Romance

Ressurreição

1872

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Ressurreição é o primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.

Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma "Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida; na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e, ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a tradução que constava na publicação de 1872.

Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e, por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas de maneira mais sorrateira.

Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à "primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "cômplice" "cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de "atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada ("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta), por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala [...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir, na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.

Esta não pretende ser uma edição crítica, nela não há notas editoriais. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ


agosto de 2008

IV

PRELÚDIO

No dia seguinte partiu Félix para a Tijuca, onde tinha uma casa de recreio e refúgio; regressou duas semanas depois. Durante esse tempo nada soube do que ocorrera na cidade: não leu jornais nem abriu cartas de amigos.

Alguma cousa, entretanto, havia ocorrido: a primeira notícia com que o saudaram os amigos, apenas ele chegou à cidade, foi que Cecília conquistara o coração de Moreirinha.

O sucessor de Félix, pouco depois que este chegou, não deixou de lhe ir participar a sua boa fortuna, não sei se por fatuidade, se por despicar a dama.

- Dou-lhe os meus parabéns - respondeu Félix -; conquistou uma rapariga sossegada, carinhosa, capaz de o compreender...

- Tanto melhor! - acudiu o rapaz -. O que me faltava era isso mesmo; uma mulher que me compreendesse. Cecília não é positivamente uma alma perdida; não está na linha dessas outras mulheres com quem tenho despendido o meu dinheiro sem colher nada mais que alguns tardios remorsos. É uma moça de bons sentimentos, conserva certa dignidade no vício, tem uma alma nobre, elevada...

Este panegírico durou alguns minutos mais. Dentro de tão pouco tempo descobrira-lhe Moreirinha qualidades desconhecidas para o antecessor. Seria mais néscio ou mais perspicaz? Cecília não era hipócrita quando dizia gostar de um homem; qualquer que fosse a natureza dos seus afetos, ela os sentia sinceramente; mas era raro que sobrevivessem vinte e quatro horas à causa que lhos inspirara. Não se lhe desmentira a constância durante os seis meses de intimidade com Félix; mas, se ela era amante para querer a um só homem, era independente para o esquecer depressa. Tinha uma fidelidade filha do costume; a sua máxima era não esquecer o amante presente, não recordar o amante passado, nem se preocupar com o amante futuro. Moreirinha era o amante presente; podia contar com a fidelidade da rapariga, ao menos com as suas boas intenções.

Quando Meneses soube deste desenlace ficou atônito. Julgou a princípio que era apenas uma afetação de Moreirinha; mas logo verificou que não. Foi ter com o médico.

- Meu amigo - disse -: peço-te que me desculpes a carta ridícula que te escrevi.

- Que carta?

- A respeito de Cecília. Nunca pensei que fossem fingidas aquelas lágrimas que me entraram pelo coração. Aprendi a não crer tão superficialmente.

- Não aprendeste cousa nenhuma - retorquiu Félix encolhendo os ombros -; não é em terra que se fazem os marinheiros, mas no oceano, encarando a tempestade.

O episódio dos amores de Cecília foi assunto de conversa no círculo dos rapazes que aqueles frequentavam. Nem tardou que passasse além. No fim de algum tempo, pouca gente ignorava que a moreninha que passeava todas as tardes em carro descoberto pela praia de Botafogo era o altar em que o Moreirinha fazia os seus sacrifícios diários e pecuniários. Félix admirou-se ao princípio desta mania de passear tão contrária aos hábitos preguiçosos de Cecília; mas atinou logo com a chave do enigma. Moreirinha não compreendia o que era ser feliz sem publicidade. Para ele, a ilha de Citera não podia ser jamais a ilha de Robinson.

Entretanto, passara um mês desde o sarau do conselheiro. Félix não se havia aproveitado do convite que a viúva lhe fizera, nem cedido às instâncias de Viana. Encontrou-os, porém, uma noite no Ginásio. Estava ele nas cadeiras quando os viu num camarote da segunda ordem. No fim do segundo ato Félix subiu ao camarote.

Teve excelente recepção, posto que a viúva, sem deixar de ser cortês e graciosa, parecia um pouco reservada e preocupada. Não falava com a mesma volubilidade da noite do baile. Esquecia-se às vezes de si e dos outros. Duas vezes lhe aconteceu dar uma resposta sem pergunta e deixar uma pergunta sem resposta.

A conversa, portanto, não foi muito animada. Felizmente Viana encarregou-se de preencher os intervalos com a sinfonia das suas reflexões.

Quando se levantou o pano para o terceiro ato, Félix quis sair, mas tanto a viúva como o irmão pediram-lhe que ficasse. Aceitou o convite e ficou. Do que houve em cena durante esse ato pode-se afirmar que Félix nada soube absolutamente. O ato era curto, e Félix empregou todo o tempo em observar a moça, que, molemente reclinada na cadeira, acompanhava distraída o diálogo dos atores.

"Em que estará pensando esta moça?", dizia Félix consigo. "Evidentemente, não lhe importam os suspiros do galã, nem as facécias do gracioso. Olha, mas não vê a cena. Estará à espera de algum namorado remisso? Mas quem é então esse lorpa que deixa entristecer uns olhos tão bonitos?"

A ingênua da peça, que desde o ato anterior se sabia estar apaixonada pelo galã, como é de jeito no teatro e no mundo, entrou precipitadamente em cena e lançou-se nos braços do amado. Algumas palmas do público premiaram essa resolução inesperada e enérgica. Então começou entre a dama e o galã um diálogo de sentimento e paixão, um duelo de suspiros, um protestar de fidelidade e constância, que a plateia ouviu com demonstrações de entusiasmo.

"Ama, não há dúvida", continuou Félix a dizer entre si - "basta ver como lhe brilham os olhos a cada frase do diálogo. Agradam-lhe os protestos do namorado e as lágrimas da dama. Creio que sorri; é de aprovação. Oh! Como está divina!"

Enfim, caiu o pano; e a viúva, que já no fim do ato parecera ter voltado à sua anterior preocupação, levantou-se, dizendo que se ia embora.

Viana pediu-lhe para ficar até o fim da peça; ela insistiu, e era forçoso ceder. Félix acompanhou-os até o carro.

- Até quando? - perguntou Lívia, aceitando a mão que Félix lhe oferecia.

- Até breve.

Seria acaso ou ilusão? Félix sentiu uma forte pressão dos dedos da moça, enquanto esta subia rapidamente para o carro, e ia responder com um aperto ainda mais forte; mas era tarde; a moça já estava sentada, e Viana punha o pé no estribo para subir.

Ilusão era decerto; ilusão ou casualidade. Mas o médico não o percebeu logo, e foi um primeiro erro na maneira de julgar a viúva.

Poucos dias depois do encontro no teatro, dirigiu-se Félix a Catumbi onde eles moravam. Não os achou. Quando Lívia voltou para casa soube da visita de Félix pelo cartão que a mucama lhe deu. Tão apressadamente descalçou as luvas que as rasgou; e como o irmão fizesse um reparo a este respeito, a moça respondeu com azedume. Viana estava acostumado às asperezas da irmã, levantou os ombros e saiu.

Félix encontrou-a dous dias depois na rua do Ouvidor, fazendo compras para a viagem.

- Se adivinhasse a sua visita, não teria saído de casa - disse a viúva.

Félix inclinou-se.

- Por outro lado, estimo ter estado fora; morando eu tão longe, não teria o prazer de recebê-lo segunda vez, e nesse caso antes nada.

- O tilbury encurta as distâncias - observou Félix -; procurarei desempenhar-me da obrigação em que estou.

- Da obrigação já se desempenhou; agora...

- Perdão; o seu cumprimento constitui uma obrigação nova.

Despediram-se .

Meneses, que estava na calçada oposta, durante as poucas palavras trocadas entre Félix e a viúva, atravessou a rua e veio ter com o amigo.

- Quem é aquela moça?

- É a irmã do Viana.

- Bravo! É lindíssima.

- É realmente bonita, o que lhe merece a admiração geral. Vê como todos lhe estão com os olhos em cima...

- Se não há indiscrição - disse Meneses depois de a ver entrar em uma loja -, queimas os teus perfumes naquele altar?

- Não. Para quê?

- Talvez algum casamento incubado...

- Casar?... - disse Félix rindo -. A pergunta é tão original que merece um sorvete. Vem ao Carceller.

No Carceller contou-lhe Meneses que andava incomodado e triste. Vivia ele maritalmente com uma pérola que pouco antes encontrara no lodo. Na véspera descobrira em casa vestígios de outro amador de pedras finas. Estava certo da infidelidade da amante; pedia-lhe conselho.

- Não te dou conselho nenhum - respondeu o médico -; resolve tu mesmo.

- Mas, se eu pudesse resolver alguma cousa no estado em que estou, não viria falar a um amigo...

- Lisonjeia-me a escolha; mas não passa disso. Imita-me, se podes; mas não me peças reflexões.

- Mas, no meu caso, que farias tu?

- Cousa nenhuma; pegava no chapéu e saía.

- E se o não pudesses fazer sem dor?

- Hipótese absurda.

- Para ti.

- Naturalmente.

Houve uma pausa.

- Dou-te enfim um conselho - disse Félix.

Meneses levantou os olhos com ansiedade.

- Qualquer que seja a resolução que tomares - continuou Félix -, não recues um passo.

- Onde acharei esta resolução?

- Aqui - disse Félix pondo-lhe o dedo na testa.

- Oh! Não! - suspirou Meneses; a cabeça nada tem com isso; todo o mal está no coração.

- Recorre à cirurgia: corta o mal pela raiz.

- Como?

- Suprime o coração.

V

FICO

Dous dias depois, estando Félix a vestir-se para ir a Catumbi, entrou-lhe Meneses por casa. Vinha pálido e abatido, olhos vermelhos, passo trêmulo. Não se sentou, deixou-se cair numa cadeira.

- Que é isso? - perguntou Félix.

- Está tudo acabado - respondeu ele -: romperam-se os vínculos fatais. Custou-me muito, mas era necessário; foi agora há pouco; corri para cá; precisava de alguém com quem desabafasse. Isto é ridículo, bem sei; mas que queres? Eu sofro... tenho um coração miserável, e deixo-me levar por ele...

Félix pareceu condoer-se da situação do rapaz, e disse-lhe algumas palavras de animação, que ele ouviu com reconhecimento.

- Eu já desconfiava - disse Meneses -, de que era traído; só tive a certeza ontem. O que mais me dói em tudo isso - continuou ele depois de alguns instantes de silêncio -, é que, para servir ao homem que me traiu, desfazia-me eu em obséquios, e até, confesso-te aqui, era seu credor.

- É por isso que eu não empresto dinheiro a ninguém - respondeu Félix, penteando as suíças.

- Mas quem pode adivinhar o mal, quando nos apresentam uma fisionomia risonha? Eu confiava em ambos.

Félix encolheu os ombros.

- Toma um charuto disse.

- Não quero fumar.

- Fuma; eu já observei que o fumo impede as lágrimas, e ao mesmo tempo leva ao cérebro uma espécie de nevoeiro salutar.

- Vais sair? - perguntou Meneses, vendo que o outro punha o chapéu na cabeça.

- Vou à casa do Viana. Queres vir?

- Não posso.

- Devias vir comigo; apresentava-te irmã dele, e passávamos algumas horas em companhia amável. Esquecerias depressa as tuas penas.

Meneses recusou; Félix levou-o no carro até à rua do Lavradio, onde ele morava.

Em caminho conversaram dos seus extintos amores. Meneses jurava que era a última aventura a que expunha o seu coração; achava-se curado de uma vez.

- Não afirmes nada, Meneses; podes errar. Sabes o que te falta? Têmpera. Amanhã, entre duas lágrimas, aparece-te um raio de sol, e eis-te de novo namorado, confiado e arriscado.

- Oh! Não! - protestou Meneses.

- Quem dera que não! Mas eu estou a ler no teu rosto que a única maneira de te consolar deste naufrágio é dar-te outro navio. Só muito tarde te convencerás de que viver não é obedecer às paixões, mas aborrecê-las ou sufocá-las. Os maricas, como tu, choram; os homens, esses ou não sentem ou abafam o que sentem. Isto não tem réplica, meu... amigo, diria eu, se me não lembrasse do teu afortunado rival, que é positivamente um mariola. Vem à casa do Viana; hás de gostar da Lívia; parece-se contigo.

- Não posso - respondeu Meneses, que só ouvira as últimas palavras de Félix.

- Mas hás de ir depois?

- Sim, depois.

- E se te apaixonas por ela?

Meneses sorriu tristemente; o carro parou; despediram-se um do outro, e Félix seguiu para Catumbi.

Lívia estava só em casa. Fora convidada a um jantar, mas respondeu pretextando um incômodo que não tinha. O irmão encarregou-se de ir representá-la.

- Tinha o pressentimento - disse ela depois de referir estas cousas ao doutor -, tinha o pressentimento de que o senhor vinha cá hoje, e não desejava que lhe acontecesse a mesma cousa que da primeira vez.

- E acredita em pressentimentos? - perguntou Félix.

- Não os explico, mas acredito neles.

Lívia parecia mais bela que das outras vezes. Não só a luz natural dizia melhor com a sua tez, como também a simplicidade do vestuário era para ela um realce. Félix não dissimulou a impressão que lhe causava aquele novo aspecto da moça. Lívia, que, como toda a mulher bela, e posto não fosse vaidosa, sabia mirar-se na fisionomia dos outros, não deixou de perceber a impressão do doutor.

A cena da portinhola do carro não havia saído do espírito de Félix, que se convencera de duas cousas: primeiro, que a viúva gostava dele; depois, que era fácil triunfar da viúva. As aparências davam fundamento à opinião de que a moça o amava. Félix aproveitou a situação e dispôs-se a tirar dela todo o proveito possível. Pouco se demorou, entretanto, naquele dia. Quando anunciou que se ia embora, pediu-lhe a viúva que não esquecesse a casa.

- Aproveitarei o tempo - observou Félix -, enquanto não embarcam para a Europa. Seu irmão diz-me que a viagem é breve.

- Se não houver transtorno. Em todo o caso, venha, e não faça visitas de médico.

- Eu fui médico; fiquei com esse costume - respondeu Félix sorrindo.

- Já não é médico?

- Do corpo, não.

- Mas da alma?

- Talvez. Deixei agora mesmo um doente da alma que eu desejaria apresentar-lhe, porque estes ares dão saúde, creio eu.

- De que sofre o seu doente?

Félix sorriu-se.

- Vítima de uma inconstância, moléstia vulgar. Está no período agudo. É um pobre rapaz inocente e singelo, que vai buscar as regras da vida nos compêndios da imaginação. Maus livros, não lhe parece?

Lívia não respondeu; estava embebida a ouvi-lo.

- Meneses não conhece outros - continuou Félix -. Parece filho daquele astrólogo antigo que, estando a contemplar os astros, caiu dentro de um poço. Eu sou da opinião da velha, que apostrofou o astrólogo: "Se tu não vês o que está a teus pés, por que indagas do que está acima da tua cabeça?"

- O astrólogo podia responder - observou a viúva - que os olhos foram feitos para contemplar os astros.

- Teria razão, minha senhora, se ele pudesse suprimir os poços. Mas que é a vida senão uma combinação de astros e poços, enlevos e precipícios? O melhor meio de escapar aos precipícios é fugir aos enlevos.

Lívia ficou pensativa alguns instantes.

- O pensamento é melancólico - disse ela -; contudo pode ser verdadeiro. Mas por que razão condenaremos a vida contemplativa dos que não conhecem a vida positiva? Os livros da imaginação... esses livros não são detestáveis, como o senhor disse; não os há detestáveis nem ótimos. Deus os dá conforme a ciência de cada um.

Félix despediu-se de Lívia, não enlevado, não palpitante, mas disposto a uma aventura. Amiudou as visitas a Catumbi, a grande aprazimento de Viana, que suspeitou alguma afeição entre os dous, e imaginara uma aliança de família.

A presença de Félix era até vantajosa naquela casa. Entre a viúva e o irmão havia um abismo. Eram dessemelhantes nos sentimentos, nos hábitos de viver, na maneira de pensar. Lívia tinha alternativas de afabilidade e rispidez, ao passo que o irmão era de uma inalterável paz de espírito. Viana tinha cousas más e boas, sendo que as cousas boas eram justamente as que se opunham ao gênio especulativo da viúva. Era homem essencialmente prático; o seu reino era todo deste mundo. Apesar das suas pretensões a rapaz estouvado e extravagante, tinha hábitos de ordem e economia. Lívia era a este respeito negligente e "meia douda", como lhe chamava o irmão; alheava-se muitas vezes das cousas que a cercavam para subir a um mundo superior e quimérico. O médico era entre ambos uma espécie de mediador plástico. Não pertencia à esfera de nenhum deles, mas sabia a maneira de os conciliar.

Félix encontrou algumas vezes em Catumbi o Dr. Batista, que ele vira dançar com a viúva em casa do coronel. Lívia não parecia prestar-lhe atenção, nem o pretendente magoar-se por isso. Era um modelo de cálculo. Conhecia todos os artifícios da campanha amorosa, a indiferença, o desdém, o entusiasmo, e até a resignação.

Uma noite em que saíram de lá juntos, Félix procurou sondar-lhe o espírito a respeito da moça.

- Nada há - respondeu Batista com indiferença -; nem eu pretendo cortejá-la. Mas, se o pretendesse, triunfaria; a paciência é a gazua do amor.

- Não lhe parece que essa sua máxima é imoral?

- Efetivamente é assim; mas é por isso mesmo que estes amores são deliciosos.

Quinze dias depois apareceu Viana em casa de Félix. Deu-lhe parte de que a irmã já não ia para a Europa.

- Por que motivo? - perguntou Félix.

- É justamente o que eu desejava saber - disse Viana com um gesto de mal contido despeito -; mas estou certo de que o não saberei jamais. Aquela minha irmã não me parece ter a cabeça no seu lugar.

- Alguma razão haveria. Estará doente?

- Está de perfeita saúde.

- Quem sabe se... algum namoro?

- Já pensei nisso - disse Viana -; pode ser algum namoro.

- Naquela idade as paixões são soberanas. Seria inútil querer dissuadi-la e ainda que não fosse inútil, seria desarrazoado, porque uma viúva moça... Ela amava muito o marido, não?

- Antes de casar, muito; três meses depois, muitíssimo; ao cabo de alguns meses, nem muito nem pouco. Toda essa história é mistério para mim...

- Não lhe vejo mistério nenhum; o casamento é justamente isso: acalma os afetos para os tornar mais duradouros. Se a paixão de sua irmã se tornou mais calma...

- Não se trata disso. Lívia não amava menos; aborrecia o marido. Mas por que nos demoraremos nestas cousas que não podemos explicar? A única explicação que lhe acho é o seu caráter esquisito. O senhor não imagina bem que eterna variação de gênio é aquela moça. Há dias em que se levanta meiga e alegre, outros em que toda ela é irritação e melancolia. Ninguém a entende, e eu menos que ninguém.

- Não esteja o senhor a exagerar uma cousa naturalíssima. Todos temos essa mesma alteração de humor. Há manhãs tristes e aziagas. Quer que lhe dê um conselho? Não a contrarie nunca, é o melhor.

- Mas o senhor há de concordar que quando a gente já preparava os beiços para ir saborear a vida parisiense...

- Há tempo para tudo - disse Félix -, e o senhor ainda está moço. Iremos juntos daqui a um ano.

- Palavra?

- Palavra.

VI

DECLARAÇÃO

- Então, já não vai para a Europa? - perguntou Félix à viúva nessa mesma tarde.

- Quem lho disse?

- Seu irmão.

- Desfiz a viagem, bem contra a vontade dele, que me chamou caprichosa e não sei que mais. Talvez tenha razão. Eu mesma não me entendo às vezes. Esta viagem, que era um desejo ardente, acha-me agora fria. Que lhe parece isto?

- Alguma razão há de haver - ponderou o médico -; e eu sentiria se o motivo...

- Se o motivo? - repetiu a moça.

Calaram-se e ficaram algum tempo a olhar um para o outro. A explicação, que já os lábios não pediam nem davam, começaram a pedi-la e a lê-la os olhos de ambos.

Lívia abaixou os seus.

- Vamos para o terraço - disse ela por fim; a tarde está bonita.

A tarde estava realmente linda. Félix, entretanto, cuidava menos da tarde que da moça. Não queria perder o ensejo de lhe dizer, como se fora verdade, que a amava loucamente. Encostada ao parapeito do terraço que dava para a chácara, a viúva simulava contemplar os esplendores do ocaso; na realidade, afiava o ouvido para escutar a confissão amorosa.

Félix olhava para ela e não ousava romper o silencio. Quase a soltar dos lábios a palavra decisiva, a si mesmo perguntava se ela não iria pesar no seu destino mais do que imaginava então, e se daquele capricho de momento não resultaria o mal de toda a sua vida. Mas a hesitação foi curta; Félix ia enfim lançar a sorte, quando um escravo apareceu no terraço, a anunciar a visita do Dr. Batista.

- Não quero falar a ninguém, João - disse a moça -; estou incomodada.

- Que resposta é essa? - perguntou Félix, baixinho, quando o escravo voltou as costas.

- João! - disse a moça.

O escravo voltou.

- Eu hoje só posso receber as pessoas mais íntimas de casa, os amigos de meu irmão. Às outras dize que estou incomodada.

O escravo saiu.

- Adota esta explicação?

- Antes essa - respondeu Félix -; é melhor para a senhora; sinto-a contudo por mim; não quisera ser envolvido entre os íntimos da casa.

- Quer que eu corrija a ordem que dei?

- Não peço tanto; não tenho direito a isso; e todavia...

- E todavia?...

Houve um curto silencio.

- Não me compreende? - disse Félix com voz quase sumida.

- Compreendo - murmurou ela, depois de uma pausa -; mas receio enganar-me.

- Não se engana - insistiu Félix com calor -; amo-a, e seria impossível negá-lo, porque a minha voz e o meu rosto hão de tê-lo dito melhor do que as minhas palavras. Não percebe isso há muito tempo? Não adivinhou já que a esperança do seu amor é para mim toda a felicidade de amanhã? Diga! Diga uma palavra só, cruel ou benévola, mas uma e definitiva.

Lívia escutara-o enlevada, e sua resposta foi mais eloquente que a declaração do doutor; estendeu-lhe a mão trêmula e fria, e embebeu nos olhos dele um longo olhar de agradecimento e felicidade.

- Ama-me também? - perguntou Félix depois de alguns minutos de muda contemplação.

- Oh! Muito! - suspirou a moça.

E ambos ali ficaram silenciosos, ofegantes e namorados, nesse êxtase dulcíssimo que é porventura o melhor estado da alma humana. Ambos, porque o coração do médico, naquele instante ao menos, palpitava com igual fervor.

- Muito! - repetiu Lívia, como se essa palavra fosse apenas um eco do seu pensamento ou uma resposta à muda interrogação dos olhos do médico.

Félix passou-lhe o braço à roda da cintura e puxou-a docemente para si, depois segurou-lhe a cabeça entre as mãos, e inclinou os lábios para lhe imprimir um beijo na fronte. Deteve-o um rumor estranho, uma voz infantil e desconhecida.

Instantes depois apareceu no terraço um menino de cinco anos, criança gentil e esperta, rosada e gorda, como os anjos e os cupidos que a arte nos representa em seus painéis.

- Mamãe! Mamãe! - gritava o pequeno, correndo a abraçar-se com a mãe e fugindo à mucama que vinha atrás dele.

Lívia recebeu a criança nos braços; beijou-a e pô-la ao colo.

- Apresento-lhe meu filho - disse ela ao médico -; estava em casa da madrinha; veio ontem para cá.

E voltando-se para o menino:

- Luís, conheces o Dr. Félix?

O menino olhou para o médico com a expressão pasmada e interrogativa das crianças que veem uma pessoa pela primeira vez, e voltou-se para a mãe, sem parecer impressionar-se muito. Lívia encheu-lhe as faces de beijos. A criança, rindo de prazer, repeliu com as mãozinhas aquela chuva de carícias maternas.

- Ora bem - disse a viúva -, quem te deu ordem de andar a correr por aqui?

- Ninguém - respondeu o menino -, eu pedi a Clara para me deixar vir; ela não quis, mas eu vim. Não fiz bem, mamãe?

- Fizeste mal. Vai brincar, vai, mas não corras.

- Quem é esse moço? - perguntou Luís, olhando outra vez para Félix.

- Já te disse: é o Dr. Félix.

- Ah!

Luís encarou o médico; depois olhou para a mãe, e fez um gesto para descer. Lívia pô-lo no chão.

- Posso ir à chácara?

- Podes; leva-o, Clara.

Luís deitou a correr seguido pela mucama. A mãe acompanhou-o com os olhos até vê-lo desaparecer do terraço.

Durante esta cena, Félix parecera completamente estranho a tudo que o rodeava. Não ouvia as repreensões da moça, nem a tagarelice da criança; ouvia-se a si mesmo. Contemplava aquele quadro com deleitosa inveja, e sentia pungir-lhe um remorso.

"É mãe", repetia o moço consigo; "é mãe!"

- Olhe - dizia a moça, debruçada sobre o parapeito que dava para a chácara -; veja como ele vai correndo...

Félix debruçou-se também; o menino corria efetivamente adiante de Clara, que o acompanhava de longe. De quando em quando, parava o menino aguardando a mucama; mas tão depressa esta se lhe aproximava, a criança negaceava o corpo, e deitava a correr outra vez. A mãe parecia esquecida de tudo mais; Félix contemplava-a com religioso respeito. Estiveram assim calados alguns segundos. De repente, Lívia voltou- se para o médico:

- Vê? - disse ela -; a pouco se reduz a minha felicidade: o senhor e aquela criança.

Dizendo isto, deixou pender a fronte; Félix beijou-a ardentemente, mas não pôde dizer nada. A comoção embargou-lhe a voz; a reflexão impôs-lhe silêncio.

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