Romance

Ressurreição

1872

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Ressurreição é o primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.

Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma "Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida; na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e, ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a tradução que constava na publicação de 1872.

Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e, por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas de maneira mais sorrateira.

Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à "primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "cômplice" "cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de "atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada ("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta), por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala [...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir, na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.

Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ


agosto de 2008

III

AO SOM DA VALSA

A casa do coronel podia conter o triplo das pessoas convidadas para o sarau daquela noite; mas o coronel preferira convidar apenas as pessoas mais íntimas e familiares. Era homem pouco cerimonioso, gostava sobretudo da intimidade.

Quando Félix entrou, dançava-se uma quadrilha. O coronel foi ter com ele e levou-o para onde estava a mulher, que já o esperava com ansiedade, pela razão, dizia ela, de que era um dos poucos rapazes que ainda conversavam com velhas, estando entre moças. Félix sentou-se ao pé de D. Matilde. Estava então de bom humor e conversou alegremente até que a música parou.

A mulher do coronel era o tipo da mãe de família. Tinha quarenta anos e ainda conservava na fronte, embora secas, as rosas da mocidade. Era uma mistura de austeridade e meiguice, de extrema bondade e extrema rigidez. Gostava muito de conversar e rir e tinha a particularidade de amar a discussão, exceto em dous pontos que para ela estavam acima das controvérsias humanas: a religião e o marido. A sua melhor esperança, afirmava, seria morrer nos braços de ambos. Dizia-lhe Félix às vezes que não era acertado julgar pelas aparências, e que o coronel, excelente marido em reputação, fora na realidade pecador impenitente. Ria-se a boa senhora destes inúteis esforços para abalar a boa fama do esposo. Reinava uma santa paz naquele casal, que soubera substituir os fogos da paixão pela reciprocidade da confiança e da estima.

A conversa com a dona da casa roubou algum tempo às moças, segundo a expressão do coronel. Era necessário que Félix se dividisse com as senhoras que ainda tinham amor aos exercícios coreográficos. Recusou, pretextando a presença de D. Matilde.

- Oh! Por mim não! - respondeu a boa senhora -; o direito das velhas tem um limite no direito das moças. Vá, doutor, e mais tarde volte cá, se o não agarrarem por aí...

Valsava-se. Félix levantou-se e foi buscar um par. Não tendo preferência por nenhuma senhora, lembrou-lhe ir pedir a filha do coronel. Atravessava a sala para ir buscá-la defronte, quando foi abalroado por um par valsante. Conquanto fosse navegante prático daqueles mares, não pôde evitar o turbilhão. Susteve o equilíbrio com rara felicidade e foi procurar melhor caminho, costeando a parede. Nesse momento os valsantes pararam perto dele. Pareceu-lhe reconhecer Lívia, irmã de Viana. Com as faces avermelhadas e o seio ofegante, a moça pousava molemente o braço no braço do cavalheiro. Murmurou algumas palavras, que Félix não pôde ouvir, e depois de lançar um olhar em roda de si, continuou a valsar.

Durou isto minutos.

Félix, apenas se achou livre, foi buscar a filha do coronel, interessante criança de dezessete anos, figura delgada, rosto angélico, formas graciosas, toda languidez e eflúvios. Era uma dessas mulheres que fazem o mesmo efeito que um vaso de porcelana fina: toca-se-lhes com medo de as quebrar. Raquel era o seu nome; tinha grandes pretensões a mulher, que lhe não ficavam mal naquela idade de transição; mas o que Félix lhe achava melhor era justamente o seu aspecto de criança, mal disfarçado pela formação do seio. Como caráter, fazia-lhe a mãe grandes elogios, e eram fundados, posto fossem de mãe.

Raquel aceitou o convite. Félix passou-lhe o braço à roda da cintura, e ela estremeceu da cabeça aos pés; depois entregou-se-lhe toda com aquele abandono que a valsa prescreve ou permite, e voaram pela sala no turbilhão geral. A agitação coloriu um pouco as faces da moça, comumente descoradas. Quando pararam, estava ofegante.

- Sentemo-nos - disse Félix.

- Não; passeemos um pouco. Por que não aparece cá?

- Receio não os encontrar; estão sempre fora...

- Não; há dous meses estamos na cidade. Mamãe diz que já não está para estas viagens contínuas, e eu acho que tem razão. Também me cansam a mim; o mais influído é papai.

- Não gosta da roça?

- Eu não tenho preferências; gosto tanto da roça como da cidade; contudo... dou-me melhor cá.

- Está olhando para aquela moça? Não a acha bonita?

- Quem? Eu não olhava para ninguém.

- Pois fazia mal; porque valia a pena olhar: Lívia é a rainha da noite.

Conquanto Raquel, na opinião de Félix, fosse uma menina, não deixou este de estranhar que tão facilmente cedesse a realeza da noite a outra mulher; mas, por outro lado, refletia que esta abdicação bem podia ser uma afetação de modéstia. Contudo, o límpido olhar da moça revelava a mais absoluta ingenuidade. Fez-lhe um cumprimento à beleza dela e entrou a admirar de longe a beleza de Lívia.

Lívia tinha efetivamente um ar de rainha, uma natural majestade, que não era rigidez convencional e afetada, mas uma grandeza involuntária e sua. A impressão de Félix foi boa e má; achou-lhe uma beleza deslumbrante, mas pareceu-lhe ver através daquele rosto senhoril uma alma altiva e desdenhosa.

- Será a rainha da noite - disse ele voltando-se para Raquel -; mas não serei eu quem lhe faça a corte.

- Por quê?

- Parece-me orgulhosa; há de tratar a todos como vassalos seus. Não vê com que desdém ouve ela as palavras do cavalheiro que lhe dá o braço?

O cavalheiro era o mesmo rapaz que valsara com a viúva, um Dr. Batista, descendente em linha reta do Leonardo de Camões, "manhoso e namorado".

- Oh! Isso não é razão, disse Raquel -; Lívia não gosta dele.

Pouco tempo depois foi servida a ceia. Félix dirigiu-se para uma sala interior, onde o coronel tinha os livros, e que servia temporariamente de refúgio aos fumantes. Félix acendeu um charuto e começou a correr os olhos pelos livros.

Ali foram ter alguns rapazes que falaram entusiasticamente da irmã de Viana. Era o objeto de todas as atenções da noite. E foi no meio das apologias daqueles cortesãos da beleza que ela apareceu pelo braço do coronel, atravessando a sala, para ir ter ao toucador.

- Doutor! - disse Viana, aproximando-se de Félix.

E voltando-se para a irmã:

- O Dr. Félix quer falar-te.

- Ah! - disse a moça, voltando-se para o médico.

Félix aproximou-se.

- Não sei se se lembra de mim? - perguntou ele.

- O Dr. Félix? Perfeitamente: foi-me apresentado há muito tempo, mas eu tenho boa memória. Demais, só se esquecem as pessoas vulgares.

Félix agradeceu-lhe o cumprimento. Ela estendeu-lhe a ponta dos dedos elegantemente apertados na pelica da luva. Trocaram algumas palavras mais. Daí a pouco, tendo-se ouvido o prelúdio de uma quadrilha, toda a gente se retirou. Ficaram na sala Félix e Moreirinha.

Moreirinha tinha cerca de trinta anos, um bigode espesso, uma aparência agradável e um espírito frívolo. Confessou que estava impressionado pela viúva, mas que eram muitos os seus rivais.

- Mas não são temíveis esses rivais? - perguntou Félix.

- Não; um apenas.

- Qual?

- O Batista.

- É o que está nas graças?

- Não sei; mas é o mais valente de todos, e o que dispõe de mais tempo, posto seja casado.

- Casado?

- Com um anjo.

Félix procurou reanimar o pretendente, pondo em relevo todas as suas qualidades merecedoras de admiração. Inventou-lhe algumas que não tinha; reconheceu-lhe outras que possuía realmente, inda que de um merecimento relativo ou duvidoso. Não se podia negar a influência do Moreirinha entre senhoras. Era ele galanteador por índole e por sistema; tinha, além disso (cousa importante), a plena convicção de que a sua conversa era preferida pelas damas. Ninguém melhor do que ele sabia lisonjear o amor-próprio feminino; ninguém prestava com mais alma esses leves serviços de sociedade, que constituem muita vez toda a reputação de um homem. Dirigia os piqueniques, comprava o romance ou a música da moda, encomendava os camarotes para as representações de celebridades, levava os pianistas aos saraus, tudo isso com um modo tão serviçal que era de se ficar morrendo por ele.

Félix voltou à sala quando se dançavam os últimos passos da quadrilha. Lívia estava esplêndida de graça e elegância. Nenhuma afetação nem acanhamento; seus movimentos eram a um tempo desembaraçados e modestos. O médico procurou ver se o doutor pretendente estaria nas graças da moça; mas ele dançava do mesmo lado em que ela estava; os olhares não podiam encontrar-se. Um sobrinho do coronel indicou-lhe a mulher do Batista: era uma moça de vinte anos, loura, assaz bonita e digna de inspirar amores. Por que motivo o marido, casado há pouco, queria ir queimar a um templo estranho os perfumes que a esposa merecia?

Algum tempo depois de finda a quadrilha, dispôs-se Félix a deixar a casa do coronel, que lhe interceptou a passagem em nome, disse ele, da mulher e das moças.

Félix respondeu-lhe que estava incomodado.

- Pretextos de peraltice - disse o velho, rindo alegremente -; não o deixo sair nem que me caia morto na sala. Faz favor, minha senhora?

Estas últimas palavras eram dirigidas à irmã de Viana, que ia atravessando a saleta onde se achavam os dous.

- Que me quer, coronel? - disse ela parando.

- Um favor apenas. Retenha-me este senhor, que se quer ir embora. Não tenho forças para tanto. Veja se mo consegue. Comece dando-lhe uma quadrilha.

- Dou-lhe a próxima, que é a minha última.

- Também se vai embora?

- Também.

- É uma debandada geral. Vou mandar trancar as portas.

O coronel afastou-se depois desta ameaça. Félix deu o braço a Lívia e foram sentar-se num sofá que ficava próximo.

- Meu irmão é muito seu amigo - disse Lívia acomodando as ondas de seda do vestido -. Fala-me muito no senhor.

- É muito meu amigo - repetiu Félix, fazendo interiormente uma careta.

- Não admira - observou ela -; o senhor merece ser estimado.

- Como sabe disso?

- Todos o afirmam.

- Nem todos serão sinceros - observou Félix.

Félix não se iludia a respeito da estima de Viana. Sem negar que o irmão da viúva lhe tivesse alguma amizade, dava-lhe, todavia, limitado valor. Lívia asseverava, entretanto, que o irmão falava dele com grande entusiasmo, e até certo ponto o entusiasmo era sincero. Félix tinha sobre Viana certa ascendência moral; além disso, era um homem franco e hospedeiro, rude mas serviçal.

Dentro de pouco tempo a conversa entre o médico e a viúva foi perdendo a frieza cerimoniosa do começo. Passaram a falar do baile, e Lívia manifestou com expansiva alegria as suas excelentes impressões, sobretudo porque, dizia ela, vinha da roça, onde tivera uma vida reclusa e monástica. Falaram naturalmente da viagem que ela pretendia fazer. Confessou ela que era um desejo antigo e várias vezes diferido.

- Não pense - acrescentou Lívia - que me seduzem unicamente os esplendores de Paris, ou a elegância da vida europeia. Eu tenho outros desejos e ambições. Quero conhecer a Itália e a Alemanha, lembrar-me da nossa Guanabara junto às ribas do Arno ou do Reno. Nunca teve iguais desejos?

- Estimaria poder fazê-lo, se me suprimissem os incômodos da viagem; mas com os meus hábitos sedentários dificilmente me resolveria a isso. Eu participo da natureza da planta; fico onde nasci. V. Exa. será como as andorinhas...

- E sou - disse ela reclinando-se molemente no sofá -; andorinha curiosa de ver o que há além do horizonte. Vale a pena comprar o prazer de uma hora por alguns dias de enfado.

- Não vale - respondeu Félix, sorrindo -; esgota-se depressa a sensação daquele momento rápido; a imaginação ainda pode conservar uma leve lembrança, até que tudo se desvanece no crepúsculo do tempo. Olhe, os meus dous pólos estão nas Laranjeiras e na Tijuca; nunca passei destes dous extremos do meu universo. Confesso que é monótono, mas eu acho felicidade nesta mesma monotonia.

Lívia entrou a combater isto que lhe parecia um insigne paradoxo, mas sem que nenhuma de suas palavras mostrasse a mais leve sombra de pedantismo. Tinha uma maneira natural e simples de dizer as cousas menos vulgares deste mundo. Sabia exprimir as suas ideias em frase elegante, mas despretensiosa.

O prelúdio de uma valsa chamou a atenção dos dous para o baile. Félix convidou-a para valsar; ela desculpou-se, dizendo que se achava cansada.

- Vi-a valsar quando entrei - disse Félix -, e afirmo que poucas pessoas valsarão tão bem. Creia na sinceridade do elogio, porque eu não os faço nunca.

A moça aceitou este cumprimento com ingênua satisfação.

- Gosto muito da valsa - disse ela -. Não admira: é a primeira dança do mundo.

- Pelo menos é a única dança em que há poesia - acrescentou Félix -. A quadrilha tem certa rigidez geométrica; a valsa tem todo o abandono da imaginação.

- Justamente! - exclamou Lívia, como se Félix lhe tivesse reunido em poucas palavras todas as suas ideias a respeito daquele assunto.

- Demais - continuou o doutor, animado pelo entusiasmo da viúva -, a quadrilha francesa é a negação da dança, como o vestuário moderno é a negação da graça, e ambos são filhos deste século que é a negação de tudo.

- Oh! - murmurou ela sorrindo.

E o protesto não foi só com os lábios, foi também com os olhos - uns olhos aveludados e brilhantes, feitos para os desmaios de amor. Félix começou a sentir-se bem ao lado daquela moça e, esquecendo de boa vontade a festa em que só aparentemente figurava, ali se demorou longo tempo com ela, alheio aos comentários estranhos, todo entregue ao capricho do seu próprio pensamento.

Todavia, escapou-lhe, no meio da conversa, não sei que frase de melancólico cepticismo que fez estremecer a moça. Lívia olhou para ele e depois para o chão, parecendo tão absorta que nem deu pelo silêncio que se seguiu ao seu gesto e às palavras de Félix. Este aproveitou a circunstância para examiná-la melhor.

Lívia representava ter vinte e quatro anos. Era extremamente formosa; mas o que lhe realçava a beleza era um sentimento de modesta consciência que ela tinha de suas graças, uma cousa semelhante à tranquilidade da força. Nenhum gesto seu revelava o amor-próprio geralmente inseparável das mulheres bonitas. Sabia que era formosa, mas tinha para si que, se a natureza se havia esmerado com ela, era por uma razão de harmonia e de ordem nas cousas terrestres. Afear as suas graças parecia-lhe um crime; tirar orgulho delas, frivolidade.

Félix examinou-lhe detidamente a cabeça e o rosto, modelo de graça antiga. A tez, levemente amorenada, tinha aquele macio que os olhos percebem antes do contacto das mãos. Na testa lisa e larga, parecia que nunca se formara a ruga da reflexão; não obstante, quem examinasse naquele momento o rosto da moça veria que ela não era estranha às lutas interiores do pensamento: os olhos, que eram vivos, tinham instantes de languidez; naquela ocasião não eram vivos nem lânguidos; estavam parados.

Sentia-se que ela olhava com o espírito.

Félix contemplou-lhe longo tempo aquele rosto pensativo e grave, e involuntariamente foram-lhe os olhos descendo ao resto da figura. O corpinho apertado desenhava naturalmente os contornos delicados e graciosos do busto. Via-se ondular ligeiramente o seio túrgido, comprimido pelo cetim; o braço esquerdo, atirado molemente no regaço, destacava-se pela alvura sobre a cor sombria do vestido, como um fragmento de estátua sobre o musgo de uma ruína. Félix recompôs na imaginação a estátua toda e estremeceu. Lívia acordou da espécie de letargo em que estava. Como também estremecesse, caiu-lhe o leque da mão. Félix apressou-se a apanhar-lho.

- Obrigada - murmurou ela distraída.

Depois, parecendo envergonhada daquele longo silêncio, pretextou um incômodo nervoso; levantaram-se e dirigiram-se ao salão. Ali, no meio da conversa e do bulício, readquiriu ela o império de si mesma, e conversaram largamente com volubilidade e galanteria. A viúva era um pouco sarcástica, mas daquele sarcasmo benévolo e anódino, que sabe misturar espinhos com rosas. Pela primeira vez Félix a conhecia, porquanto apenas a tinha visto duas vezes, e não basta ver uma mulher para a conhecer, é preciso ouvi-la também; ainda que muitas vezes basta ouvi-la para a não conhecer jamais.

Lívia demorou-se em casa do coronel mais tempo do que prometera, milagre devido ao doutor, dizia Viana. O certo é que o resto da noite quase não existiram para ninguém mais.

Não passou isto sem que o notassem alguns lábios despeitados. Um cavalheiro disse a uma senhora:

- Não lhe parece que D. Lívia tem um gosto deplorável?

A senhora arregaçou levemente a ponta esquerda do lábio superior, e respondeu:

- O Félix não o tem melhor.

A viúva saiu no meio de um geral murmúrio de curiosidade. Félix não se demorou muito tempo mais; meteu-se no carro e foi para as Laranjeiras.

Uma hora depois o baile, a viúva, a dança, tudo se lhe desvaneceu do espírito, graças a um sono tranquilo e profundo, como essas nuvens douradas do ocaso que a noite absorve ou dissipa.

IV

PRELÚDIO

No dia seguinte partiu Félix para a Tijuca, onde tinha uma casa de recreio e refúgio; regressou duas semanas depois. Durante esse tempo nada soube do que ocorrera na cidade: não leu jornais nem abriu cartas de amigos.

Alguma cousa, entretanto, havia ocorrido: a primeira notícia com que o saudaram os amigos, apenas ele chegou à cidade, foi que Cecília conquistara o coração de Moreirinha.

O sucessor de Félix, pouco depois que este chegou, não deixou de lhe ir participar a sua boa fortuna, não sei se por fatuidade, se por despicar a dama.

- Dou-lhe os meus parabéns - respondeu Félix -; conquistou uma rapariga sossegada, carinhosa, capaz de o compreender...

- Tanto melhor! - acudiu o rapaz -. O que me faltava era isso mesmo; uma mulher que me compreendesse. Cecília não é positivamente uma alma perdida; não está na linha dessas outras mulheres com quem tenho despendido o meu dinheiro sem colher nada mais que alguns tardios remorsos. É uma moça de bons sentimentos, conserva certa dignidade no vício, tem uma alma nobre, elevada...

Este panegírico durou alguns minutos mais. Dentro de tão pouco tempo descobrira-lhe Moreirinha qualidades desconhecidas para o antecessor. Seria mais néscio ou mais perspicaz? Cecília não era hipócrita quando dizia gostar de um homem; qualquer que fosse a natureza dos seus afetos, ela os sentia sinceramente; mas era raro que sobrevivessem vinte e quatro horas à causa que lhos inspirara. Não se lhe desmentira a constância durante os seis meses de intimidade com Félix; mas, se ela era amante para querer a um só homem, era independente para o esquecer depressa. Tinha uma fidelidade filha do costume; a sua máxima era não esquecer o amante presente, não recordar o amante passado, nem se preocupar com o amante futuro. Moreirinha era o amante presente; podia contar com a fidelidade da rapariga, ao menos com as suas boas intenções.

Quando Meneses soube deste desenlace ficou atônito. Julgou a princípio que era apenas uma afetação de Moreirinha; mas logo verificou que não. Foi ter com o médico.

- Meu amigo - disse -: peço-te que me desculpes a carta ridícula que te escrevi.

- Que carta?

- A respeito de Cecília. Nunca pensei que fossem fingidas aquelas lágrimas que me entraram pelo coração. Aprendi a não crer tão superficialmente.

- Não aprendeste cousa nenhuma - retorquiu Félix encolhendo os ombros -; não é em terra que se fazem os marinheiros, mas no oceano, encarando a tempestade.

O episódio dos amores de Cecília foi assunto de conversa no círculo dos rapazes que aqueles frequentavam. Nem tardou que passasse além. No fim de algum tempo, pouca gente ignorava que a moreninha que passeava todas as tardes em carro descoberto pela praia de Botafogo era o altar em que o Moreirinha fazia os seus sacrifícios diários e pecuniários. Félix admirou-se ao princípio desta mania de passear tão contrária aos hábitos preguiçosos de Cecília; mas atinou logo com a chave do enigma. Moreirinha não compreendia o que era ser feliz sem publicidade. Para ele, a ilha de Citera não podia ser jamais a ilha de Robinson.

Entretanto, passara um mês desde o sarau do conselheiro. Félix não se havia aproveitado do convite que a viúva lhe fizera, nem cedido às instâncias de Viana. Encontrou-os, porém, uma noite no Ginásio. Estava ele nas cadeiras quando os viu num camarote da segunda ordem. No fim do segundo ato Félix subiu ao camarote.

Teve excelente recepção, posto que a viúva, sem deixar de ser cortês e graciosa, parecia um pouco reservada e preocupada. Não falava com a mesma volubilidade da noite do baile. Esquecia-se às vezes de si e dos outros. Duas vezes lhe aconteceu dar uma resposta sem pergunta e deixar uma pergunta sem resposta.

A conversa, portanto, não foi muito animada. Felizmente Viana encarregou-se de preencher os intervalos com a sinfonia das suas reflexões.

Quando se levantou o pano para o terceiro ato, Félix quis sair, mas tanto a viúva como o irmão pediram-lhe que ficasse. Aceitou o convite e ficou. Do que houve em cena durante esse ato pode-se afirmar que Félix nada soube absolutamente. O ato era curto, e Félix empregou todo o tempo em observar a moça, que, molemente reclinada na cadeira, acompanhava distraída o diálogo dos atores.

"Em que estará pensando esta moça?", dizia Félix consigo. "Evidentemente, não lhe importam os suspiros do galã, nem as facécias do gracioso. Olha, mas não vê a cena. Estará à espera de algum namorado remisso? Mas quem é então esse lorpa que deixa entristecer uns olhos tão bonitos?"

A ingênua da peça, que desde o ato anterior se sabia estar apaixonada pelo galã, como é de jeito no teatro e no mundo, entrou precipitadamente em cena e lançou-se nos braços do amado. Algumas palmas do público premiaram essa resolução inesperada e enérgica. Então começou entre a dama e o galã um diálogo de sentimento e paixão, um duelo de suspiros, um protestar de fidelidade e constância, que a plateia ouviu com demonstrações de entusiasmo.

"Ama, não há dúvida", continuou Félix a dizer entre si - "basta ver como lhe brilham os olhos a cada frase do diálogo. Agradam-lhe os protestos do namorado e as lágrimas da dama. Creio que sorri; é de aprovação. Oh! Como está divina!"

Enfim, caiu o pano; e a viúva, que já no fim do ato parecera ter voltado à sua anterior preocupação, levantou-se, dizendo que se ia embora.

Viana pediu-lhe para ficar até o fim da peça; ela insistiu, e era forçoso ceder. Félix acompanhou-os até o carro.

- Até quando? - perguntou Lívia, aceitando a mão que Félix lhe oferecia.

- Até breve.

Seria acaso ou ilusão? Félix sentiu uma forte pressão dos dedos da moça, enquanto esta subia rapidamente para o carro, e ia responder com um aperto ainda mais forte; mas era tarde; a moça já estava sentada, e Viana punha o pé no estribo para subir.

Ilusão era decerto; ilusão ou casualidade. Mas o médico não o percebeu logo, e foi um primeiro erro na maneira de julgar a viúva.

Poucos dias depois do encontro no teatro, dirigiu-se Félix a Catumbi onde eles moravam. Não os achou. Quando Lívia voltou para casa soube da visita de Félix pelo cartão que a mucama lhe deu. Tão apressadamente descalçou as luvas que as rasgou; e como o irmão fizesse um reparo a este respeito, a moça respondeu com azedume. Viana estava acostumado às asperezas da irmã, levantou os ombros e saiu.

Félix encontrou-a dous dias depois na rua do Ouvidor, fazendo compras para a viagem.

- Se adivinhasse a sua visita, não teria saído de casa - disse a viúva.

Félix inclinou-se.

- Por outro lado, estimo ter estado fora; morando eu tão longe, não teria o prazer de recebê-lo segunda vez, e nesse caso antes nada.

- O tilbury encurta as distâncias - observou Félix -; procurarei desempenhar-me da obrigação em que estou.

- Da obrigação já se desempenhou; agora...

- Perdão; o seu cumprimento constitui uma obrigação nova.

Despediram-se .

Meneses, que estava na calçada oposta, durante as poucas palavras trocadas entre Félix e a viúva, atravessou a rua e veio ter com o amigo.

- Quem é aquela moça?

- É a irmã do Viana.

- Bravo! É lindíssima.

- É realmente bonita, o que lhe merece a admiração geral. Vê como todos lhe estão com os olhos em cima...

- Se não há indiscrição - disse Meneses depois de a ver entrar em uma loja -, queimas os teus perfumes naquele altar?

- Não. Para quê?

- Talvez algum casamento incubado...

- Casar?... - disse Félix rindo -. A pergunta é tão original que merece um sorvete. Vem ao Carceller.

No Carceller contou-lhe Meneses que andava incomodado e triste. Vivia ele maritalmente com uma pérola que pouco antes encontrara no lodo. Na véspera descobrira em casa vestígios de outro amador de pedras finas. Estava certo da infidelidade da amante; pedia-lhe conselho.

- Não te dou conselho nenhum - respondeu o médico -; resolve tu mesmo.

- Mas, se eu pudesse resolver alguma cousa no estado em que estou, não viria falar a um amigo...

- Lisonjeia-me a escolha; mas não passa disso. Imita-me, se podes; mas não me peças reflexões.

- Mas, no meu caso, que farias tu?

- Cousa nenhuma; pegava no chapéu e saía.

- E se o não pudesses fazer sem dor?

- Hipótese absurda.

- Para ti.

- Naturalmente.

Houve uma pausa.

- Dou-te enfim um conselho - disse Félix.

Meneses levantou os olhos com ansiedade.

- Qualquer que seja a resolução que tomares - continuou Félix -, não recues um passo.

- Onde acharei esta resolução?

- Aqui - disse Félix pondo-lhe o dedo na testa.

- Oh! Não! - suspirou Meneses - ; a cabeça nada tem com isso; todo o mal está no coração.

- Recorre à cirurgia: corta o mal pela raiz.

- Como?

- Suprime o coração.

V

FICO

Dous dias depois, estando Félix a vestir-se para ir a Catumbi, entrou-lhe Meneses por casa. Vinha pálido e abatido, olhos vermelhos, passo trêmulo. Não se sentou, deixou-se cair numa cadeira.

- Que é isso? - perguntou Félix.

- Está tudo acabado - respondeu ele -: romperam-se os vínculos fatais. Custou-me muito, mas era necessário; foi agora há pouco; corri para cá; precisava de alguém com quem desabafasse. Isto é ridículo, bem sei; mas que queres? Eu sofro... tenho um coração miserável, e deixo-me levar por ele...

Félix pareceu condoer-se da situação do rapaz, e disse-lhe algumas palavras de animação, que ele ouviu com reconhecimento.

- Eu já desconfiava - disse Meneses -, de que era traído; só tive a certeza ontem. O que mais me dói em tudo isso - continuou ele depois de alguns instantes de silêncio -, é que, para servir ao homem que me traiu, desfazia-me eu em obséquios, e até, confesso-te aqui, era seu credor.

- É por isso que eu não empresto dinheiro a ninguém - respondeu Félix, penteando as suíças.

- Mas quem pode adivinhar o mal, quando nos apresentam uma fisionomia risonha? Eu confiava em ambos.

Félix encolheu os ombros.

- Toma um charuto disse.

- Não quero fumar.

- Fuma; eu já observei que o fumo impede as lágrimas, e ao mesmo tempo leva ao cérebro uma espécie de nevoeiro salutar.

- Vais sair? - perguntou Meneses, vendo que o outro punha o chapéu na cabeça.

- Vou à casa do Viana. Queres vir?

- Não posso.

- Devias vir comigo; apresentava-te irmã dele, e passávamos algumas horas em companhia amável. Esquecerias depressa as tuas penas.

Meneses recusou; Félix levou-o no carro até à rua do Lavradio, onde ele morava.

Em caminho conversaram dos seus extintos amores. Meneses jurava que era a última aventura a que expunha o seu coração; achava-se curado de uma vez.

- Não afirmes nada, Meneses; podes errar. Sabes o que te falta? Têmpera. Amanhã, entre duas lágrimas, aparece-te um raio de sol, e eis-te de novo namorado, confiado e arriscado.

- Oh! Não! - protestou Meneses.

- Quem dera que não! Mas eu estou a ler no teu rosto que a única maneira de te consolar deste naufrágio é dar-te outro navio. Só muito tarde te convencerás de que viver não é obedecer às paixões, mas aborrecê-las ou sufocá-las. Os maricas, como tu, choram; os homens, esses ou não sentem ou abafam o que sentem. Isto não tem réplica, meu... amigo, diria eu, se me não lembrasse do teu afortunado rival, que é positivamente um mariola. Vem à casa do Viana; hás de gostar da Lívia; parece-se contigo.

- Não posso - respondeu Meneses, que só ouvira as últimas palavras de Félix.

- Mas hás de ir depois?

- Sim, depois.

- E se te apaixonas por ela?

Meneses sorriu tristemente; o carro parou; despediram-se um do outro, e Félix seguiu para Catumbi.

Lívia estava só em casa. Fora convidada a um jantar, mas respondeu pretextando um incômodo que não tinha. O irmão encarregou-se de ir representá-la.

- Tinha o pressentimento - disse ela depois de referir estas cousas ao doutor -, tinha o pressentimento de que o senhor vinha cá hoje, e não desejava que lhe acontecesse a mesma cousa que da primeira vez.

- E acredita em pressentimentos? - perguntou Félix.

- Não os explico, mas acredito neles.

Lívia parecia mais bela que das outras vezes. Não só a luz natural dizia melhor com a sua tez, como também a simplicidade do vestuário era para ela um realce. Félix não dissimulou a impressão que lhe causava aquele novo aspecto da moça. Lívia, que, como toda a mulher bela, e posto não fosse vaidosa, sabia mirar-se na fisionomia dos outros, não deixou de perceber a impressão do doutor.

A cena da portinhola do carro não havia saído do espírito de Félix, que se convencera de duas cousas: primeiro, que a viúva gostava dele; depois, que era fácil triunfar da viúva. As aparências davam fundamento à opinião de que a moça o amava. Félix aproveitou a situação e dispôs-se a tirar dela todo o proveito possível. Pouco se demorou, entretanto, naquele dia. Quando anunciou que se ia embora, pediu-lhe a viúva que não esquecesse a casa.

- Aproveitarei o tempo - observou Félix -, enquanto não embarcam para a Europa. Seu irmão diz-me que a viagem é breve.

- Se não houver transtorno. Em todo o caso, venha, e não faça visitas de médico.

- Eu fui médico; fiquei com esse costume - respondeu Félix sorrindo.

- Já não é médico?

- Do corpo, não.

- Mas da alma?

- Talvez. Deixei agora mesmo um doente da alma que eu desejaria apresentar-lhe, porque estes ares dão saúde, creio eu.

- De que sofre o seu doente?

Félix sorriu-se.

- Vítima de uma inconstância, moléstia vulgar. Está no período agudo. É um pobre rapaz inocente e singelo, que vai buscar as regras da vida nos compêndios da imaginação. Maus livros, não lhe parece?

Lívia não respondeu; estava embebida a ouvi-lo.

- Meneses não conhece outros - continuou Félix -. Parece filho daquele astrólogo antigo que, estando a contemplar os astros, caiu dentro de um poço. Eu sou da opinião da velha, que apostrofou o astrólogo: "Se tu não vês o que está a teus pés, por que indagas do que está acima da tua cabeça?"

- O astrólogo podia responder - observou a viúva - que os olhos foram feitos para contemplar os astros.

- Teria razão, minha senhora, se ele pudesse suprimir os poços. Mas que é a vida senão uma combinação de astros e poços, enlevos e precipícios? O melhor meio de escapar aos precipícios é fugir aos enlevos.

Lívia ficou pensativa alguns instantes.

- O pensamento é melancólico - disse ela -; contudo pode ser verdadeiro. Mas por que razão condenaremos a vida contemplativa dos que não conhecem a vida positiva? Os livros da imaginação... esses livros não são detestáveis, como o senhor disse; não os há detestáveis nem ótimos. Deus os dá conforme a ciência de cada um.

Félix despediu-se de Lívia, não enlevado, não palpitante, mas disposto a uma aventura. Amiudou as visitas a Catumbi, a grande aprazimento de Viana, que suspeitou alguma afeição entre os dous, e imaginara uma aliança de família.

A presença de Félix era até vantajosa naquela casa. Entre a viúva e o irmão havia um abismo. Eram dessemelhantes nos sentimentos, nos hábitos de viver, na maneira de pensar. Lívia tinha alternativas de afabilidade e rispidez, ao passo que o irmão era de uma inalterável paz de espírito. Viana tinha cousas más e boas, sendo que as cousas boas eram justamente as que se opunham ao gênio especulativo da viúva. Era homem essencialmente prático; o seu reino era todo deste mundo. Apesar das suas pretensões a rapaz estouvado e extravagante, tinha hábitos de ordem e economia. Lívia era a este respeito negligente e "meia douda", como lhe chamava o irmão; alheava-se muitas vezes das cousas que a cercavam para subir a um mundo superior e quimérico. O médico era entre ambos uma espécie de mediador plástico. Não pertencia à esfera de nenhum deles, mas sabia a maneira de os conciliar.

Félix encontrou algumas vezes em Catumbi o Dr. Batista, que ele vira dançar com a viúva em casa do coronel. Lívia não parecia prestar-lhe atenção, nem o pretendente magoar-se por isso. Era um modelo de cálculo. Conhecia todos os artifícios da campanha amorosa, a indiferença, o desdém, o entusiasmo, e até a resignação.

Uma noite em que saíram de lá juntos, Félix procurou sondar-lhe o espírito a respeito da moça.

- Nada há - respondeu Batista com indiferença -; nem eu pretendo cortejá-la. Mas, se o pretendesse, triunfaria; a paciência é a gazua do amor.

- Não lhe parece que essa sua máxima é imoral?

- Efetivamente é assim; mas é por isso mesmo que estes amores são deliciosos.

Quinze dias depois apareceu Viana em casa de Félix. Deu-lhe parte de que a irmã já não ia para a Europa.

- Por que motivo? - perguntou Félix.

- É justamente o que eu desejava saber - disse Viana com um gesto de mal contido despeito -; mas estou certo de que o não saberei jamais. Aquela minha irmã não me parece ter a cabeça no seu lugar.

- Alguma razão haveria. Estará doente?

- Está de perfeita saúde.

- Quem sabe se... algum namoro?

- Já pensei nisso - disse Viana -; pode ser algum namoro.

- Naquela idade as paixões são soberanas. Seria inútil querer dissuadi-la e ainda que não fosse inútil, seria desarrazoado, porque uma viúva moça... Ela amava muito o marido, não?

- Antes de casar, muito; três meses depois, muitíssimo; ao cabo de alguns meses, nem muito nem pouco. Toda essa história é mistério para mim...

- Não lhe vejo mistério nenhum; o casamento é justamente isso: acalma os afetos para os tornar mais duradouros. Se a paixão de sua irmã se tornou mais calma...

- Não se trata disso. Lívia não amava menos; aborrecia o marido. Mas por que nos demoraremos nestas cousas que não podemos explicar? A única explicação que lhe acho é o seu caráter esquisito. O senhor não imagina bem que eterna variação de gênio é aquela moça. Há dias em que se levanta meiga e alegre, outros em que toda ela é irritação e melancolia. Ninguém a entende, e eu menos que ninguém.

- Não esteja o senhor a exagerar uma cousa naturalíssima. Todos temos essa mesma alteração de humor. Há manhãs tristes e aziagas. Quer que lhe dê um conselho? Não a contrarie nunca, é o melhor.

- Mas o senhor há de concordar que quando a gente já preparava os beiços para ir saborear a vida parisiense...

- Há tempo para tudo - disse Félix -, e o senhor ainda está moço. Iremos juntos daqui a um ano.

- Palavra?

- Palavra.

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