Ressurreição
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Ressurreição é o primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.
Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma "Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida; na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e, ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a tradução que constava na publicação de 1872.
Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e, por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas de maneira mais sorrateira.
Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à "primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "cômplice" "cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de "atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada ("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta), por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala [...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir, na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.
Esta não pretende ser uma edição crítica, nela não há notas editoriais. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
I
NO DIA DE ANO-BOM
Naquele dia - já lá vão dez anos! - o Dr. Félix levantou-se tarde, abriu a janela e cumprimentou o sol. O dia estava esplêndido; uma fresca bafagem do mar vinha quebrar um pouco os ardores do estio; algumas raras nuvenzinhas brancas, finas e transparentes, se destacavam no azul do céu. Chilreavam na chácara vizinha à casa do doutor algumas aves afeitas à vida semiurbana, semissilvestre que lhes pode oferecer uma chácara nas Laranjeiras. Parecia que toda a natureza colaborava na inauguração do ano. Aqueles para quem a idade já desfez o viço dos primeiros tempos não se terão esquecido do fervor com que esse dia é saudado na meninice e na adolescência. Tudo nos parece melhor e mais belo - fruto da nossa ilusão - e, alegres com vermos o ano que desponta, não reparamos que ele é também um passo para a morte.
Teria esta última ideia entrado no espírito de Félix, ao contemplar a magnificência do céu e os esplendores da luz? Certo é que uma nuvem ligeira pareceu toldar-lhe a fronte. Félix embebeu os olhos no horizonte e ficou largo tempo imóvel e absorto, como se interrogasse o futuro ou revolvesse o passado. Depois, fez um gesto de tédio, e parecendo envergonhado de se ter entregue à contemplação interior de alguma quimera, desceu rapidamente à prosa, acendeu um charuto, e esperou tranquilamente a hora do almoço.
Félix entrava então nos seus trinta e seis anos, idade em que muitos já são pais de família, e alguns, homens de Estado. Aquele era apenas um rapaz vadio e desambicioso. A sua vida tinha sido uma singular mistura de elegia e melodrama; passara os primeiros anos da mocidade a suspirar por cousas fugitivas, e na ocasião em que parecia esquecido de Deus e dos homens, caiu-lhe nas mãos uma inesperada herança, que o levantou da pobreza. Só a Providência possui o segredo de não aborrecer com esses lances tão estafados no teatro.
Félix conhecera o trabalho no tempo em que precisava dele para viver; mas desde que alcançou os meios de não pensar no dia seguinte, entregou-se corpo e alma à serenidade do repouso. Mas entenda-se que não era esse repouso aquela existência apática e vegetativa dos ânimos indolentes; era, se assim me posso exprimir, um repouso ativo, composto de toda a espécie de ocupações elegantes e intelectuais que um homem na posição dele podia ter.
Não direi que fosse bonito, na significação mais ampla da palavra; mas tinha as feições corretas, a presença simpática, e reunia à graça natural a apurada elegância com que vestia. A cor do rosto era um tanto pálida, a pele lisa e fina. A fisionomia era plácida e indiferente, mal-alumiada por um olhar de ordinário frio, e não poucas vezes morto.
Do seu caráter e espírito melhor se conhecerá lendo estas páginas, e acompanhando o herói por entre as peripécias da singelíssima ação que empreendo narrar. Não se trata aqui de um caráter inteiriço, nem de um espírito lógico e igual a si mesmo; trata-se de um homem complexo, incoerente e caprichoso, em quem se reuniam opostos elementos, qualidades exclusivas, e defeitos inconciliáveis.
Duas faces tinha o seu espírito, e conquanto formassem um só rosto, eram todavia diversas entre si, uma natural e espontânea, outra calculada e sistemática. Ambas porém se mesclavam de modo que era difícil discriminá-las e defini-las. Naquele homem feito de sinceridade e afetação tudo se confundia e baralhava. Um jornalista do tempo, seu amigo, costumava compará-lo ao escudo de Aquiles mescla de estanho e ouro, "muito menos sólido", acrescentava ele. Aquele dia, aurora do ano, escolhera-o o nosso herói para ocaso de seus velhos amores. Não eram velhos; tinham apenas seis meses de idade. E contudo iam acabar sem saudade nem pena, não só porque já lhe pesavam, como também porque Félix lera pouco antes um livro de Henri Murger, em que achara um personagem com o sestro destas catástrofes prematuras. A dama dos seus pensamentos, como diria um poeta, recebia assim um golpe moral e literário.
Havia meia hora já que o doutor saíra da janela, quando lhe apareceu uma visita. Era um homem de quarenta anos, vestido com certo apuro, gesto ao mesmo tempo familiar e grave, estouvado e discreto.
- Entre, Sr. Viana - disse Félix quando o viu aparecer à porta da sala. Vem almoçar comigo, já sei.
- Esse é um dos três motivos da minha visita respondeu Viana -; mas afirmo-lhe que é o último.
- Qual é o primeiro?
- O primeiro - disse o recém-chegado - é dar-lhe o cumprimento de bons anos. Folgo que lhe corra este tão feliz como o passado. O segundo motivo é entregar-lhe uma carta do coronel.
Viana tirou uma cartinha da algibeira e entregou-a ao doutor, que a leu rapidamente.
- Creio que é um convite para o sarau de hoje? - perguntou Viana quando o viu dobrar a carta.
- É; transtorna-me um pouco, porque eu tencionava ir para a Tijuca.
- Não caia nessa - acudiu Viana -; eu era capaz de deixar todas as viagens do mundo só para não perder uma reunião do coronel; é um excelente homem, e dá boas festas. Vai?
Félix hesitou algum tempo.
- Olhe que eu venho incumbido de lhe destruir todas as objeções que fizer - disse Viana.
- Não faço nenhuma. O convite transtorna-me o programa; mas, apesar disso, aceito.
- Ainda bem!
Um moleque veio dar parte de que o almoço estava na mesa. Viana descalçou as luvas e acompanhou o anfitrião.
- Que novidades há? - perguntou Félix sentando-se à mesa.
- Nada que me conste - respondeu Viana imitando o dono da casa; o Rio de Janeiro vai a pior.
- Sim?
- É verdade; já não aparece um escândalo. Vivemos em completa abstinência, e chegou o reinado da virtude. Olhe, eu sinto a nostalgia da imoralidade.
Viana era um homem essencialmente pacato com a mania de parecer libertino, mania que lhe resultava da frequência de alguns rapazes. Era casto por princípio e temperamento. Tinha a libertinagem do espírito, não a das ações. Fazia o seu epigrama contra as reputações duvidosas, mas não era capaz de perder nenhuma. E todavia, teria um secreto prazer se o acusassem de algum delito amoroso, e não defenderia com extremo calor a sua inocência, contradição que parece algum tanto absurda, mas que era natural.
Como Félix não lhe animasse a conversa no terreno em que ele a pôs, Viana entrou a elogiar-lhe os vinhos.
- Onde acha o senhor vinhos tão bons? - perguntou depois de esvaziar um cálix.
- Na minha algibeira.
- Tem razão; o dinheiro compra tudo, inclusive os bons vinhos.
A resposta de Félix foi um sorriso ambíguo, que podia ser benevolente ou malévolo, mas que pareceu não produzir impressão no hóspede. Viana era um parasita consumado, cujo estômago tinha mais capacidade que preconceitos, menos sensibilidade que disposições. Não se suponha, porém, que a pobreza o obrigasse ao ofício; possuía alguma cousa que herdara da mãe, e conservara religiosamente intacto, tendo até então vivido do rendimento de um emprego de que pedira demissão por motivo de dissidência com o seu chefe. Mas estes contrastes entre a fortuna e o caráter não são raros. Viana era um exemplo disso. Nasceu parasita como outros nascem anões. Era parasita por direito divino.
Não me parece provável que houvesse lido Sá de Miranda; todavia, punha em prática aquela máxima de um personagem do poeta: "boa cara, bom barrete e boas palavras custam pouco e valem muito..."
Chamando-lhe parasita não aludo só à circunstância de exercer a vocação gastronômica nas casas alheias. Viana era também o parasita da consideração e da amizade, o intruso polido e alegre, que, à força de arte e obstinação, conseguia tornar-se aceitável e querido, onde a princípio era recebido com tédio e frieza, um desses homens metediços e dobradiços que vão a toda a parte e conhecem todas as pessoas, "boa cara, bom barrete, boas palavras".
Parecendo-lhe que Félix estaria preocupado, Viana entendeu não dizer palavra antes de achar ocasião oportuna. Veio o café, e o primeiro que rompeu o silencio foi o doutor. Viana aproveitou habilmente o ensejo para reatar o fio dos louvores, tão asperamente quebrado pelo dono da casa. Não lhe elogiou desta vez os vinhos, mas as qualidades pessoais; afirmou-lhe que ninguém era mais querido na casa do coronel Morais, e que ele próprio não se recordava de pessoa a quem mais estimasse neste mundo.
- O senhor é tão feliz a este respeito - terminou o hóspede -, que até as pessoas que o não veem há muito conservam em toda a integridade o afeto que o senhor lhes inspirou. Adivinha de quem lhe falo?
- Não.
- Bem, sabê-lo-á de noite; lá verá em casa do coronel uma pessoa que o admira, e que o não vê há muito. Sejamos francos; é minha irmã Lívia.
- Admira-me isso, porque eu apenas a vi duas vezes.
- Não é possível - insistiu Viana -. Lembra-me que eu mesmo os apresentei um ao outro. Se não me engano foi em dia da Glória, há dous anos.
- Eu descia o outeiro - continuou Félix - quando os encontrei. Estivemos parados cinco minutos. À noite encontramo-nos em um baile; cumprimentamo-nos apenas e nada mais.
- Só isso?
- Nada mais.
- Nesse caso - concluiu Viana -, cuido que o senhor possui o segredo de fascinar as moças só com cinco minutos de conversa e um cumprimento de sala. Minha irmã fala muito no senhor; pelo menos depois que veio de Minas...
- Ah! Ela esteve em Minas?
- Foi para lá há perto de dous anos, depois que lhe morreu o marido. Veio há oito dias; sabe o que me propõe?
- Não.
- Uma viagem à Europa.
- E vão?
- Os desejos de Lívia são ordens para mim. Contudo, era talvez melhor que eu fosse só, porque uma senhora é sempre obstáculo aos desmandos de um pecador como eu. Não lhe parece?
- É então uma viagem de recreio? - perguntou Félix.
- Ou de romance; Lívia tem esse defeito capital: é romanesca. Traz a cabeça cheia de caraminholas, fruto naturalmente da solidão em que viveu nestes dous anos, e dos livros que há de ter lido. Faz pena, porque é boa alma.
- Vejo que tem todas as condições necessárias a um poeta - observou o doutor -; lembra-me que era bonita.
- Oh! A esse respeito a viuvez foi para ela uma renovação. Era bonita quando o senhor a viu; hoje está fascinante. Há ocasiões em que eu sinto ser irmão dela; tenho ímpeto de a adorar de joelhos. Com franqueza, assusta-me.
Leve sorriso encrespou os lábios de Félix, enquanto Viana prosseguia o panegírico da irmã, com um entusiasmo que podia ser sincero e interessado ao mesmo tempo. Ao fim de um quarto de hora levantou-se este para sair.
- Até à noite? - disse apertando a mão do dono da casa.
- Até à noite.
Félix ficou só.
- Que mulher será essa - perguntou a si mesmo -, tão bela que mete medo, tão fantasiosa que causa lástima?
II
LIQUIDAÇÃO DO ANO VELHO
Meia hora depois apeava-se Félix de um tilbury à porta de uma casa no Rossio. Subiu lentamente as escadas; a porta do fundo estava aberta; Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala, sem que o sentisse uma moça, que estava assentada perto da janela, com o rosto voltado para a rua.
- Cecília! - disse ele.
A moça estremeceu e voltou-se.
- Ah! És tu. Tão tarde!
Félix aproximou-se, deu-lhe um beijo, e tirou-lhe o livro da mão.
- Tarde? - disse ele folheando o livro -; não pôde ser mais cedo; tive visitas em casa.
A moça contentou-se com a resposta; levantou-se e, pondo-lhe os braços à roda do pescoço, perguntou:
- Jantas hoje com alguém?
- Janto lá em casa.
- Lá em casa? - repetiu ela -; e por que não cá em casa?
- Não posso.
- Tens visitas?
- Não.
- Jantas só?
- Janto.
- Preferes isso à minha companhia? - murmurou enfim a moça com voz triste.
- Cecília - respondeu Félix dando à voz toda a doçura compatível com a rigidez da sua resolução -, há circunstâncias que me obrigam a não jantar cá nem hoje nem nunca.
Cecília empalideceu. Félix procurou tranquilizá-la dizendo que ia explicar-se melhor. Insensível às suas palavras, foi ela sentar-se no sofá e aí permaneceu alguns instantes silenciosa. Félix deu alguns passos na sala, aspirou as flores que tinham sido postas numa jarra, naquele mesmo dia, talvez para recebê-lo melhor; acendeu um charuto, e foi sentar-se em frente de Cecília. A moça fitou nele os olhos úmidos de lágrimas. Depois, como se os lábios tivessem medo de romper uma cratera à chama interior, murmurou estas palavras:
- E por que nunca mais?
- Cecília - disse o doutor deitando fora o charuto apenas encetado -, eu tenho a infelicidade de não compreender a felicidade. Sou um coração defeituoso, um espírito vesgo, uma alma insípida, capaz de fidelidade, incapaz de constância. O amor para mim é o idílio de um semestre, um curto episódio sem chamas nem lágrimas. Há seis meses que nos amamos; por que perderás tu o dia em que começa o ano novo, se podes também começar vida nova?
Cecília não respondeu; fitava nele os olhos, que, se eram ternos e buliçosos nas horas de alegria, eram naquele momento sombrios e profundos. Félix pegou-lhe na mão. Estava fria
- Não fiques abatida; o que faço agora não é novidade; ouviste-me dizer muita vez que a nossa afeição era um capítulo curto. Rias então de mim; fazias mal, porque era alimentar uma esperança vã.
- Era - interrompeu Cecília com voz trêmula -; reconheço agora que era. Esperava, com efeito, que eu pudesse, com a minha constância, resgatar os erros que me pesavam na consciência. Agarrei-me a ti como a uma tábua de salvação; a tábua não compreendeu que salvaria uma vida e deixa-se levar pela onda que a arrebata das minhas mãos. Enganei-me. Não te faço recriminações; espero que me farás justiça...
- Faço-te toda a justiça - redarguiu ele -; acuso-me eu mesmo de estar abaixo do papel de redentor.
Cecília não prestou atenção ao tom irônico destas palavras, nem sequer as ouviu. Levantou-se, deu alguns passos, encostou-se ao piano e pondo a cabeça entre as mãos soluçou à vontade. Mas essa explosão foi quase silenciosa e durou pouco.
Meia hora depois despedia-se Félix de Cecília, declarando-lhe que saía dali como um gentleman, que ela receberia os meios necessários para viver até que o esquecesse de todo. Cecília recusou esse ato de generosidade. Espantou-o imensamente tamanho desinteresse; concluiu que ela teria algum amor em perspectiva. Saiu.
Na rua do Ouvidor encontrou o Doutor Meneses, jovem advogado com quem entretinha relações.
- Vem jantar comigo - disse.
- Não jantas com Cecília?
- Acabei o capítulo; Cecília está livre.
- Houve choro?
- O choro pertence ao cerimonial da separação. Era indispensável. Cecília verteu algumas lágrimas, que eu procurei enxugar, prometendo-lhe os meios de viver algum tempo. Recusou; mas eu não lhe aceito a recusa.
- Fizeste mal em separar-te dela; Cecília amava-te.
- Meneses - disse Félix -, eu nunca faço mal quando quebro uma cadeia: liberto-me.
- Talvez tenhas razão.
- Mas vem jantar comigo - continuou Félix, dando-lhe o braço.
- Não posso, vou jantar com minha mãe.
- Ah!
- São apenas duas horas; passearei contigo até às três. Ou vais para casa?
- Não.
Deram o braço e desceram a rua.
- Se não é indiscrição, Félix - disse Meneses ao cabo de alguns minutos -, houve algum arrufo sério entre vocês?
- Não.
- Desconfiavas dela?
- Também não.
- Nem te arrufaste, nem tinhas desconfiança. Sei que ela gostava de ti, e tu mesmo me afirmaste que não era nenhuma desperdiçada. Havia portanto um milheiro de razões para que vocês prosseguissem neste romance. Dar-se-á que tenhas em vista algum casamento?
Félix riu-se e levantou os ombros.
- Então, não compreendo - concluiu Meneses.
- Eu te digo - respondeu Félix -; os meus amores são todos semestrais; duram mais que as rosas, duram duas estações. Para o meu coração um ano é a eternidade. Não há ternura que vá além de seis meses; ao cabo desse tempo, o amor prepara as malas e deixa o coração como um viajante deixa o hotel; entra depois o aborrecimento - mau hóspede.
Meneses ouviu as palavras de Félix com os olhos postos no chão; sorriu ligeiramente quando ele acabou.
- Queres ouvir uma cousa? - perguntou.
- Dize.
- O teu cinismo parece-me hipocrisia.
- Não é hipocrisia nem cinismo; é temperamento.
- Não creio.
- Por quê?
Meneses não respondeu.
- Quase me arrependo de ser teu amigo - disse ele depois de algum tempo.
- És meu amigo? - perguntou Félix com ar de mofa.
Meneses parou e encarou o companheiro.
- Duvidas? - disse.
- Não duvido; mas ignorava isso até agora; sabes que as nossas relações datam de pouco tempo.
- Que importa o tempo? Há amigos de oito dias e indiferentes de oito anos.
- Há.
A conversa tomou outra direção. Meneses ainda tentou falar da moça, mas Félix não lhe prestou atenção. Às três horas separaram-se, Félix para as Laranjeiras, Meneses para o Rossio.
Meneses era uma boa alma, compassiva e generosa. Tinha em flor todas as ilusões da juventude; era entusiasta e sincero; estava totalmente limpo da menor eiva de cálculo. Podia ser que com os anos perdesse algumas das suas qualidades nativas, que nem todos resistem a estes dous terríveis dissolventes: os lances da fortuna e o atrito dos caracteres. Mas naquele tempo ainda não era assim. A situação de Cecília tinha-o comovido. Resolveu ir ter com ela.
Cecília ficara resignada, mas triste. Quando Meneses entrou na sala estava ela ao piano, tinha apoiada a cabeça em uma das mãos e corria os dedos pelo teclado. Contou-lhe tudo o que se passara; confessou que não esperava a súbita mudança de Félix; que a sua dor fora imensa, e que daria tudo para fazer reviver o recente passado; mas que não nutria nenhuma esperança de reconciliação.
- E se eu tentar fazer alguma cousa?
- Tentará em vão - respondeu ela. Além de quê, eu não tenho nenhum direito de prolongar uma felicidade incompatível com a vontade dele. Errei, confiando demais; errarei se tiver ainda uma esperança...
- Quem sabe, Cecília? - disse o moço, pondo-lhe a mão no ombro -; é possível que Félix tenha cedido a um capricho. Virá a arrepender-se depois, mas o seu orgulho não lhe deixará dar o primeiro passo. Nesse caso uma pessoa influente pode convencê-lo de que a primeira glória é a reparação dos erros.
Cecília levantou os ombros; foi a sua única resposta.
Meneses perguntou se haveria alguma razão de ciúmes.
- Posso jurar-lhe que durante todo este tempo pertenci-lhe exclusivamente.
O juramento de Cecília não devia valer muito aos olhos de um homem que conhecesse bem todos os recursos de uma mulher naquelas condições. Mas o nosso Meneses era ingênuo em cousas tais. Saiu de lá cheio de piedade. Nessa mesma tarde mandou uma carta às Laranjeiras, justamente na ocasião em que Félix acabava de ler outra carta de Cecília. A carta da moça era tranquila e até certo ponto nobre. Não lhe fazia nenhuma recriminação, nem implorava nenhum favor. Defendia-se apenas, retirando de si a responsabilidade da separação.
A carta de Meneses era cavalheiresca: descobria o estado da alma de Cecília e não hesitava em chamar ingrato ao prófugo dardânio. Félix sorriu lendo ambas as missivas; depois atirou-as a uma cesta e nunca mais as viu.
III
AO SOM DA VALSA
A casa do coronel podia conter o triplo das pessoas convidadas para o sarau daquela noite; mas o coronel preferira convidar apenas as pessoas mais íntimas e familiares. Era homem pouco cerimonioso, gostava sobretudo da intimidade.
Quando Félix entrou, dançava-se uma quadrilha. O coronel foi ter com ele e levou-o para onde estava a mulher, que já o esperava com ansiedade, pela razão, dizia ela, de que era um dos poucos rapazes que ainda conversavam com velhas, estando entre moças. Félix sentou-se ao pé de D. Matilde. Estava então de bom humor e conversou alegremente até que a música parou.
A mulher do coronel era o tipo da mãe de família. Tinha quarenta anos e ainda conservava na fronte, embora secas, as rosas da mocidade. Era uma mistura de austeridade e meiguice, de extrema bondade e extrema rigidez. Gostava muito de conversar e rir e tinha a particularidade de amar a discussão, exceto em dous pontos que para ela estavam acima das controvérsias humanas: a religião e o marido. A sua melhor esperança, afirmava, seria morrer nos braços de ambos. Dizia-lhe Félix às vezes que não era acertado julgar pelas aparências, e que o coronel, excelente marido em reputação, fora na realidade pecador impenitente. Ria-se a boa senhora destes inúteis esforços para abalar a boa fama do esposo. Reinava uma santa paz naquele casal, que soubera substituir os fogos da paixão pela reciprocidade da confiança e da estima.
A conversa com a dona da casa roubou algum tempo às moças, segundo a expressão do coronel. Era necessário que Félix se dividisse com as senhoras que ainda tinham amor aos exercícios coreográficos. Recusou, pretextando a presença de D. Matilde.
- Oh! Por mim não! - respondeu a boa senhora -; o direito das velhas tem um limite no direito das moças. Vá, doutor, e mais tarde volte cá, se o não agarrarem por aí...
Valsava-se. Félix levantou-se e foi buscar um par. Não tendo preferência por nenhuma senhora, lembrou-lhe ir pedir a filha do coronel. Atravessava a sala para ir buscá-la defronte, quando foi abalroado por um par valsante. Conquanto fosse navegante prático daqueles mares, não pôde evitar o turbilhão. Susteve o equilíbrio com rara felicidade e foi procurar melhor caminho, costeando a parede. Nesse momento os valsantes pararam perto dele. Pareceu-lhe reconhecer Lívia, irmã de Viana. Com as faces avermelhadas e o seio ofegante, a moça pousava molemente o braço no braço do cavalheiro. Murmurou algumas palavras, que Félix não pôde ouvir, e depois de lançar um olhar em roda de si, continuou a valsar.
Durou isto minutos.
Félix, apenas se achou livre, foi buscar a filha do coronel, interessante criança de dezessete anos, figura delgada, rosto angélico, formas graciosas, toda languidez e eflúvios. Era uma dessas mulheres que fazem o mesmo efeito que um vaso de porcelana fina: toca-se-lhes com medo de as quebrar. Raquel era o seu nome; tinha grandes pretensões a mulher, que lhe não ficavam mal naquela idade de transição; mas o que Félix lhe achava melhor era justamente o seu aspecto de criança, mal disfarçado pela formação do seio. Como caráter, fazia-lhe a mãe grandes elogios, e eram fundados, posto fossem de mãe.
Raquel aceitou o convite. Félix passou-lhe o braço à roda da cintura, e ela estremeceu da cabeça aos pés; depois entregou-se-lhe toda com aquele abandono que a valsa prescreve ou permite, e voaram pela sala no turbilhão geral. A agitação coloriu um pouco as faces da moça, comumente descoradas. Quando pararam, estava ofegante.
- Sentemo-nos - disse Félix.
- Não; passeemos um pouco. Por que não aparece cá?
- Receio não os encontrar; estão sempre fora...
- Não; há dous meses estamos na cidade. Mamãe diz que já não está para estas viagens contínuas, e eu acho que tem razão. Também me cansam a mim; o mais influído é papai.
- Não gosta da roça?
- Eu não tenho preferências; gosto tanto da roça como da cidade; contudo... dou-me melhor cá.
- Está olhando para aquela moça? Não a acha bonita?
- Quem? Eu não olhava para ninguém.
- Pois fazia mal; porque valia a pena olhar: Lívia é a rainha da noite.
Conquanto Raquel, na opinião de Félix, fosse uma menina, não deixou este de estranhar que tão facilmente cedesse a realeza da noite a outra mulher; mas, por outro lado, refletia que esta abdicação bem podia ser uma afetação de modéstia. Contudo, o límpido olhar da moça revelava a mais absoluta ingenuidade. Fez-lhe um cumprimento à beleza dela e entrou a admirar de longe a beleza de Lívia.
Lívia tinha efetivamente um ar de rainha, uma natural majestade, que não era rigidez convencional e afetada, mas uma grandeza involuntária e sua. A impressão de Félix foi boa e má; achou-lhe uma beleza deslumbrante, mas pareceu-lhe ver através daquele rosto senhoril uma alma altiva e desdenhosa.
- Será a rainha da noite - disse ele voltando-se para Raquel -; mas não serei eu quem lhe faça a corte.
- Por quê?
- Parece-me orgulhosa; há de tratar a todos como vassalos seus. Não vê com que desdém ouve ela as palavras do cavalheiro que lhe dá o braço?
O cavalheiro era o mesmo rapaz que valsara com a viúva, um Dr. Batista, descendente em linha reta do Leonardo de Camões, "manhoso e namorado".
- Oh! Isso não é razão, disse Raquel -; Lívia não gosta dele.
Pouco tempo depois foi servida a ceia. Félix dirigiu-se para uma sala interior, onde o coronel tinha os livros, e que servia temporariamente de refúgio aos fumantes. Félix acendeu um charuto e começou a correr os olhos pelos livros.
Ali foram ter alguns rapazes que falaram entusiasticamente da irmã de Viana. Era o objeto de todas as atenções da noite. E foi no meio das apologias daqueles cortesãos da beleza que ela apareceu pelo braço do coronel, atravessando a sala, para ir ter ao toucador.
- Doutor! - disse Viana, aproximando-se de Félix.
E voltando-se para a irmã:
- O Dr. Félix quer falar-te.
- Ah! - disse a moça, voltando-se para o médico.
Félix aproximou-se.
- Não sei se se lembra de mim? - perguntou ele.
- O Dr. Félix? Perfeitamente: foi-me apresentado há muito tempo, mas eu tenho boa memória. Demais, só se esquecem as pessoas vulgares.
Félix agradeceu-lhe o cumprimento. Ela estendeu-lhe a ponta dos dedos elegantemente apertados na pelica da luva. Trocaram algumas palavras mais. Daí a pouco, tendo-se ouvido o prelúdio de uma quadrilha, toda a gente se retirou. Ficaram na sala Félix e Moreirinha.
Moreirinha tinha cerca de trinta anos, um bigode espesso, uma aparência agradável e um espírito frívolo. Confessou que estava impressionado pela viúva, mas que eram muitos os seus rivais.
- Mas não são temíveis esses rivais? - perguntou Félix.
- Não; um apenas.
- Qual?
- O Batista.
- É o que está nas graças?
- Não sei; mas é o mais valente de todos, e o que dispõe de mais tempo, posto seja casado.
- Casado?
- Com um anjo.
Félix procurou reanimar o pretendente, pondo em relevo todas as suas qualidades merecedoras de admiração. Inventou-lhe algumas que não tinha; reconheceu-lhe outras que possuía realmente, inda que de um merecimento relativo ou duvidoso. Não se podia negar a influência do Moreirinha entre senhoras. Era ele galanteador por índole e por sistema; tinha, além disso (cousa importante), a plena convicção de que a sua conversa era preferida pelas damas. Ninguém melhor do que ele sabia lisonjear o amor-próprio feminino; ninguém prestava com mais alma esses leves serviços de sociedade, que constituem muita vez toda a reputação de um homem. Dirigia os piqueniques, comprava o romance ou a música da moda, encomendava os camarotes para as representações de celebridades, levava os pianistas aos saraus, tudo isso com um modo tão serviçal que era de se ficar morrendo por ele.
Félix voltou à sala quando se dançavam os últimos passos da quadrilha. Lívia estava esplêndida de graça e elegância. Nenhuma afetação nem acanhamento; seus movimentos eram a um tempo desembaraçados e modestos. O médico procurou ver se o doutor pretendente estaria nas graças da moça; mas ele dançava do mesmo lado em que ela estava; os olhares não podiam encontrar-se. Um sobrinho do coronel indicou-lhe a mulher do Batista: era uma moça de vinte anos, loura, assaz bonita e digna de inspirar amores. Por que motivo o marido, casado há pouco, queria ir queimar a um templo estranho os perfumes que a esposa merecia?
Algum tempo depois de finda a quadrilha, dispôs-se Félix a deixar a casa do coronel, que lhe interceptou a passagem em nome, disse ele, da mulher e das moças.
Félix respondeu-lhe que estava incomodado.
- Pretextos de peraltice - disse o velho, rindo alegremente -; não o deixo sair nem que me caia morto na sala. Faz favor, minha senhora?
Estas últimas palavras eram dirigidas à irmã de Viana, que ia atravessando a saleta onde se achavam os dous.
- Que me quer, coronel? - disse ela parando.
- Um favor apenas. Retenha-me este senhor, que se quer ir embora. Não tenho forças para tanto. Veja se mo consegue. Comece dando-lhe uma quadrilha.
- Dou-lhe a próxima, que é a minha última.
- Também se vai embora?
- Também.
- É uma debandada geral. Vou mandar trancar as portas.
O coronel afastou-se depois desta ameaça. Félix deu o braço a Lívia e foram sentar-se num sofá que ficava próximo.
- Meu irmão é muito seu amigo - disse Lívia acomodando as ondas de seda do vestido -. Fala-me muito no senhor.
- É muito meu amigo - repetiu Félix, fazendo interiormente uma careta.
- Não admira - observou ela -; o senhor merece ser estimado.
- Como sabe disso?
- Todos o afirmam.
- Nem todos serão sinceros - observou Félix.
Félix não se iludia a respeito da estima de Viana. Sem negar que o irmão da viúva lhe tivesse alguma amizade, dava-lhe, todavia, limitado valor. Lívia asseverava, entretanto, que o irmão falava dele com grande entusiasmo, e até certo ponto o entusiasmo era sincero. Félix tinha sobre Viana certa ascendência moral; além disso, era um homem franco e hospedeiro, rude mas serviçal.
Dentro de pouco tempo a conversa entre o médico e a viúva foi perdendo a frieza cerimoniosa do começo. Passaram a falar do baile, e Lívia manifestou com expansiva alegria as suas excelentes impressões, sobretudo porque, dizia ela, vinha da roça, onde tivera uma vida reclusa e monástica. Falaram naturalmente da viagem que ela pretendia fazer. Confessou ela que era um desejo antigo e várias vezes diferido.
- Não pense - acrescentou Lívia - que me seduzem unicamente os esplendores de Paris, ou a elegância da vida europeia. Eu tenho outros desejos e ambições. Quero conhecer a Itália e a Alemanha, lembrar-me da nossa Guanabara junto às ribas do Arno ou do Reno. Nunca teve iguais desejos?
- Estimaria poder fazê-lo, se me suprimissem os incômodos da viagem; mas com os meus hábitos sedentários dificilmente me resolveria a isso. Eu participo da natureza da planta; fico onde nasci. V. Exa. será como as andorinhas...
- E sou - disse ela reclinando-se molemente no sofá -; andorinha curiosa de ver o que há além do horizonte. Vale a pena comprar o prazer de uma hora por alguns dias de enfado.
- Não vale - respondeu Félix, sorrindo -; esgota-se depressa a sensação daquele momento rápido; a imaginação ainda pode conservar uma leve lembrança, até que tudo se desvanece no crepúsculo do tempo. Olhe, os meus dous pólos estão nas Laranjeiras e na Tijuca; nunca passei destes dous extremos do meu universo. Confesso que é monótono, mas eu acho felicidade nesta mesma monotonia.
Lívia entrou a combater isto que lhe parecia um insigne paradoxo, mas sem que nenhuma de suas palavras mostrasse a mais leve sombra de pedantismo. Tinha uma maneira natural e simples de dizer as cousas menos vulgares deste mundo. Sabia exprimir as suas ideias em frase elegante, mas despretensiosa.
O prelúdio de uma valsa chamou a atenção dos dous para o baile. Félix convidou-a para valsar; ela desculpou-se, dizendo que se achava cansada.
- Vi-a valsar quando entrei - disse Félix -, e afirmo que poucas pessoas valsarão tão bem. Creia na sinceridade do elogio, porque eu não os faço nunca.
A moça aceitou este cumprimento com ingênua satisfação.
- Gosto muito da valsa - disse ela -. Não admira: é a primeira dança do mundo.
- Pelo menos é a única dança em que há poesia - acrescentou Félix -. A quadrilha tem certa rigidez geométrica; a valsa tem todo o abandono da imaginação.
- Justamente! - exclamou Lívia, como se Félix lhe tivesse reunido em poucas palavras todas as suas ideias a respeito daquele assunto.
- Demais - continuou o doutor, animado pelo entusiasmo da viúva -, a quadrilha francesa é a negação da dança, como o vestuário moderno é a negação da graça, e ambos são filhos deste século que é a negação de tudo.
- Oh! - murmurou ela sorrindo.
E o protesto não foi só com os lábios, foi também com os olhos - uns olhos aveludados e brilhantes, feitos para os desmaios de amor. Félix começou a sentir-se bem ao lado daquela moça e, esquecendo de boa vontade a festa em que só aparentemente figurava, ali se demorou longo tempo com ela, alheio aos comentários estranhos, todo entregue ao capricho do seu próprio pensamento.
Todavia, escapou-lhe, no meio da conversa, não sei que frase de melancólico cepticismo que fez estremecer a moça. Lívia olhou para ele e depois para o chão, parecendo tão absorta que nem deu pelo silêncio que se seguiu ao seu gesto e às palavras de Félix. Este aproveitou a circunstância para examiná-la melhor.
Lívia representava ter vinte e quatro anos. Era extremamente formosa; mas o que lhe realçava a beleza era um sentimento de modesta consciência que ela tinha de suas graças, uma cousa semelhante à tranquilidade da força. Nenhum gesto seu revelava o amor-próprio geralmente inseparável das mulheres bonitas. Sabia que era formosa, mas tinha para si que, se a natureza se havia esmerado com ela, era por uma razão de harmonia e de ordem nas cousas terrestres. Afear as suas graças parecia-lhe um crime; tirar orgulho delas, frivolidade.
Félix examinou-lhe detidamente a cabeça e o rosto, modelo de graça antiga. A tez, levemente amorenada, tinha aquele macio que os olhos percebem antes do contacto das mãos. Na testa lisa e larga, parecia que nunca se formara a ruga da reflexão; não obstante, quem examinasse naquele momento o rosto da moça veria que ela não era estranha às lutas interiores do pensamento: os olhos, que eram vivos, tinham instantes de languidez; naquela ocasião não eram vivos nem lânguidos; estavam parados.
Sentia-se que ela olhava com o espírito.
Félix contemplou-lhe longo tempo aquele rosto pensativo e grave, e involuntariamente foram-lhe os olhos descendo ao resto da figura. O corpinho apertado desenhava naturalmente os contornos delicados e graciosos do busto. Via-se ondular ligeiramente o seio túrgido, comprimido pelo cetim; o braço esquerdo, atirado molemente no regaço, destacava-se pela alvura sobre a cor sombria do vestido, como um fragmento de estátua sobre o musgo de uma ruína. Félix recompôs na imaginação a estátua toda e estremeceu. Lívia acordou da espécie de letargo em que estava. Como também estremecesse, caiu-lhe o leque da mão. Félix apressou-se a apanhar-lho.
- Obrigada - murmurou ela distraída.
Depois, parecendo envergonhada daquele longo silêncio, pretextou um incômodo nervoso; levantaram-se e dirigiram-se ao salão. Ali, no meio da conversa e do bulício, readquiriu ela o império de si mesma, e conversaram largamente com volubilidade e galanteria. A viúva era um pouco sarcástica, mas daquele sarcasmo benévolo e anódino, que sabe misturar espinhos com rosas. Pela primeira vez Félix a conhecia, porquanto apenas a tinha visto duas vezes, e não basta ver uma mulher para a conhecer, é preciso ouvi-la também; ainda que muitas vezes basta ouvi-la para a não conhecer jamais.
Lívia demorou-se em casa do coronel mais tempo do que prometera, milagre devido ao doutor, dizia Viana. O certo é que o resto da noite quase não existiram para ninguém mais.
Não passou isto sem que o notassem alguns lábios despeitados. Um cavalheiro disse a uma senhora:
- Não lhe parece que D. Lívia tem um gosto deplorável?
A senhora arregaçou levemente a ponta esquerda do lábio superior, e respondeu:
- O Félix não o tem melhor.
A viúva saiu no meio de um geral murmúrio de curiosidade. Félix não se demorou muito tempo mais; meteu-se no carro e foi para as Laranjeiras.
Uma hora depois o baile, a viúva, a dança, tudo se lhe desvaneceu do espírito, graças a um sono tranquilo e profundo, como essas nuvens douradas do ocaso que a noite absorve ou dissipa.