Ressurreição
NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA
Ressurreição é o primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.
Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma "Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida; na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e, ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a tradução que constava na publicação de 1872.
Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e, por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas de maneira mais sorrateira.
Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à "primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.
Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.
Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "cômplice" "cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de "atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada ("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta), por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.
Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala [...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir, na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.
Esta não pretende ser uma edição crítica. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.
Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.
XXII
A CARTA
Quando Meneses chegou à Tijuca eram quatro horas da tarde. A casa de Félix ficava afastada do caminho. O portão estava aberto; Meneses atravessou rapidamente o espaço que ia da estrada à casa e bateu. Veio um moleque abrir-lhe a porta. Meneses entrou precipitadamente e perguntou:
- Onde esta o senhor?
- Senhor não fala a ninguém - respondeu o moleque com a mão na chave como se o convidasse a sair.
- Há de falar comigo - insistiu resolutamente Meneses.
O tom decidido do rapaz abalou o escravo, cujo espírito, costumado à obediência, não sabia quase distingui-la do dever. Seguiram ambos por um corredor, chegaram diante de outra porta, e aí o moleque, antes de a abrir, recomendou a Meneses que esperasse fora. Perdida recomendação, porque, apenas o moleque abriu a porta, Meneses entrou afoutamente atrás dele.
Era um gabinete pequeno com quatro janelas que o enchiam de luz. Perto de uma janela havia uma rede estendida. Sobre a rede via-se um homem negligentemente deitado com um livro nas mãos.
Era Félix.
Félix levantou a cabeça, deu com os olhos em Meneses, e empalideceu. Meneses não dera um passo mais. Ficaram assim alguns segundos a olhar um para o outro. Enfim, o médico disse ao escravo que se retirasse, e os dous ficaram sós.
O silêncio prolongou-se ainda mais. Da parte de Félix era confusão; da parte de Meneses, desapontamento. Viera ele em todo o caminho a descrever na imaginação o estado de Félix, acabrunhado por alguma grande dor, e em vez disso achava-o a ler pacificamente um livro. Quis lançar mão do livro, para conhecer bem até que ponto a sua desilusão era completa; mas o médico rapidamente o afastou.
- Não atendeste à ordem geral que eu havia dado - disse enfim, o dono da casa - e creio que só alguma razão poderosa te obrigaria a isso.
- Assim era - retorquiu Meneses -, mas a razão acabou e eu volto para a cidade.
Dizendo isto, pôs o chapéu na cabeça e dirigiu-se para a porta. Parou um instante, caminhou de novo até a rede e proferiu secamente estas palavras:
- Tens consciência do que fizeste?
- Tenho - respondeu Félix -; fiz o que me cumpria fazer. Mas, antes de mais nada, vens aqui por inspiração tua ou por mandado de...
- Venho porque era um dever da minha parte livrar-te da vergonha, e a ela, da morte.
- Da morte! - exclamou Félix levantando-se de um pulo.
O terror que se lhe pintara no rosto fez boa impressão no amigo. Suspeitou este que nem tudo estivesse perdido. Sentaram-se ambos, e Meneses referiu ao médico os acontecimentos que deixo narrados no capítulo anterior. Félix escutou a narração do amigo com um interesse que não podia vir senão do amor. Meneses concluiu pintando-lhe com as cores que o caso pedia a baixeza do seu procedimento, o desaire que recaía sobre a viúva, e o remorso que o havia de acompanhar a ele, ainda quando daquele triste episódio não saísse nenhuma fatal consequência.
Félix mostrou-se profundamente comovido com a narração de Meneses e as reflexões que lhe fizera.
- Tens razão - disse ele quando o amigo acabou de falar -; procedi covardemente. Ela ainda me ama... E perdoa-me, não é? Sim, há de perdoar-me... Pobre Lívia! Se tu soubesses como ela tem sofrido por minha causa!...
Meneses, satisfeito, disse-lhe que era indispensável voltar à cidade. Enquanto falava, porém, o rosto de Félix mudou de expressão. A única resposta do médico foi:
- Não! O que está feito, está feito; agora é impossível recuar.
- Impossível! - gritou Meneses.
- Impossível - repetiu placidamente Félix.
Meneses levantou-se impaciente e começou a passear. A serenidade do médico mais lhe doía do que indignava, porque alguma razão poderosa devia ele ter para cortar tão peremptoriamente toda a tentativa de reconciliação. Quisera sabê-la e tremia de o interrogar.
O médico, entretanto, deixara-se estar sentado, quase tão tranquilo como na ocasião em que Meneses lhe entrara no gabinete.
Não era fingida essa tranquilidade, que durava já de alguns dias, depois de outros - os primeiros -, que foram de aflitiva tempestade.
O homem não se esconde de si mesmo, e o maior infortúnio dos corações pusilânimes é sentirem que o são. Quando Félix chegou à Tijuca tinha passado a excitação do primeiro momento; o espírito, fraco de si, e abatido pela imensidade do abalo, não achou na solidão o alívio que lhe pedira. Vieram então muitos dias de luta e de febre, em que ele, para fortalecer o ânimo, lia e relia a misteriosa carta que trouxera consigo. O remédio era antes veneno para a sua alma ulcerada; lembrava-lhe a felicidade que perdera.
Era isto o que padecia o coração. A consciência padecia também, porque a sociedade, que ele não vira no primeiro instante, agora lhe aparecia como um juiz inflexível, a pedir-lhe conta de uma injúria sem explicação. Às vezes arrependia-se do ato; outras vezes, não se arrependia, mas acusava-se de precipitado e louco. Nunca mais tristemente se revelara a inconsistência do espírito.
Com o tempo a consciência foi calando as vozes, e com o tempo, e a distância, e a sua índole variável, se lhe foi aquietando o coração. Aquele homem, que alguns dias antes chorava de desespero, nenhum vestígio guardara de suas lágrimas. Não se lhe apagara o amor da viúva, mas no lugar da paixão veemente, como que ficara apenas uma recordação remota e suave. Esta mudança era em parte obra do seu esforço, que buscava no esquecimento um refúgio; mas em grande parte era um efeito natural dele.
Tal foi a situação em que o achou Meneses. A presença deste trouxe à memória do médico a última crise do coração. A impressão foi grande, não longa; a face do lago, que uma rajada encrespara, voltou à serenidade primitiva.
Meneses passeava de um lado para outro, a observar de quando em quando o médico. Ao seu espírito repugnava a ideia de que Félix recorresse a um meio extraordinário para sair de uma situação difícil, não sancionada pelo coração. Uma causa havia, decerto, que se lhe afigurava grave, e que ele a todo custo queria conhecer. Seus esforços convergiam para esse ponto. Instado pelo amigo, Félix aludiu à carta que recebera, mas recusou mostrá-la.
- Há nela um segredo - disse ele - que me impede de a comunicar a ninguém. Lívia tem jus ao meu respeito e possui ainda o meu amor.
Estas últimas palavras foram ditas com certa comoção. Meneses não perdeu a esperança de o vencer. A sinceridade era a sua eloquência; podia-se dizer que ele falava com o coração nas mãos. O espírito de Félix ia cedendo ao encanto; ele mesmo recordava as horas felizes do passado e as saudosas esperanças do futuro. O coração palpitou-lhe com mais força e a imaginação fez o resto. A carta, porém, a fatal carta lhe ocupou logo o pensamento, e a fronte descaiu diante do insuperável obstáculo. Cansado de lutar, Meneses resolveu partir para a cidade.
- Não sei o que pensarão os outros - disse ele -; eu levo a suspeita de que não a amaste nunca, e que esse rompimento estrepitoso foi um meio de salvar a tua liberdade.
Ouvindo estas palavras, Félix não pode conter um gesto de cólera. A atitude quieta de Meneses o fez cair em si.
- Tens razão - disse ele depois de algum tempo -. Quero que pelo menos alguém me reconheça inocente e digno. Dás-me a tua palavra de honra que nada revelarás do que vais ler?
- Dou.
Félix foi buscar a carteira, tirou dela a carta, e entregou-a a Meneses.
Meneses leu o que se segue:
“Mísero moço! És amado como era o outro; serás humilhado como ele. No fim de alguns meses terás um Cireneu para te ajudar a carregar a cruz, como teve o outro, por cuja razão se foi desta para a melhor. Se ainda é tempo, recua!”
A carta não tinha assinatura.
Meneses ficou atônito; mas foi obra de alguns instantes, poucos. Sua índole generosa repelia a ideia de acreditar na revelação que acabava de ler.
- É impossível! - disse ele.
Félix ergueu a cabeça, que apertava entre as mãos, e replicou:
- Essa é a tua convicção; eu quisera que fosse a minha. Mas que testemunho tens tu contra o que aí vês escrito?
- Não sei - respondeu Meneses com calor -, mas é o que me diz o coração. Repugna-me crer que essa pobre senhora... Não, é impossível! Demais, uma carta anônima!
- Põe o nome que quiseres aí embaixo; não lhe aumentas nem lhe tiras o valor, se a revelação é verdadeira.
- Quem te diz que é verdadeira?
- Quem me diz que o não é? A dúvida era já bastante para justificar o que fiz. Não foi só o receio do futuro que me impeliu, foi principalmente a lembrança do passado. A traição dela, se a houve, não deve doer nada ao marido que se foi; mas, ao marido que vem, a ideia da perfídia anterior destrói pela base toda a confiança, que é a condição da felicidade. Não sei o que farias tu no meu caso; eu segui o impulso do coração e da razão.
Meneses ouvira atentamente o amigo. Quando ele acabou:
- Creio-te sincero - disse -; e compreendo que sofreste.
- Muito!
- Mas recusarás uma reflexão? Quem escreveria esta carta? Não foi um amigo, decerto. Um amigo, se lhe pesasse o teu ato, viria falar-te cara a cara. Um indiferente também não foi. Resta, pois, um inimigo, teu ou dela...
- Dela?
- Ou um interessado: escolhe.
Félix refletiu um instante.
- Inimigo, não sei se os tinha; interessado... em quê?
- Ela é rica; algum pretendente...
- Não havia nenhum.
Meneses não fraqueou na defesa da sua hipótese. Quanto mais atentava na revelação da carta, mais o coração lhe bradava contra ela. Para ele a inocência de Lívia era clara como o sol. Félix sentia-lhe a convicção, e lastimava-se de a não ter, tão viva e tão profunda.
A noite caíra de todo. Meneses declarou que só voltaria à cidade no dia seguinte.
Félix compreendeu que o amigo não perdera a esperança de o converter e, longe de se irritar, agradeceu-lhe a intenção. Era a primeira vez que ele se expandia com alguém a respeito do seu amor; fê-lo com abundância e sinceridade. Não lhe lembrara sequer que Meneses também amara a viúva.
Muitas vezes falaram da carta. Meneses perguntou ao médico em que circunstâncias a recebera. Félix referiu a visita de Luís Batista, o objeto dela, a conversa travada entre ambos, até que a carta lhe chegou às mãos.
A singularidade da visita de Luís Batista não escapou a Meneses.
- Visitava-te esse homem? - perguntou ele.
- Nunca.
- Eras amigo dele?
- Havia mais razões para sermos inimigos que outra cousa.
Meneses hesitou; não se atrevia a desposar uma suspeita. Mas o espírito do médico era terreno fecundo para ela. Apenas as perguntas de Meneses lhe deitaram o gérmen, para logo foi lançando raízes e cresceu.
- Crês então que ele?... - aventurou o médico.
- Não sei; mas, não te parece curiosa toda essa história de gravuras?
Félix refletiu algum tempo. Como quando os olhos se vão acostumando à meia-luz de um sítio, e começam a distinguir a pouco e pouco os objetos, o espírito do médico entrou a recordar e a examinar todos os incidentes daquela fatal manhã. O que ele a princípio não vira, apareceu-lhe então claro e evidente. O tom ameno e jovial de Luís Batista, a sua estranha verbosidade, o episódio dos amores tão levemente contados a um homem que não era seu natural confidente, tudo isto com a circunstância da humilhação que recebera quando a viúva lhe fechou a sua sala, enfim, a má reputação dele eram indícios de sobejo para não achar natural a visita que lhe fizera. Mas, como deduzir daqui a autoria da carta?
Meneses resolveu a dúvida naturalmente.
- Se não desses crédito à carta - disse ele -, o último de quem te lembrarias seria Luís Batista, porque ninguém faz mal a um homem no mesmo instante em que lhe vai pedir um favor.
Félix aceitou esta explicação; mas o que acabou de o convencer foi uma circunstância até então deslembrada e agora decisiva. O médico levantou-se rapidamente da cadeira; deu alguns passos na sala e parou em frente de Meneses.
- É verdade - disse -; foi ele com certeza! Quando eu li a carta fiquei fulminado. Ele aproximou-se de mim; eu pedi-lhe que me deixasse só. Obedeceu, mas um sorriso, que então me pareceu feroz indiferença, mas que hoje vejo que era de triunfo, lhe roçou os lábios. Foi ele; oh! Sinto que foi ele.
Entendamo-nos, leitor; eu, que te estou contando esta história, posso afirmar-te que a carta era efetivamente de Luís Batista. A convicção porém do médico - sincera, decerto - era menos sólida e pausada do que convinha. A alma dele deixava-se ir ao sabor de uma desconfiança nova, que as circunstâncias favoreciam e justificavam.
Quando Meneses viu que o maior trabalho estava feito, não teve mais que falar outra vez de Lívia. A placidez do médico desaparecera; todo ele era agora amor e ódio, arrependimento e vingança. A noite foi maldormida, e quando a aurora os convidou a sair do leito, Félix era totalmente outro. Ardia por ir fazer ao pés da viúva plena confissão da sua indignidade. Era o nome que lhe dava; dar-lhe-ia outro, se os acontecimentos o fizessem duvidar outra vez.
Apressaram a viagem; Meneses estava alegre com o resultado da missão; lamentou com o médico a fatalidade do caso, mas estava certo de que tudo ia acabar como devia. Mil ideias cor-de-rosa enchiam o cérebro de Félix, e ambos desceram rapidamente na direção da cidade.
XXIII
ADEUS
Apenas chegaram à cidade, Félix despediu-se de Meneses e seguiu para as Laranjeiras. Ia palpitante e receoso; pela primeira vez nesse dia lhe lembrou a doença da viúva. Temeu que fosse tarde. Não era; as janelas estavam abertas. Entrou no jardim; subiu as escadas, cabisbaixo; quando levantou os olhos viu Raquel diante de si.
Raquel, cujo coração era menos filosófico, posto soubesse resignar-se como o de Meneses, não viu o médico sem algum abalo interior. Fê-lo entrar e foi ter com a enferma.
Quando Lívia soube que Félix ali estava, sorriu tristemente e fechou os olhos. Abriu-os para contemplar a boa amiga que esperava ao pé do leito. Não estavam molhados. Cobria-os um véu de serena melancolia.
- Agradece-lhe por mim, Raquel, e dize-lhe que me verá quando eu puder sair daqui.
Félix recebeu o recado e sentiu a frieza dele, apesar da doçura da voz que lho transmitia.
Era muito contudo; não estaria longe a reconciliação.
A convalescença de Lívia foi mais rápida do que se devera esperar. O intervalo foi aproveitado por Félix em se reconciliar com Viana, que achou dentro de si bastante misericórdia para perdoar o culpado. A submissão do médico o lisonjeou, e o seu arrependimento lhe pareceu o que realmente era - sincero. Era natural perguntar-lhe a razão do rompimento. Viana achou melhor calar-se; o que ele queria antes de tudo era a reparação do erro.
Lívia consentiu finalmente em receber o médico. Estava na sala, envolvida num roupão branco, com um resto de palidez que a enfermidade lhe deixara no rosto. Nas circunstâncias em que ambos se tornavam a ver não podia ela estar melhor. O ar da moça não era risonho, mas também não era severo. Félix caminhou lentamente para ela, tímido e fascinado ao mesmo tempo. De novo sentia o império que a viúva sempre exercera em seu espírito.
Quando Félix confessou à viúva todo o seu arrependimento e lhe implorou o perdão da culpa que cometera, escutou-o Lívia com grande serenidade, e afetuosa lhe respondeu:
- Não lhe nego o perdão que me pede; seria duvidar do seu arrependimento, e eu creio que é sincero. Podia talvez exigir que me dissesse a causa que o levou...
- A causa é triste de confessar - interrompeu Félix.
- Não lha peço. Mas quer ouvir o resto?
- Creio no seu arrependimento, e não duvido do seu amor, apesar de tudo o que se há passado. Isto lhe deve bastar. O destino ou a natureza não nos fez um para o outro. O casamento entre nós seria uma cerimônia apenas. Seria mais; seria o nosso infortúnio, e mais vale sonhar com a felicidade que poderíamos ter do que chorar aquela que houvéssemos perdido.
Félix ouviu as palavras da moça cabisbaixo e abatido. Não ousava responder-lhe nem interrogá-la; mas do seu mesmo silêncio colhia a moça a sinceridade da dor e do arrependimento.
- Se isto lhe dói - continuou ela -, vê bem que a culpa não é minha. Eu aceito uma situação não criada por mim, nem também pelo senhor, mas - como eu lhe dizia -, pela natureza ou pelo destino. No ponto a que chegamos é esta a resolução melhor.
- Não é - interrompeu Félix com impetuosidade -, não é a melhor porque ambos perderemos com ela, e nada nos impede a resolução contrária. Creio que não duvide do meu amor; mas digo-lhe que o não compreende, nem avalia. Eu não teria ânimo de lhe propor, nas circunstâncias em que nos achamos, um rompimento que...
O sorriso com que a moça o ouvia cortou-lhe a palavra neste ponto. Caiu em si, lembrou-lhe - que ele facilmente esquecia tudo -, lembrou-lhe que lhe não cabia falar de rompimento, e murmurou:
- Não tenho direito de falar assim, e vejo que mereço um castigo...
- Não é castigo - atalhou a viúva -, é necessidade. Se alguma consolação pode levar desta última entrevista, leve a certeza de que o amo como dantes, e de que o meu padecimento será ainda maior do que o seu. O casamento é já agora impossível. Eu não sei o que motivou a sua carta, mas imagino que foi alguma dúvida nova a meu respeito. Se nos casássemos, cessariam elas?
- Sim! Porque eu hoje creio e vejo o que padeceu por mim. Para duvidar do seu amor seria preciso que houvesse perdido a razão. Demais - continuou Félix enquanto Lívia abanava tristemente a cabeça -, viveremos só para nós, fecharemos a nossa casa aos olhos estranhos...
- Ainda assim o irá perseguir esse mau gênio, Félix; seu espírito engendrará nuvens para que o céu não seja limpo de todo. As dúvidas o acompanharão onde quer que nos achemos, porque elas moram eternamente no seu coração. Acredite o que lhe digo; amemo-nos de longe; sejamos um para o outro como um traço luminoso do passado, que atravesse indelével o tempo, e nos doure e aqueça os nevoeiros da velhice.
Lívia proferiu estas últimas palavras com a voz trêmula, e uma lágrima lhe rolou pela face pálida.
- Por que nos separaremos agora que estamos à porta do céu? - perguntou Félix -. Não me cabe o direito de exigir uma felicidade que repeli tantas vezes; mas, se pudesse entrar na minha alma, veria que os meus erros, por maiores que sejam, e são grandes, anima-os sempre um sentimento de amor, e que enfim eu cedo sempre ao grito de minha consciência. A mais bela ação seria perdoar-me esquecendo, e o único modo de esquecer seria voltarmos ao tempo de nossas esperanças.
- Perdoei tudo, e tudo esqueci; apagou-se o passado e nenhum ressentimento me ficou. O que se não apaga é o futuro.
Félix torcia as mãos. Era patente o seu desespero. A viúva mal podia encará-lo. Seguiu-se um longo silêncio, interrompido pela chegada de Luís. O menino pôs termo à entrevista. Félix olhou ainda algum tempo para a moça; mas leu-lhe na fisionomia que a resolução era inabalável. Levantou-se para sair.
- Conservaremos a estima recíproca - disse Lívia estendendo-lhe a mão -, e espero que me conserve também alguma cousa mais... como eu.
Eram as últimas palavras da moça, vieram entrecortadas de soluços. Félix quis pegar-lhe nas mãos e aproveitar esse passageiro desmaio para conseguir a retratação das palavras. Mas a moça abraçou-se ao filho em cujo seio escondeu o rosto.
- Não faça chorar mamãe - disse Luís enlaçando com os bracinhos o pescoço da viúva.
Félix retirou-se lentamente, com os olhos anuviados, turvo o espírito, o passo vacilante, e transpôs a custo a soleira daquela porta que se lhe ia fechar para sempre.
XXIV
HOJE
Dez anos volveram sobre os acontecimentos deste livro, longos e enfastiados para uns, ligeiros e felizes para outros, que é a lei uniforme desta mofina sociedade humana. Ligeiros e felizes foram eles para Raquel e Meneses, que eu tenho a honra de apresentar ao leitor, casados, e amantes ainda hoje. A piedade os uniu; a união os fez amados e venturosos.
A pouco e pouco, o primeiro amor de Raquel se foi apagando, e o coração da moça não achou melhor convalescença que desposar o enfermeiro. Se lho dissessem no tempo em que ela adoecera por amor do médico, levantaria desdenhosamente os ombros, e com razão. Donde se colhe quão acertado é aquele provérbio oriental que diz - que a noite vem pejada do dia seguinte. Qual fosse a aurora que a sua noite trazia no seio não o adivinhara Raquel, mas a sua atual opinião é que não a podia haver mais bela em toda a escala do tempo.
O coronel e D. Matilde, com poucos meses de intervalo, foram continuar na eternidade a doce união que os distinguira neste mundo.
Lívia entra serenamente pelo outono da vida. Não esqueceu até hoje o escolhido de seu coração, e à proporção que volvem os anos, espiritualiza e santifica a memória do passado. Os erros de Félix estão esquecidos; o traço luminoso, de que ela lhe falara na última entrevista, foi só o que lhe ficou.
No tempo em que os mosteiros andavam nos romances - como refúgio dos heróis, pelo menos -, a viúva acabaria os seus dias no claustro. A solidão da cela seria o remate natural da vida, e como a olhos profanos não seria dado devassar o sagrado recinto, lá a deixaríamos sozinha e quieta, aprendendo a amar a Deus e a esquecer os homens.
Mas o romance é secular, e os heróis que precisam de solidão são obrigados a buscá-la no meio do tumulto. Lívia soube isolar-se na sociedade. Ninguém mais a viu no teatro, na rua, ou em reuniões. Suas visitas são poucas e íntimas. Dos que a conheceram outrora, muitos a esqueceram mais tarde; alguns a desconheceriam agora.
Talvez o tempo lhe respeitasse a beleza, a não ser a catástrofe que lhe enlutou a vida. Já na meiga e serena fisionomia vão apontando sinais de decadência próxima. Os poucos que lhe frequentam a casa não reparam nisso, porque a alma não perdeu o encanto, e é ainda hoje a mesma feiticeira amável de outro tempo. Ela, sim, ela vê que a flor inclina o colo, e que não tarda o vento da noite a dispersá-la no chão. Mas do mesmo modo que a beleza lhe não acordara vaidades, assim a decadência lhe não inspira terror.
Para consolo e companhia de sua velhice tem ela o filho, em cuja educação concentra todos os esforços. Luís possui as graças da mãe, apenas modificadas por uns toques varonis. Tem só quinze anos; mas como herdou a índole austera da viúva, e pouco, muito pouco, da viveza de imaginação, parece menos um adolescente que um homem.
Félix é que não iria parar ao claustro. A dolorosa impressão dos acontecimentos a que o leitor assistiu, se profundamente o abateu, rapidamente se lhe apagou. O amor extinguiu-se como lâmpada a que faltou óleo. Era a convivência da moça que lhe nutria a chama. Quando ela desapareceu, a chama exausta expirou.
Não foi só isto. A sagacidade de Lívia adivinhara as provações que lhe daria o casamento. Quando de todo se lhe calou o coração, Félix confessou ingenuamente a si próprio que o desenlace de seus amores, por mais que o mortificasse outrora, foi ainda assim a solução mais razoável. O amor do médico teve dúvidas póstumas. A veracidade da carta que impedira o casamento, com o andar dos anos, não só lhe pareceu possível, mas até provável. Meneses disse-lhe um dia ter a prova cabal de que Luís Batista fora o autor da carta; Félix não recusou o testemunho nem lhe pediu a prova. O que ele interiormente pensava era que, suprimida a vilania de Luís Batista, não estava excluída a verossimilhança do fato, e bastava ela para lhe dar razão.
A vida solitária e austera da viúva não pôde evitar o espírito suspeitoso de Félix. Creu nela a princípio. Algum tempo depois duvidou de que fosse puramente um refúgio; acreditou que seria antes uma dissimulação.
Dispondo de todos os meios que o podiam fazer venturoso, segundo a sociedade, Félix é essencialmente infeliz. A natureza o pôs nessa classe de homens pusilânimes e visionários, a quem cabe a reflexão do poeta: "perdem o bem pelo receio de o buscar". Não se contentando com a felicidade exterior que o rodeia, quer haver essa outra das afeições íntimas, duráveis e consoladoras. Não a há de alcançar nunca, porque o seu coração, se ressurgiu por alguns dias, esqueceu na sepultura o sentimento da confiança e a memória das ilusões.