu-se à socapa, mas não deixou cair o assunto no chão. Falou com volubilidade dos seus planos, que eram vastos e originais, concluindo por uma singela confissão, acompanhada de um olhar indagador.
- Receio - disse ele - que a Lívia se case mais tarde ou mais cedo.
Félix limitou-se a sorrir com indiferença; entravam ambos na sala.
XII
UM PONTO NEGRO
Lívia e Raquel estavam assentadas no sofá; o coronel, encostado a uma cadeira, consultava o relógio. Não consultava; tinha o relógio na mão, diante dos olhos, mas os olhos reviam-se na filha, enquanto esta respondia às perguntas da viúva.
- Aqui está a doente - disse Lívia apenas viu assomar à porta da sala o médico e o irmão.
Raquel voltou a cabeça, e não pôde reter uma exclamação de surpresa e de alegria. Félix adiantou o passo e foi apertar-lhe a mão.
- Então? Não está salva? - disse ele olhando alternadamente para as duas moças.
- Foi o senhor que a salvou - disse o coronel chegando-se ao grupo.
- Não fui; auxiliei a natureza, nada mais.
- Havemos de pô-la totalmente boa e viva como era antes - disse Lívia dando um beijo na convalescente.
Raquel ouviu este diálogo com um sorriso triste que parecia ainda mais triste naqueles lábios sem cor. Estava extremamente pálida e magra; os olhos, agora que o fogo da febre se apagara neles, pareciam amortecidos e fundos. Ainda assim, não perdera ela a sua natural gentileza. Mais: a própria morbidez do aspecto como que lhe dava realce maior.
Talvez essa circunstância influísse na impressão que o médico agora recebia; pela primeira vez lhe pareceu Raquel uma mulher.
O coronel respirava felicidade por todos os poros. A alegria que perdera durante a moléstia da filha, voltava agora mais que nunca ruidosa e comunicativa. Era um velho palreiro e jovial, amigo da palestra e de anedotas, antes gracioso que chocarreiro, tendo aquela amável gravidade com que a gente se familiariza sem perder o respeito. De quando em quando olhava para a filha com olhos paternalmente namorados, então parecia esquecer-se do resto do mundo, porque o mundo inteiro, ao menos parte dele, que a outra parte lhe ficara em casa, estava ali resumida naquela franzina e alquebrada criatura.
- E promete-me que ma restituirá - disse ele à viúva -, não corada, que ela nunca o foi, mas com aspecto de saúde, viva como era, e alegre, e até se quiser travessa?
- E por que não? Os ares são bons; os carinhos serão fraternais, e melhor que os ares e os carinhos, há de curá-la a natureza, e creio também que a boa vontade dela. Não é assim? - disse Lívia batendo na face de Raquel.
A resposta de Raquel foi dar-lhe um beijo, e sorrir, não já tristemente como da primeira vez. A tarde caíra de todo. O coronel fez algumas recomendações derradeiras à filha, agradeceu à viúva e ao médico, meteu-se no carro e voltou para Catumbi. Lívia foi mostrar à amiga o seu aposento; Félix despediu-se de ambas e dirigiu-se para a porta.
- Volta? - perguntou Lívia.
- Talvez não, minha senhora - respondeu Félix, cuja intenção positiva era ir lá tomar chá.
A presença de Raquel veio de algum modo alterar as relações dos dous namorados. Já não podiam ser frequentes as entrevistas solitárias em que ambos se esqueciam do mundo e de si. Mais que nunca, procurou Félix recatar o seu amor das vistas alheias, por modo que, apesar da convivência que tinha com os dous, Raquel nada suspeitou entre eles. Alguma cousa adivinharia se reparasse que a viúva, quando estava com ela, quase que só falava do médico; mas, como ela também não falava de outra pessoa, parecia-lhe que era antes a viúva quem a imitava.
Por esse tempo começou Meneses a frequentar a casa de Viana, com quem travara relações alguns meses antes. Félix fez a respeito dele um elogio sincero e merecido. O parasita acompanhou a boa opinião do médico com um entusiasmo que cheirava a bons jantares. O advogado correspondeu à expectação da viúva e não tardou que se tornasse familiar na casa.
Estava curado da sua malfadada paixão. Curado e vexado, dizia ele, quando Félix o interrogou a esse respeito.
- Estes amores são as lições da escola de meninos - concluiu Meneses sorrindo -. Já saíste da primeira escola; por que não sobes de estudos?
A esta metáfora, um tanto rebuscada, respondeu Félix com um sorriso que podia confessar e negar ao mesmo tempo. Meneses, que não tinha nenhuma intenção oculta nas suas palavras, não se deu a averiguar qual das duas expressões convinha ao sorriso do amigo. As relações de ambos pareceram estreitar-se mais. Com um pouco mais de expansão e confiança, teria o médico referido ao amigo os seus amores e a sua felicidade próxima. Não o fez, nem Meneses lho adivinhou. Teve suspeitas uma noite em que surpreendeu os olhos da viúva amorosamente cravados no médico, mas a indiferença com que este se levantou para ir gracejar com Raquel de todo o dissuadiu.
Os dias foram assim passando, longos para os dous amantes, breves para Meneses e Raquel, que achavam naquela casa a mais deliciosa companhia deste mundo.
Aqui podia acabar o romance muito natural e sacramentalmente, casando-se estes dous pares de corações e indo desfrutar a sua lua de mel em algum canto ignorado dos homens. Mas para isso, leitor impaciente, era necessário que a filha do coronel e o Dr. Meneses se amassem, e eles não se amavam, nem se dispunham a isso. Uma das razões que desviavam da gentil menina os olhos de Meneses era que este os trazia namorados da viúva. De admiração ou de amor? Foi de admiração primeiro, e depois foi de amor; cousa de que nem ele, nem o autor do livro temos culpa. Que quer? Ela era formosa e moça, ele, rapaz e amorável, e de mais a mais, inexperiente ou cego, que não adivinhava a situação anterior da viúva e do médico, ainda por entre os véus com que lha ocultavam.
Ao inverso de Félix, cujo espírito só engendrava receios e dúvidas, Meneses era antes de tudo propenso às fantasias cor-de-rosa. Irmanavam-se no ponto de serem joguetes de sua imaginação. Meneses facilmente entreviu um mundo de esperanças. A afabilidade com que a viúva o tratava pareceu-lhe auspiciosa; o mais inocente de todos os sorrisos servia-lhe de base a um castelo de vento; uma expressão qualquer, simples cortesia de sala, afigurava-se-lhe cheia de mil promessas de futuro. Nem futuro nem esperanças havia; havia a candura dele, que era botão de flor, ainda entrefechado à corrupção da vida.
Tal era o contraste desses dous caracteres, que a estrela da viúva, não sei se boa ou má estrela, reuniu a seus pés. Um, se viesse a adorar um rosto hipócrita, desceria na escala das degradações, com os olhos fitos na quimera da sua felicidade; outro, ardendo pela mais angélica das criaturas humanas, quebraria com as próprias mãos a escada que o levaria ao céu.
Félix percebeu, enfim, o que se passava no coração do amigo. Sua primeira impressão foi de cólera, não porque duvidasse logo da moça, mas por isso mesmo que outro homem se atrevia a amá-la. E não havia perigo em tal situação? A simples pergunta era suficiente para dar largas ao espírito de Félix. Veio imediatamente a ideia de que à moça não fosse desagradável o amor de Meneses. A vaidade, primeiro, depois o hábito, enfim a curiosidade do coração, os levariam um para o outro. Talvez os houvessem levado já.
Aconteceu uma vez que, falando dela, a fisionomia de Meneses, de risonha que estava, se tornasse subitamente séria. Félix era mais hábil que ele, não lhe foi difícil sondar-lhe o coração. O amigo contou-lhe tudo, com o fervor que lhe era próprio, e a singeleza de um homem ainda pouco conversado nas cousas do mundo. O médico escutou-o com sofreguidão, mas aparentemente quieto.
- E esperanças? - disse ele.
- Poucas ou muitas; não sei bem o que seja. Há ocasiões em que tudo se me afigura fácil e decisivo; outras vezes desanimo e descreio de mim mesmo. Ela é afável comigo, mas também o é contigo e com os mais. Adivinharia já alguma cousa? Quero crer que sim, e visto que se não agasta, é bom sinal, penso eu. O pior de tudo é que eu me não atrevo a dizer-lhe o que sinto.
Uma só palavra bastava ao médico para arredar do seu caminho aquele rival nascente; Félix repeliu essa ideia, metade por cálculo, metade por orgulho - mal-entendido orgulho - mas natural dele. O cálculo era cousa pior; era uma cilada - experiência, dizia ele -, era pôr em frente uma da outra duas almas que lhe pareciam, por assim dizer, consanguíneas, tentá-las a ambas, aquilatar assim a constância e a sinceridade de Lívia.
Assim pois, era ele o artífice do seu próprio infortúnio, com as suas mãos reunia os elementos do incêndio em que viria a arder, senão na realidade, ao menos na fantasia, porque o mal que não existisse depois, ele mesmo o tiraria do nada, para lhe dar vida e ação.
Meneses explicou ainda mais o estado de sua alma; não era amor violento que sentia, era afeição serena e branda: tranquila, mas irresistível fascinação. O médico, por um sentimento de pudor que lhe ficara, não animou abertamente as esperanças do amigo; entretanto, a sua palavra era tão alegre, o riso de tão boa feição, que o espírito de Meneses para logo sentiu reflorirem-lhe as esperanças, se é que elas haviam secado alguma vez.