Ressurreição
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Ressurreição é o primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.
Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma "Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida; na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e, ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a tradução que constava na publicação de 1872.
Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e, por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas de maneira mais sorrateira.
Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à "primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "cômplice" "cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de "atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada ("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta), por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala [...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir, na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XIV
OU CAPÍTULO DO ACASO
Félix chegou a casa cheio de cólera e desespero. Entrou impetuoso na sala; como se precisasse de vingar em alguma cousa a suposta injúria, lançou mão do primeiro vaso que se lhe deparou e deitou-o ao chão. O vaso fez-se em estilhas.
- Que é isso? - disse uma voz estranha. Félix estacou espantado; olhou para o vão de uma janela, donde viera a voz, e deu com a figura de Moreirinha, comodamente sentado, com um livro de gravuras aberto sobre os joelhos.
- Sou eu - disse o visitante levantando-se e indo apertar a mão ao dono da casa -. Admira-se de me ver aqui? Tomei a liberdade de o esperar, a despeito das observações que me fez o seu criado.
Félix não pôde encobrir o desprazer que lhe causava a visita. Moreirinha leu-lhe isso claramente nos olhos, e continuou:
- Talvez não lhe seja agradável a minha presença, sobretudo porque me parece ter alguma cousa que o molesta nesta ocasião; mas não podia ser de outro modo...
Félix levantou os ombros.
- E maior será ainda o seu desgosto - continuou Moreirinha -, quando souber que não lhe peço asilo só por uma hora, mas até amanhã.
Dizendo isto, estendeu-lhe a mão. Félix estendeu-lhe a sua, e friamente lhe disse que podia ficar o tempo que quisesse.
Quando o coração padece não há maior importuno que um conversador indiferente e frívolo. Esta circunstância veio ainda azedar mais o espírito de Félix. A solidão lhe daria talvez um bálsamo salutar, se o havia para ele. O acaso deparou-lhe, entretanto, uma testemunha diante de quem lhe era forçoso aparentar a serenidade que não tinha.
O hóspede compreendeu a situação, e francamente lhe disse que o não queria perturbar; viera como asilado, não como visita; não tinha direito às atenções do dono da casa. Félix respondeu o melhor que pôde a esta cortesia, que aliás o obrigava ainda mais. Não havendo meio de escapar, procurou ao menos ser igualmente cortês. Demais, Moreirinha não era tão importuno como pareceria, porque falava sempre e não tinha o sestro dessa outra casta de importunos que interrompem a cada passo os discursos com perguntas... de boca e de gesto.
Não se demorou o hóspede em dizer a causa que o trouxera ali: era Cecília. Apesar da situação em que se achava, Félix não pôde deixar de lhe prestar atenção.
- Cecília? - perguntou ele.
- É verdade: é o meu mau anjo. Lembra-se dos elogios que lhe fiz dela? Eram sinceros, e eram também justos naquele tempo. Até então não havia encontrado docilidade igual. Não sou piegas, sabe; mas gosto de um episódio assim. Não sei que lhe fizeram à boa rapariga, que de todo mudou e veio a ser um verdadeiro diabo. Aquelas cadeias tão leves que nos prendiam um ao outro, e que eu chamava cadeias de rosas, tornaram-se de ferro pesado. Quero fugir-lhe e não posso; tenho tentado tudo para escapar-lhe, mas em vão. Escondo-me em casa, na casa dos amigos, nos hotéis; onde quer que esteja lá irá buscar-me, e então Deus sabe o que sofro. Hoje lembrou-me vir passar aqui o resto do dia e a noute com o senhor; estou certo de que não dará comigo.
Félix ouvira atentamente a exposição do Moreirinha, não sem achar alguma relação entre o estado dele e o seu. Moreirinha referiu então muitos episódios do que ele chamava sua escravidão.
- E não conhece nenhum meio de lhe escapar por uma vez?
- Nenhum; ainda quando eu pudesse sair da Corte, estou certo de que ela iria buscar-me a bordo do navio ou à portinhola do carro que me levasse.
Tão notável mudança no caráter de Cecília não deixou de chamar a atenção de Félix. Compreendeu facilmente que era obra do próprio amante. A rola fizera-se gavião, pela única razão de que Moreirinha lhe dera ensejo de conhecer a própria força.
De abatimento em abatimento chegara Moreirinha à miserável posição atual. Não era ele homem de salutares reações nem de resignações filosóficas: era, sim, homem de fugir e adiar, caráter feito de inércia e medo, maravilhosamente disposto para os desesperos inúteis e as capitulações vergonhosas.
- Mas, por que não sai da Corte algum tempo? - disse Félix após alguns minutos -. Sempre há de haver meio de fugir...
Moreirinha refletiu um instante.
- Por duas razões - disse ele -: a primeira é que, apesar de tudo, não deixo de gostar dela, e se pudesse escapar-lhe durante trinta dias, ia no trigésimo primeiro procurá-la...
- A segunda razão... - interrompeu Félix a quem parecia incomodar essa ingênua confissão.
- A segunda razão - respondeu Moreirinha com hesitação - é que... não posso.
Félix desceu os olhos ao vestuário do rapaz, e viu nele o comentário das palavras que acabava de ouvir. Elegância ainda havia, mas já pobre e rafada; os botins tinham sinais de longo serviço; o paletó, aliás bem lançado, era de fazenda visivelmente inferior. Trazia luvas cor havana, mas ao olhar curioso de Félix não escapou a circunstância de que as pontas dos dedos já estavam assinaladas por uma leve pasta de cor preta, vestígio de aturado uso.
Não era preciso grande perspicácia para compreender que aquilo tudo era obra de Cecília. Nem ficaria longe da verossimilhança quem afiançasse que Moreirinha estava eternamente condenado ao capricho daquela mulher. Não tinha decerto o rapaz com que lhe satisfazer todas as vaidades e necessidades; ela incumbia-se de abrir outras verbas no orçamento da receita, mediante um bem combinado sistema de impostos.
Félix compreendeu tudo isso de relance, e procurou trazer o espírito de Moreirinha a ideias mais alegres, menos ainda por ele que por si.
Não foi cousa difícil. Ao espírito de Moreirinha repugnavam as preocupações graves. Aproveitou o ensejo que o médico lhe ofereceu e entrou a falar das cousas correntes do dia. Dos mil episódios da vida de certa classe, não havia gazeta melhor informada que o amante de Cecília. Os novos amores de uma, os arrufos de outra, o dito chistoso desta, a aventura daquela, tudo ele sabia em primeira mão. Não lhe perguntassem por estreias literárias nem crises políticas; mas a mobília com que Fulano presenteara a certa dama, a ceia equívoca em que Sicrano chegara a beber champagne por uma botina, esse era domínio seu, desde que os amores de Cecília de todo o separaram da sociedade.
Isto não recreava nem interessava, mas enchia o tempo, e desde que estava obrigado a sofrer o hóspede, era melhor sofrê-lo assim. Era impossível, entretanto, não volver o espírito à sua própria situação. De quando em quando o médico esquecia o narrador, e o seu pensamento ia esvoaçar em derredor da viúva. Foi numa dessas ocasiões que lhe chegou uma carta dela. Félix abriu-a sofregamente e leu-a duas vezes. Era longa; recapitulava a história daqueles últimos meses, e concluía fazendo um apelo à razão do médico. Adivinhava-se que a moça escrevera com lágrimas, mas já não havia o tom súplice com que em análogas ocasiões lhe pedia a reconciliação.
O tempo alguma obra havia já feito no espírito de Félix; a carta veio consumá-la. Félix não estava ainda certo da inocência da viúva, mas já estava certíssimo da brutalidade da sua explosão, e este reconhecimento era uma dor nova, quase tão profunda como a outra.
Seu primeiro impulso foi ir ter com Lívia; desistiu dele e preferiu escrever-lhe uma carta. Três vezes a começou sem lograr chegar ao fim. Vacilava entre ser afetuoso ou severo; num caso lembrava-lhe a perfídia possível, noutro, a provável inocência; temia ser injusto ou ridículo. Como todos os caracteres indecisos, não achou mais recurso que uma inútil desesperação.
Anoitecera; Moreirinha estava mais alegre que nunca, e pagava a hospitalidade do médico com as suas galhofas costumadas. Não contava com Cecília, mas adivinhou que era ela quando ouviu parar um carro à porta.
- Estou perdido! - disse ele desatando um longo suspiro.
Era ela.
Cansada de esperar que lhe levassem resposta do recado que dera, Cecília desceu do carro e entrou em casa. Ao chegar à porta relanceou os olhos pela sala, onde não viu desde logo o amante; Moreirinha metera-se no vão de uma janela. Félix olhou severamente para Cecília, como quem lhe estranhava a liberdade que tomara. Mas onde iam já as flores de antanho? A dócil rapariga de outro tempo tornara-se mulher desgarrada e solta. Caminhou afoutamente para o médico e estendendo-lhe a mão:
- Como estás, mon vieux? - disse com um risinho de mofa.
Nessa ocasião descobriu o amante, que parecia entretido em contar as estrelas. Foi a ele, e soltava já as primeiras palavras de uma veemente apóstrofe, quando Félix julgou prudente intervir a tempo de evitar um escândalo; reconciliou-os como pôde, e secamente os despediu.
Lívia estava à janela desconsolada e triste, enquanto Raquel, não menos triste que ela, executava no piano uma melodia adequada à situação de ambas. Não viera resposta do médico, a viúva sentia desvanecer-se-lhe a esperança de tantos meses, e com ela o futuro que tão perto se lhe afigurava. Estas eram as suas melancólicas reflexões, quando viu parar à porta de Félix um carro, descer uma mulher, entrar, sair depois com um homem e partirem ambos.
O golpe foi terrível e mais profundo que nunca. A viúva não temia decerto uma rival triunfante; mas via e sentia o desprezo do homem por quem tantas lágrimas chorara naquele dia. Se o médico lhe aparecesse então, ela reconheceria o seu engano, e a alegria de se sentir estimada lhe daria forças contra a dor de se ver ofendida. Félix não veio. Lívia mal pôde resistir à humilhação. Uma lágrima - a última que lhe restava - foi a única expressão do seu imenso desespero.
XV
ENFANT TERRIBLE
No dia seguinte, logo cedo, Viana foi à casa do médico. Não ia almoçar com ele; ia convidá-lo para jantar.
- Faço anos hoje - disse o parasita - e quisera ter à mesa alguns amigos, poucos. O senhor é dos primeiros, não pode faltar.
- Não faltarei - respondeu Félix.
Viana emitiu em seguida algumas ideias a respeito da maneira por que encarava um jantar de anos. Não devia compreender senão amigos íntimos, por ser festa do coração, alegria doméstica, em que tudo o que não falasse a língua da amizade seria estrangeiro ou talvez inimigo. Não bastava gosto para a escolha de tais amigos; era preciso jeito e sagacidade para discernir os que se prendiam pelo afeto dos que aderiam pelo costume. Esqueceu-lhe o principal; esqueceu-lhe dizer que, no seu ponto de vista, um jantar de anos era também um jantar a juros.
Félix aceitou o convite com sofreguidão; esperava um pretexto para voltar à casa de Lívia. Pungia-o ainda o ciúme, mas a irritação passara, e em lugar dela nascera o desejo de ver restabelecida a harmonia antiga, não por ato de vontade própria, mas por uma completa justificação da amada.
Com tais sentimentos saiu de casa. Lívia estava à janela quando o viu chegar; foi recebê-lo no patamar da escada que dava para o jardim. Ao apertar-lhe a mão, entre triste e risonha:
- Era eu que devia perdoar-lhe - disse -; mas seria ofender o seu orgulho.
- O meu orgulho? Perdoar-me? - repetiu Félix.
- Sim - disse ela fazendo um gesto afirmativo.
Leu-lhe Félix no rosto tão sincera tranquilidade, que esteve quase a aceitar a reconciliação. Hesitou algum tempo; deitou os olhos à sala, e viu atravessá-la na direção da escada a figura de Raquel. Então lembrou-lhe a semiconfidência que esta lhe fizera, e amargamente respondeu à viúva:
- Sejamos sérios.
Lívia empalideceu. Quis responder alguma cousa, e não pôde; Raquel estava com eles. Pouco depois chegaram o coronel e D. Matilde; Meneses não tardou muito. Algumas pessoas mais completavam o pessoal da festa. A presença de estranhos constrangia a viúva e o médico; era forçoso ser alegre como os outros, e isso custava a ambos, mais ainda a ela que a ele.
O jantar passou sem novidade de vulto. As pilhérias do coronel, e os brindes repetidos de Viana entretiveram a sociedade. Félix tentou seguir a corrente da alegria e logrou obtê-lo. Não reparava - ainda mal! - que a fronte da viúva parecia entristecer-se mais; seus olhos procuravam antes os de Meneses que os dela. Meneses tinha os seus embebidos nela.
No fim do jantar Viana propôs que fossem conversar na chácara. Meneses pediu que a filha do coronel tocasse primeiro uma melodia que lhe ouvira alguns dias antes. Raquel consentiu. A melodia era extremamente melancólica, e Raquel tocava-a com alma. O tom da música influiu nos ânimos; não havia só o simples silêncio da atenção, mas o recolhimento da tristeza.
Em alguns dos convivas esta impressão era mais natural e foi mais pronta. O médico, entretanto, forcejava não só por sacudir a estranha influência, como por afetar completa isenção de espírito.
Luís estava em pé diante dele, com os cotovelos fincados nos seus joelhos. Félix brincava-lhe com os cabelos, e ambos sorriam um para o outro, como se fossem os únicos estranhos à comoção geral. Ora, no meio do absoluto silêncio da sala, apenas interrompido pelas notas soltas e magoadas que os dedos de Raquel tiravam do piano, o filhinho de Lívia fez esta singela pergunta ao médico:
- Por que é que o senhor não se casa com mamãe?
Lívia estremeceu. Raquel cessou de tocar e volveu rapidamente a cabeça para o grupo donde partira a voz. Dos outros convivas, uns sorriam da inocente indiscrição do menino, outros observavam a viúva, ninguém reparava em Raquel.
A filha do coronel deixou imediatamente o piano. Viana lembrou então o passeio da chácara. Todos aceitaram o alvitre e saíram da sala. A espécie de acanhamento que a pergunta do menino deixara em todos para logo desapareceu de alguns.
Lívia não saíra logo. A alguma distância repararam na falta dela, e Raquel propôs-se a ir buscá-la. Achou-a a abraçar e beijar o filho. Conquanto ela fosse mãe extremosa, não havia razão imediata para aquela explosão de ternura. Raquel estacou sem compreender nada.
A viúva olhou para ela conchegando o filho ao coração.
- Que queres? - perguntou.
Raquel não respondeu. A pouco e pouco se lhe ia alumiando o espírito. Olhou longo tempo para ela, como se à força quisesse arrancar-lhe a explicação que o seu coração pressentia. Enfim, pareceu adivinhar tudo.
- Ama-o então? - perguntou ela com os lábios trêmulos.
- Creio que o amei - respondeu Lívia baixando tristemente a cabeça.
Se o espírito de Raquel não fosse ainda o regaço da castidade, aquela confissão mentirosa da viúva, porque ela ainda amava, podia fazer-lhe nascer alguma desairosa suspeita. Mas Raquel não viu naquelas palavras mais do que um amor medroso e não compreendido. Sua eloquente resposta foi apertá-la nos braços.
Lívia apertou-a com força. Era a primeira vez que o acaso lhe deparava uma confidente. Alteava-se-lhe o seio, túmido de suspiros; duas lágrimas lhe romperam dos olhos e foram morrer na espádua de Raquel. O menino interrompeu essa doce efusão. Lívia respirou largamente, e beijando com ternura a moça, disse:
- Vamos.
Mas Raquel não se movia. Tinha os olhos postos nela, os lábios apertados, os braços pendentes. Lívia sacudiu-lhe brandamente os ombros.
- Que tens? - disse.
- Nada - suspirou Raquel.
Lívia estremeceu. Súbito relâmpago lhe atravessou as sombras do espírito. Interrogou-a de novo, mas foi em vão. Então sentiu em si todas as energias do seu temperamento, e com um grito, que a cólera abafava, exclamou:
- Ah! Tu o amas também!
Raquel não lhe respondeu. Se a viúva lhe houvera falado com brandura é provável que lhe fizesse plena confissão de seus sentimentos. Mas, às palavras coléricas de Lívia, a pobre moça começou a tremer.
- Tu o amas também! - respondeu Lívia com voz surda e concentrada.
Raquel curvou o corpo, pôs as mãos em atitude de súplica, e murmurou com voz trêmula:
- Perdão!
Pairou nos lábios da viúva um sorriso sarcástico. Raquel repetiu ainda muitas vezes a palavra "perdão"; mas a única resposta da sua rival foi pegar-lhe do braço e indicar-lhe a porta.
- Vai ter com ele! - exclamou.
Depois saiu arrebatada da sala. Raquel, magoada pela violência do gesto da viúva, acompanhou-a com o olhar até à porta. Os olhos da corça ofendida não chamejavam ódio contra a leoa irritada.
XVI
RAQUEL
Quando Raquel ficou só, atirou-se ao sofá, trêmula, fria, com os olhos secos, sem compreender bem aquele drama íntimo, mas sentindo-lhe já algum terrível desenlace. O que ela via claro é que a outra amava o mesmo homem, e com tal força, que cedera a um impulso de cólera, tão contrário aos seus hábitos de brandura.
As reflexões de Raquel não passaram daí. Nem todas as almas podem encarar as grandes crises. Quer-se um espírito robusto para estas situações complexas. Raquel ficou simplesmente atônita e abatida.
Na chácara foi notada a ausência das duas. Viana deixou os hóspedes e foi à sala.
- Que faz aqui? - perguntou ele à filha do coronel.
Raquel ficara perturbada com a presença de Viana, e ainda mais com a pergunta. Enfim, balbuciou uma resposta infantil.
- Estava pensando numa cousa - disse ela.
- Onde está Lívia? - perguntou Viana sem atender à resposta da moça nem ao sorriso forçado que lhe entreabria os lábios.
- Creio que está incomodada; foi para dentro.
- Cousa de cuidado?
- Parece que não.
Viana deu duas voltas na sala e saiu para a chácara, pedindo à moça que lá se fosse reunir aos outros.
Félix, entretanto, viera até o jardim, que ficava em frente da casa. Mal havia dado alguns passos quando viu encostada à porta da sala a filha do coronel, com os olhos postos no céu, acaso pedindo a Deus que lhe estendesse a mão para subir até lá. Era sol-posto, hora de melancolia; tudo ali em volta assumia a cor pardacenta e luminosa dos últimos instantes da tarde.
Félix caminhou cautelosamente para a casa, subiu por um dos lanços da escada, e surpreendeu a moça, dizendo-lhe:
- Está linda assim, mas nós precisamos vê-la cá fora.
Raquel retraiu o corpo sem ousar dizer uma só palavra. Félix estendeu-lhe a mão convidando-a a descer. A moça entrou para dentro; o médico deu ainda um passo, mas ela, fazendo um gesto suplicante, disse com voz aflita:
- Pelo amor de Deus, saia!
Félix não resistiu; desceu ao jardim e caminhou para a chácara a reunir-se às outras pessoas. Em vão buscava conjecturar a causa daquela súplica. Era impossível conciliar o procedimento de Raquel com a familiaridade e a confiança que entre ambos havia. A razão da diferença devia ser grave. Mas qual seria ela?
Os convidados retiraram-se cedo. Meneses e Félix foram os últimos que saíram, ao lado um do outro, ambos entregues a reflexões diversas, porque Félix pensava nas palavras de Raquel, Meneses, na pergunta do menino.
A filha do coronel desceu ao jardim. Era noite fechada. Sentou-se num banquinho, e ali ficou em triste meditação. A pobre moça tremia de susto, de incerteza, de apreensão. Não ousava encontrar os olhos de Lívia; tinha-lhe medo, medo pueril, escusado, sem razão, mas enfim medo, e nada havia que tranquilizasse a sua alma franzina e pusilânime.
Como benefício celeste, entraram-lhe a correr as lágrimas, até então retidas pela presença de estranhos. Ninguém lhas viu, que a noite era fechada e o sítio, ermo; mas a aura estiva, que começava a bafejar a folhagem ressequida do sol, acaso lhe ouviu os soluços, acaso lhos levou ao seio de Deus. Veio então, de influxo divino, uma doce consolação às suas mágoas solitárias.
Não ousando voltar para dentro, determinou esperar ali o irmão da viúva, que fora acompanhar um amigo da vizinhança. Pedir-lhe-ia então para a levar no dia seguinte à casa de seus pais. Não hesitava entre a ternura deles e o ódio de Lívia.
Assim refletia ela, quando sentiu passos no jardim. Voltou-se; era a viúva.
- Ah! - exclamou Raquel levantando-se, trêmula e assustada -; pelo amor de Deus! Eu não lhe fiz mal nenhum!
Lívia acercou-se de Raquel; travou-lhe brandamente das mãos, apesar do esforço com que ela buscava esquivar-se, e disse:
- Que mal me farias tu, criança? A culpada sou eu; sou eu que te peço perdão, porque fui cruel e injusta, e cedi ao egoísmo do meu coração... Perdoa-me!
- Perdoo-lhe tudo! - respondeu Raquel.
Caíram nos braços uma da outra. Jamais duas rivais se estreitaram mais sinceramente amigas do que essas duas. Largos minutos correram sem que nenhuma delas falasse; refletiam talvez, talvez não pudessem vencer o acanhamento da sua posição. Lívia foi a primeira que rompeu o silêncio:
- Como é que vieste a amá-lo? - perguntou ela.
- Não sei - respondeu ingenuamente Raquel -; nasceu-me o amor sem que eu reparasse nele. Nem sei se nasceria; creio que foi apenas transformação, porque eu de pequena me acostumei a admirá-lo. Foi talvez a admiração que se fez amor quando eu cresci.
- Nunca lho deste a entender?
- Oh! Nunca.
- E ele?
- Percebi que me queria. Brincava comigo, como quando eu era criança: nada mais.
- E resignavas-te à sorte?
- Que poderia fazer senão isso? Alguma esperança tive nestes últimos tempos; em que a fundava, não sei; talvez na circunstância de nos vermos mais a miúdo. Enganava-me; penso que não nasci para ser feliz.
- Quem sabe? - disse a viúva -. Nem sempre o nosso coração acerta; pode ser que mais tarde te apareça outro a quem ames do mesmo modo...
- Do mesmo modo? - interrompeu Raquel com surpresa.
Lívia pegou-lhe nas mãos.
- Não te parece que assim seja? - perguntou.
- Oh! Não. Chame-me criança, se lhe parece; a senhora há de saber mais do que eu, naturalmente; mas o meu coração me diz que eu não poderia amar a ninguém mais.
- A ninguém mais! - murmurou a viúva amargamente -. Concentraste então toda a seiva do teu coração, neste amor silencioso e quimérico? Não digas isso; amarás mais tarde a outro que te amará também, e serás feliz, creio eu. Murchará esta primeira flor do teu coração, mas há seiva nele para dar vida a outra flor, tão bela talvez, e com certeza mais afortunada. O contrário, Raquel, seria injustiça de Deus. O amor é a lei da vida, a razão única da existência. Encher de uma só vez a alma, sem que ninguém lhe beba o licor divino, e regressar ao céu sem ter conhecido a felicidade na terra? Nem o quererá Deus, nem o temerás tu. Falas pela boca da tua amargura de hoje; espera a ação do tempo, que é bom amigo.
Raquel meditava. Era a primeira vez que ela ouvia falar daquele modo em cousas do coração. A linguagem da viúva servia-lhe a um tempo de consolação e de luz.
Lívia falou ainda muito tempo, sem preconceito nem reserva; não falou como rival, senão como amiga e mãe. Não reparava sequer que lhe dava armas contra si. Falaria talvez de outro modo se se considerasse feliz; mas, como a situação de ambas era igual, ela entornou na alma de Raquel todo o sentimento de que a sua alma estava cheia, e foi eloquente, porque foi sincera.
- Sim - disse Raquel, quando ela acabou -; compreendo tudo isso que me está dizendo. A senhora sabe amar... E ainda o ama, não?
Lívia calou-se.
- Que lhe custa dizer? - insistiu a donzela.
- Custa-me lágrimas. Eu não te poderia explicar nunca este sentimento que me nasceu como erva ruim para me envenenar a existência, e que eu tanto tempo supus que seria a coroa de minha vida... Não te quero enfadar, que são tristezas para isso.
- Mas então ele? - aventurou Raquel.
- Não me perguntes mais; afirmo-te só que o amei, que talvez tornasse a amá-lo...
- E que ainda o ama - concluiu a rival.
Lívia esteve calada alguns instantes, procurando ler-lhe no rosto, apesar das sombras da noite, as impressões que lhe iriam na alma.
- Não! Já o não amo! - disse a viúva com esforço.
Seguiu-se um longo silêncio.
- E se o amasse - disse enfim Lívia -, que farias tu?
- Nada! - respondeu resolutamente Raquel.
- Deveras, nada?
- Pediria a Deus que a fizesse feliz, e estou que Deus me ouviria.
- Eras capaz disso? - perguntou a viúva segurando-lhe nos pulsos e fitando lhe os olhos em cheio.
- Era - respondeu ingenuamente a donzela.
Lívia não disse palavra. Se das comoções da sua alma algum vestígio lhe subiu ao rosto, disfarçou-lho a noite às vistas de Raquel. Ambas ficaram pensativas algum tempo. Uma forte rajada fê-las estremecer. Era sinal de chuva próxima; nuvens negras começavam a povoar o céu. As duas recolheram-se a casa.
- Vales mais do que eu - dizia a viúva entrando com Raquel na sala -. Eu sou apenas egoísta; egoísta e nada mais. Guarda essas flores evangélicas do sacrifício, do perdão e do amor. São raras; e por isso é que és um anjo.
Foi diferente a noite que ambas passaram.
Raquel estava mais tranquila depois da conversa no jardim; mas que destino teria a flor de sua alma, lírio transformado em goivo, vivido de lágrimas, medrado no silêncio? Não lhe apeteciam lutas. Faltavam-lhe as armas de combate - a astúcia ou a energia -; faltava-lhe principalmente o desejo de despertar um coração que sabia não ser seu.
Mas esse coração, possuía-o acaso Lívia? Parecia-lhe que não; o mistério, porém, a reticência, a indecisão das palavras da rival, tudo se lhe afigurava cobrir um drama que ela não compreendia nem conjecturava.
No ânimo de Lívia outras foram as preocupações. Para ela, a situação era mais clara. Sentia desvanecer-se o amor de Félix, e via surgir uma rival perigosa. Tinha medo da ignorância de Raquel; receava que a inocência dessa alma ainda em flor pudesse dominar o espírito rebelde de Félix; e tal seria a catástrofe das suas esperanças.
E quando todas essas sombras lhe povoavam o espírito, e o coração lhe pulsava com mais força, perguntava-lhe a consciência se lhe era lícito opor algum obstáculo à felicidade da donzela, dado que esta vencesse o coração do seu noivo.
Lívia não dormiu a noite toda. No dia seguinte, apenas a claridade da manhã lhe entrou no quarto, a viúva levantou-se, vestiu à pressa um roupão, e foi ao quarto de Raquel.
A filha do coronel dormia profundamente. Repousava de suas longas reflexões. Lívia abriu o cortinado muito ao de leve, contemplou-lhe o rosto sereno e risonho, os olhos cerrados, e os lábios semiabertos como se em sonhos murmurasse palavras de amor. Os cabelos esparsos lhe serviam de resplendor à sua cabeça angélica.
"Não!", pensava Lívia. "O amor não dorme assim tranquilo em dias de infortúnio e desespero. Criança inconsciente que te supões alar às regiões do sol, que sabes tu dos precipícios da viagem, que conheces tu das voragens do coração?"
- Ah! Estava aqui! - exclamou Raquel acordando -; ainda bem!
- Por quê?
- Sonhei que morria, e que era recebida no céu. Fora bom morrer assim; mas eu sempre tinha pena de deixar a terra. Acordou hoje muito cedo.
- Queria dar um passeio - disse Lívia indo abrir a janela -, mas a manhã já está quente.
Raquel olhou para ela; viu-lhe os olhos pisados e o rosto desfeito. Compreendeu que não havia dormido, e que chorara.
"Ama-o então muito?", perguntou ela a si mesma.