Romance

Ressurreição

1872

NOTA DESTA EDIÇÃO ELETRÔNICA

Ressurreição é o primeiro romance publicado por Machado de Assis, em 1872. Durante a vida do autor, saiu mais uma edição, em 1905, também pela casa editora Garnier.

Para cada uma dessas edições, o autor escreveu uma "Advertência": na primeira, que assina (M. A.) e data de 17 de abril de 1872, explica o propósito do livro e, recorrendo a Shakespeare, que traduz em nota de rodapé, declara que vai escrever um livro sobre a questão da dúvida; na segunda, que assina (M. de A.) e não data, a advertência é bem mais curta e, ao reproduzir a "Advertência da 1a. Edição", já não fornece a tradução que constava na publicação de 1872.

Agora autor consagrado, Machado reflete sobre o seu romance de estreia e declara que não "lhe alter[a] a composição nem o estilo", apenas troca alguns vocábulos e faz pequenas correções de ortografia. No entanto, pode o leitor atento perceber a ausência, na segunda edição, da tradução dos versos de Shakespeare, como se o autor maduro se eximisse da tarefa de traduzir, e, por esse expediente, elevasse a si mesmo e ao seu público-leitor, que pressupõe apto a dispensar a versão para o português da passagem shakespeariana. Ganha em sutileza, dá mais trabalho ao leitor, cuja recepção continua manipulando, mas de maneira mais sorrateira.

Sem investigar em profundidade as possíveis outras motivações da ausência da tradução na edição de 1905, deixamos ao leitor de 2008 uma provocação, um convite a pensar sobre essa obra que, pertencendo à "primeira fase" - como ele próprio assinala na abertura da segunda edição - guarda mais mistérios do que se poderia pensar à primeira vista.

Para estabelecer o texto da presente edição eletrônica, utilizamos como fonte a edição Garnier / Fundação Casa de Rui Barbosa de 1988, preparada por José Galante de Sousa, que se baseou na segunda edição da obra (1905), a última em vida do escritor e, portanto, autorizada por ele. Para solucionar eventuais dúvidas, recorremos diretamente a exemplares da primeira e da segunda edições, existentes na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Foi feita uma atualização ortográfica, mas mantivemos formas que, embora em desuso atualmente, ainda são consignadas pelos principais dicionários de língua portuguesa ("cousa", "cômplice" "cepticismo"). Em nome da preservação do que se poderia chamar de "atmosfera textual", conservamos na língua de origem palavras estrangeiras como "tilbury" e "champagne", apesar de já existirem consignadas em dicionários atuais na forma aportuguesada ("tílburi", "champanhe"). Do mesmo modo, deixamos as duas formas "noute" (uma ocorrência) e "noite" (mais de trinta), por supor que, na fala em que se encontra a forma antiga ("noute"), é possível que Machado de Assis a tenha empregado deliberadamente, como um traço do registro um tanto artificial da personagem que a emprega.

Talvez o maior problema no estabelecimento de textos escritos no século XIX seja o da pontuação. Ao preparar esta edição, optamos por uma política a meio caminho entre uma atualização radical, de acordo com as normas presentemente vigentes, e o respeito à pontuação de Machado de Assis. Para citar um exemplo apenas: mantivemos todas as vírgulas antes da aditiva "e" precedendo verbos cujo sujeito era precisamente o mesmo da oração anterior ("Félix deu uma volta pelo interior da casa, e foi até à sala [...]"). Assim deliberamos por identificar no procedimento um traço estilístico recorrente no romance. Por outro lado, nos casos em que consideramos que a vírgula (ou a ausência dela) comprometia o melhor entendimento do texto, não hesitamos em intervir, como ocorreu no caso de vírgulas precedendo orações adjetivas restritivas (que suprimimos) e de falta de vírgulas precedendo orações adjetivas explicativas (que inserimos). Num caso apenas, deixamos a vírgula separando o sujeito de seu verbo ("O que está feito, está feito."), por considerar que a pontuação procura reproduzir, na fala da personagem, a pausa própria da oralidade.

Esta não pretende ser uma edição crítica, nela não há notas editoriais. Nosso objetivo foi produzir uma edição fidedigna do texto machadiano que, através dos hiperlinks, oferece ao leitor do século XXI uma ferramenta de fácil utilização e encurta a distância entre ele, leitor, e o enorme universo de referências de Machado de Assis.

Registre-se aqui a colaboração, na pesquisa dos hiperlinks, de Camila Abreu, ex-bolsista de Iniciação Científica na Fundação Casa de Rui Barbosa; na revisão, a de Ana Maria Vasconcelos e Karen Nascimento, bolsistas de Iniciação Científica, e, na construção do texto digital e do software que possibilita a visualização dos links, a de Eduardo Pinheiro da Costa, técnico em informática da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Marta de Senna, pesquisadora
Marcelo da Rocha Lima Diego, bolsista de Iniciação Científica
Fundação Casa de Rui Barbosa/CNPq/FAPERJ


agosto de 2008

XX

UMA VOZ MISTERIOSA

Félix estacou à porta da sala. Luís Batista deu dous passos para ele.

- Nunca me ofereceu a sua casa - disse -, e a minha indiscrição vem reparar o seu esquecimento.

Era um gracejo ou um remoque? Félix limitou-se a apertar a mão que o outro lhe estendia e convidou-o a sentar-se.

- Disseram-me que estava almoçando - observou Batista -; não quero de nenhum modo interrompê-lo. Vá, e eu ficarei aqui folheando algum livro.

- Ia começar a almoçar - respondeu o médico -; se quiser almoçaremos juntos.

- Não; se me consente, visto que ainda está solteiro, irei familiarmente assistir ao seu almoço, e então lhe exporei o motivo que aqui me traz.

Félix convidou-o a entrar, e ambos se sentaram à mesa. As primeiras frases trocadas foram acanhadas e frias, mas as maneiras livres do hóspede conseguiram abalar a reserva do dono da casa.

- É verdade - disse Batista -, ouvi dizer que ia casar...

- Amanhã.

- Assisto portanto ao seu penúltimo almoço de rapaz solteiro. Há muita gente que ainda não acredita. Creio que o senhor tinha fama de celibatário convencido e, pela regra, um celibatário convencido é um noivo à mão. Também eu era assim; e contudo... O casamento é bom; tem seus inconvenientes, como tudo neste mundo; mas é bom, com a condição única de o aceitarmos como ele deve ser...

- Um pouco livre? - disse Félix sorrindo.

- Não sei se pouco ou muito, é questão de temperamento. O essencial é que seja livre. Eu assim o entendo e pratico; sou um pecador miserável, confesso, mas tenho ao menos o mérito de não ser hipócrita, e agora mesmo...

- Agora mesmo? - repetiu Félix depois de alguns instantes de silêncio.

- Não sei se deva contar-lhe isto; o senhor é ainda neófito, vai naturalmente aborrecer-se e amaldiçoar-me... Mas, em suma, é indispensável que eu lhe diga tudo, porque isso prende com o motivo que me traz à sua casa.

Batista aceitou uma xícara de café que o médico lhe ofereceu. Depois, com um modo acintemente leviano, referiu ao dono da casa uma aventura amorosa daqueles últimos dias. Tratava-se de uma mulher caprichosa e requestada. Seu triunfo era portanto duas vezes glorioso. Como beleza, desafiava ao próprio médico a resistir-lhe depois de meia hora de contemplação. Achar-se-iam, talvez, outras mulheres mais formosas; nenhuma, porém, tinha como essa o misterioso encanto que sabe agrilhoar a vontade mais rebelde.

- Quando ela me fita os seus grandes olhos - continuou pinturescamente Luís Batista -, é o mesmo que se me entornasse chumbo derretido nas veias.

Todo o estilo da sua descrição era assim - galhofeiro e sensual. Falou durante vinte minutos com o entusiasmo próprio da sua situação. Félix ouvia pacientemente a narração do hóspede, sem atinar com a relação que teria aquilo com o pedido que lhe ia fazer. Interiormente estava aborrecido. Não fora o médico em sua longa vida de rapaz solteiro nem casto nem cauto; mas a atmosfera do noivado começava a arejar-lhe o espírito, e semelhante confidência, naquela ocasião, lhe parecia de todo ponto extravagante.

- Não desconheço - disse Luís Batista quando concluiu a sua expansão amorosa -, não desconheço que uma aventura destas, em véspera de noivado, produz igual efeito ao de uma ária de Offenbach no meio de uma melodia de Weber. Mas, meu caro amigo, é lei da natureza humana que cada um trate do que lhe dá mais gosto. A vida é uma ópera bufa com intervalos de música séria. O senhor está num intervalo; delicie-se com o seu Weber até que se levante o pano para recomeçar o seu Offenbach. Estou certo de que virá cancanear comigo, e afirmo-lhe que achará bom parceiro.

Dizendo isto, Luís Batista engoliu o resto, já frio, do café que tinha na xícara, acendeu de novo o charuto, e recostou-se na cadeira. Félix teve tempo de reassumir a atitude tranquila que as últimas palavras de Batista lhe haviam alterado.

- Enfim - disse ele -, que ligação há entre essa aventura e o pedido que me vai fazer?

- Toda - respondeu Batista -; se ela não existisse, eu não viria pedir-lhe nenhum favor. O senhor sabe o que é um capricho de mulher amante; não ignora também que o menor desejo dela é uma ordem para o cavalheiro seu escolhido.

Félix fez um gesto afirmativo.

- Pois bem - continuou Batista. Estamos nesse caso. Ela é extremamente caprichosa, e mais ainda que caprichosa, é amante de cousas d'arte. Há dias fui achá-la aborrecida. Interroguei-a; nada me quis dizer. Pela conversa adiante falou-me duas ou três vezes numa gravura que vira na rua do Ouvidor, e que o dono vendera quando ela lá voltou, disposta a comprá-la. O assunto era o mais ortodoxo possível: a israelita Betsabé no banho e o rei Davi a espreitá-la do seu eirado. Não lhe parece galante? A gravura creio que era finíssima; mas tinha, além disso, um merecimento para a pessoa de quem lhe falo: é que a figura de Betsabé era a cópia exata das suas feições. Vaidade de moça bonita. Mostrava-se tão desconsolada quando falava naquilo, que facilmente percebi não ser outro o motivo do aborrecimento em que a fui encontrar.

- E então?

- Fiz o que faria qualquer outro. Era necessário que a todo o trance ela possuísse um exemplar da gravura. Fui procurá-lo, e não achei. Gastei dous longos dias nessas pesquisas, e quando voltei à casa dela não tive remédio senão tirar-lhe a última esperança. Ela apertou-me afetuosamente as mãos, e agradeceu-me o trabalho, dizendo-me que era mais uma prova de amor que lhe dava; concluiu, porém, tudo isso com um suspiro. Eu não me atrevo a dizer ao senhor o que quer dizer um suspiro neste caso; aquele suspiro era uma insistência do desejo.

- Parece que sim - disse Félix que já adivinhara o final da exposição.

- Dir-me-á o senhor - continuou Batista - que eu devia aproveitar o paquete que partiu ontem e mandar vir da Europa a gravura. Não duvidaria fazê-lo, e ela esperaria de boa vontade; mas quem pode afirmar que o meu amor dure até à volta do paquete? Tive então uma ideia salvadora.

- Ah!

- Voltei à loja onde ela vira a gravura e inquiri do dono da casa quem lha havia comprado. Depois de algum trabalho de memória disse-me que fora o senhor. A princípio hesitei se devia importuná-lo. O pedido não seria indiscreto em qualquer outra ocasião; mas, quando o senhor está para tomar um estado moral, rogar-lhe que me ajude a enxugar as lágrimas de uma bela pecadora, é mais que indiscrição, é atrevimento. Hesitei, a voz da razão era mais fraca que a do pecado, e venceu o pecado.

Luís Batista calou-se, esperando a resposta do médico. Houve um largo silêncio.

Levantaram-se da mesa e foram para a sala, sem que Félix desse a resposta. Luís Batista foi o primeiro que tornou ao assunto.

- Não me pode fazer o que lhe peço? - disse ele.

- Tenho estado a perguntar a mim mesmo se me é lícito fazê-lo - respondeu Félix sorrindo -, e se ao entrar nas fileiras do matrimônio devo ajudar a deserção de um camarada.

Luís Batista estava naquele dia singularmente falador. A simples observação do médico deu azo a um largo discurso a respeito do regímen matrimonial. Era meio-dia; Félix estava já fatigado da visita e da palestra. Aproveitou um interstício para dizer:

- Em suma, tem grande desejo de possuir a gravura?

- Queria que ma cedesse.

- Faço-lhe presente dela.

- Eu não desejava de nenhum modo prejudicá-lo - disse Batista -; há de consentir então que eu lhe faça um presente de noivado.

Félix não respondeu; foi buscar a disputada gravura e trouxe-lha. Luís Batista não pôde reter um grito de surpresa. A figura de Betsabé, dizia ele, parecia realmente uma cópia da sua dama. A dama era talvez mais formosa do que a cópia.

Foi nesse momento que trouxeram ao médico uma carta, entregue pelo correio. Félix abriu-a distraidamente, mas tanto que lhe leu o conteúdo ficou muito pálido e encostou-se a uma cadeira. Com a mão trêmula aproximou o papel dos olhos, enquanto os dentes mordiam os lábios até deitar sangue. Luís Batista aproximou-se rapidamente de Félix e perguntou-lhe o que tinha.

- Nada - disse o médico -, uma vertigem apenas... Há de dar-me licença, preciso estar só.

O hóspede curvou-se, sorriu e saiu.

Félix encerrou-se no seu quarto. Do que lá se passou ninguém de casa soube: algum rumor se ouvia de quando em quando, mas abafado, e uma ou outra exclamação vaga e solta. Eram quatro horas quando o médico saiu à sala.

O tempo tinha melhorado. O sol reaparecera entre duas nuvens, dando de chapa nas árvores molhadas de chuva e nos telhados que escorriam um resto de água. Dissera-se que a natureza queria fazer outro contraste ao inverso do da manhã, porque, se a tarde sorria alegre, o homem dava sinais de tempestade interior. Tinha os olhos vermelhos, a boca contraída, os cabelos em desordem. Saiu com passo vacilante. De quando em quando, colhia o alento com a expressão de quem lhe custa respirar. Um escravo, a que ele deu algumas ordes, reparou no estado do senhor, e perguntou-lhe se estava doente.

Félix respondeu secamente que não. O escravo abanou a cabeça e saiu.

Félix escreveu em seguida uma carta que sobrescritou para a viúva. Vestiu-se depois. Não tardou que lhe parasse um carro à porta. Meteu-se nele e mandou tocar para a cidade.

XXI

ÚLTIMO GOLPE

Era já sobretarde quando a carta chegou às mãos da viúva. Viana descera à chácara, enquanto a irmã dividia a atenção entre os gracejos do filho e o seu próprio pensamento. O menino enchia toda a sala com a sua pessoa; as travessuras dele não eram enfadonhas. Lívia não o contemplava só com os olhos de mãe; via nele como que o elo de ouro entre uma quimera desfeita e uma quimera realizada. Tais eram as suas reflexões quando a mucama lhe veio trazer a carta de Félix. Entregou-lha e saiu.

Lívia estremeceu; a letra do sobrescrito revelava o estado febril da mão que o escrevera. Abriu rapidamente a carta e leu-a.

Quando Luís, numa das suas voltas, se chegou à mãe, achou-a com os olhos cravados no chão, trêmula e pálida. Chamou por ela, inutilmente. Agarrou-lhe as mãos e a moça pareceu acordar de um letargo.

- Que tem, mamãe? - perguntou o menino afagando-a com voz lacrimosa.

Lívia não respondera a princípio. A voz da criança chamou-a enfim à realidade. Olhou vagamente à roda da sala, e como se a pouco e pouco lhe voltasse a consciência, dirigiu lentamente os olhos à carta fatal. Tinha-a ainda entre as mãos. Releu-a com ansiedade, levantou-se arrebatadamente, deu alguns passos e de novo se deixou cair na cadeira. O menino correu à porta assustado. O tio entrava nesse momento.

- Que é? - disse Viana vendo o ar assustado do menino, e as feições decompostas da irmã.

Lívia entregou-lhe a carta. A carta dizia assim:

“Lívia

O que vou fazer é indigno, bem o sei; mas é ainda mais cruel do que indigno. O nosso casamento é fatalmente impossível. Não tens nenhuma culpa direta nem indireta na minha resolução. Esta carta, que me condena, será a tua cabal defesa.

Adeus.

Félix”

Quando Viana acabou de ler este estranho e misterioso documento, ficou tão pálido como a irmã. Não compreendia nada do que se passava; indignava-o, todavia, o procedimento de Félix. Sufocou a cólera a ver se evitava a explosão da viúva. Olharam-se ambos silenciosamente alguns instantes; o menino tinha-se aproximado e segurava uma das mãos da mãe, olhando para o tio como se esperasse dele alguma explicação.

- Recusa - disse enfim Viana - e nenhuma explicação nos dá do seu procedimento. O ato é tão indigno que não te deve mortificar; quando um homem dá este triste documento da sua lealdade, penso que a mulher que o ama pode dar graças a Deus de o não ter acompanhado até o altar. Espero que penses como eu...

Viana não pôde acabar. As lágrimas, tanto tempo sustidas, romperam enfim dos olhos da viúva, impetuosas e amargas. A dor, de tão concentrada que fora a princípio, fez-se violenta e explosiva; mas o organismo estava tão abalado por tantas comoções, que a infeliz moça perdeu os sentidos.

Quando ela voltou a si era noite; achou-se no seu próprio leito, tendo ao pé de si o irmão e um médico. O médico falou-lhe e ela respondeu sem saber o que dizia nem o que ouvia. A febre era intensa, mas o médico esperava que no dia seguinte cedesse à energia do remédio que lhe ia aplicar.

Viana ficou só com a irmã, e procurou distraí-la do sucesso da tarde, tarefa inútil porque a viúva não pensava nele; o olhar vago indicava que ainda se não havia feito luz no seu espírito. Às vezes contraía os sobrolhos e fitava o olhar no espaço como se estivesse a recordar-se. Numa dessas vezes volveu os olhos pelo quarto parecendo procurar alguém. A ausência de Félix de todo lhe alumiou o espírito.

Deu um grito abafado e desatou a chorar.

Acorreu o irmão, com palavras de brandura e conselho, dizendo-lhe que nem tudo estava perdido, e que era possível remediar o mal. Lívia não prestava fé a essas vãs consolações; estava entregue ao seu desespero. Abafada com soluços, lavada em lágrimas, soltava gritos de angústia, e convulsivamente se revolvia no leito.

Viana teve medo desse grave estado e mandou chamar o médico. Quando este chegou, já a doente havia sossegado; mas, com as lágrimas, tinha-se ido a razão. O delírio durou toda a noite e parte da manhã seguinte. De tarde a febre declinou um pouco e a doente adormeceu.

Só no dia seguinte, quando o abatimento veio substituir a exaltação, pôde a moça refletir no recente infortúnio. Debalde perguntava a si mesma a causa daquele súbito rompimento do noivo, nada lho explicava. Algum mistério haveria, alguma razão aparentemente legítima porque à viúva nada lhe dizia o coração que fosse contrário à lealdade de Félix.

Contou-lhe o irmão que havia ido à casa do médico, e não o encontrara, nem lá lhe quiseram dizer para onde fora. Agora, depois de maduro exame, pensava em ir pedir-lhe uma explicação do procedimento.

Lívia desaprovou-lhe a resolução.

- Mas - disse Viana - não podemos ficar assim...

- Podemos - interrompeu a viúva -; enquanto estou doente a explicação será natural para os outros. Quando me levantar da cama direi que eu mesma desfiz o casamento. Achaste-me sempre singular; é provável que os outros me vejam com iguais olhos; e tudo se explicará da melhor maneira.

- Mas a explicação dele...

- A explicação dele não é precisa.

Raquel, apenas soube da doença de Lívia, foi passar alguns dias com ela. Naquelas circunstâncias o encontro de ambas foi profundamente triste. A viúva não lhe confiou logo a causa verdadeira da sua enfermidade, mas durou pouco a reserva, porque a ausência de Félix fez impressão na moça, e Lívia julgou melhor dizer-lhe tudo. Era a segunda vez que ambas achavam no seio uma da outra, não a consolação, que não a há para as desilusões recentes, mas o adormecimento momentâneo do coração.

Lívia entrou a convalescer do abalo que lhe dera a fatal carta. Raquel tornara-se enfermeira dedicada e continuou a ser o que sempre fora, amiga afetuosa. A viúva não acreditava na realidade do seu restabelecimento. Em sua opinião, era uma aparência que a realidade desfaria em pouco tempo.

Dez dias depois do rompimento de Félix, apareceu Meneses nas Laranjeiras. Tinha ouvido algumas perguntas relativas ao casamento do médico, que sabia não se ter efetuado, sem que até então transpirasse a causa verdadeira. Soube, porém, da moléstia de Lívia, e a isso atribuiu a demora do casamento.

A moça abafou um suspiro quando o viu entrar. Não era arrependimento; era talvez lástima de si própria, que não pudera aceitar esse coração mais confiante e menos escabroso que o do outro.

Mas se era já impossível uma aliança que a natureza não aconselhara, ainda que o pedira a razão, vinha de molde o amigo a quem confiaria os seus infortúnios. Esse foi o primeiro impulso; o segundo foi, não de orgulho, mas de pudor. O coração teve pejo de ir confessar o seu erro diante daquele mesmo a quem repelira um dia.

Era difícil que semelhante situação se escondesse aos olhos de Meneses. A ausência do noivo era inexplicável; Meneses suspeitou a verdade e Raquel lha confirmou. O fim com que a donzela delatou o segredo confiado foi ainda um sacrifício; pediu a intervenção de Meneses para a reconciliação do médico com a viúva.

- Peço-lhe uma cousa difícil - concluiu ela aludindo pela primeira vez ao amor de Meneses -, mas é uma boa ação.

- É uma boa ação, e não é difícil - replicou Meneses olhando para ela fixamente.

Raquel abaixou severamente os olhos. Um espectador atento concluiria, talvez, que a ferida dele não estava longe de cicatrizar, mas que, pelo contrário, a dela continuava a deitar sangue.

Meneses dispôs-se a tentar alguma cousa. Reconhecia que o procedimento de Félix era misterioso; mas não desesperou de lhe descobrir a causa e confiava em que poderia removê-la. Conseguiu saber que o médico se refugiara na Tijuca. Quando estava pronto a ir ter com ele, hesitou, refletiu e recuou da primeira resolução.

Foi preciso que uma nova crise o empuxasse para lá. A viúva recaíra enferma, não tendo podido resistir às longas vigílias e maldormidas noites. A moléstia desta vez trouxe um caráter menos violento que da primeira vez, mas pertinaz; a febre não era intensa, era constante. O médico assistente não achou que houvesse perigo; recomendou o mais desvelado tratamento, e repouso absoluto de espírito.

Meneses não hesitou; partiu para a Tijuca.

XXII

A CARTA

Quando Meneses chegou à Tijuca eram quatro horas da tarde. A casa de Félix ficava afastada do caminho. O portão estava aberto; Meneses atravessou rapidamente o espaço que ia da estrada à casa e bateu. Veio um moleque abrir-lhe a porta. Meneses entrou precipitadamente e perguntou:

- Onde esta o senhor?

- Senhor não fala a ninguém - respondeu o moleque com a mão na chave como se o convidasse a sair.

- Há de falar comigo - insistiu resolutamente Meneses.

O tom decidido do rapaz abalou o escravo, cujo espírito, costumado à obediência, não sabia quase distingui-la do dever. Seguiram ambos por um corredor, chegaram diante de outra porta, e aí o moleque, antes de a abrir, recomendou a Meneses que esperasse fora. Perdida recomendação, porque, apenas o moleque abriu a porta, Meneses entrou afoutamente atrás dele.

Era um gabinete pequeno com quatro janelas que o enchiam de luz. Perto de uma janela havia uma rede estendida. Sobre a rede via-se um homem negligentemente deitado com um livro nas mãos.

Era Félix.

Félix levantou a cabeça, deu com os olhos em Meneses, e empalideceu. Meneses não dera um passo mais. Ficaram assim alguns segundos a olhar um para o outro. Enfim, o médico disse ao escravo que se retirasse, e os dous ficaram sós.

O silêncio prolongou-se ainda mais. Da parte de Félix era confusão; da parte de Meneses, desapontamento. Viera ele em todo o caminho a descrever na imaginação o estado de Félix, acabrunhado por alguma grande dor, e em vez disso achava-o a ler pacificamente um livro. Quis lançar mão do livro, para conhecer bem até que ponto a sua desilusão era completa; mas o médico rapidamente o afastou.

- Não atendeste à ordem geral que eu havia dado - disse enfim, o dono da casa - e creio que só alguma razão poderosa te obrigaria a isso.

- Assim era - retorquiu Meneses -, mas a razão acabou e eu volto para a cidade.

Dizendo isto, pôs o chapéu na cabeça e dirigiu-se para a porta. Parou um instante, caminhou de novo até a rede e proferiu secamente estas palavras:

- Tens consciência do que fizeste?

- Tenho - respondeu Félix -; fiz o que me cumpria fazer. Mas, antes de mais nada, vens aqui por inspiração tua ou por mandado de...

- Venho porque era um dever da minha parte livrar-te da vergonha, e a ela, da morte.

- Da morte! - exclamou Félix levantando-se de um pulo.

O terror que se lhe pintara no rosto fez boa impressão no amigo. Suspeitou este que nem tudo estivesse perdido. Sentaram-se ambos, e Meneses referiu ao médico os acontecimentos que deixo narrados no capítulo anterior. Félix escutou a narração do amigo com um interesse que não podia vir senão do amor. Meneses concluiu pintando-lhe com as cores que o caso pedia a baixeza do seu procedimento, o desaire que recaía sobre a viúva, e o remorso que o havia de acompanhar a ele, ainda quando daquele triste episódio não saísse nenhuma fatal consequência.

Félix mostrou-se profundamente comovido com a narração de Meneses e as reflexões que lhe fizera.

- Tens razão - disse ele quando o amigo acabou de falar -; procedi covardemente. Ela ainda me ama... E perdoa-me, não é? Sim, há de perdoar-me... Pobre Lívia! Se tu soubesses como ela tem sofrido por minha causa!...

Meneses, satisfeito, disse-lhe que era indispensável voltar à cidade. Enquanto falava, porém, o rosto de Félix mudou de expressão. A única resposta do médico foi:

- Não! O que está feito, está feito; agora é impossível recuar.

- Impossível! - gritou Meneses.

- Impossível - repetiu placidamente Félix.

Meneses levantou-se impaciente e começou a passear. A serenidade do médico mais lhe doía do que indignava, porque alguma razão poderosa devia ele ter para cortar tão peremptoriamente toda a tentativa de reconciliação. Quisera sabê-la e tremia de o interrogar.

O médico, entretanto, deixara-se estar sentado, quase tão tranquilo como na ocasião em que Meneses lhe entrara no gabinete.

Não era fingida essa tranquilidade, que durava já de alguns dias, depois de outros - os primeiros -, que foram de aflitiva tempestade.

O homem não se esconde de si mesmo, e o maior infortúnio dos corações pusilânimes é sentirem que o são. Quando Félix chegou à Tijuca tinha passado a excitação do primeiro momento; o espírito, fraco de si, e abatido pela imensidade do abalo, não achou na solidão o alívio que lhe pedira. Vieram então muitos dias de luta e de febre, em que ele, para fortalecer o ânimo, lia e relia a misteriosa carta que trouxera consigo. O remédio era antes veneno para a sua alma ulcerada; lembrava-lhe a felicidade que perdera.

Era isto o que padecia o coração. A consciência padecia também, porque a sociedade, que ele não vira no primeiro instante, agora lhe aparecia como um juiz inflexível, a pedir-lhe conta de uma injúria sem explicação. Às vezes arrependia-se do ato; outras vezes, não se arrependia, mas acusava-se de precipitado e louco. Nunca mais tristemente se revelara a inconsistência do espírito.

Com o tempo a consciência foi calando as vozes, e com o tempo, e a distância, e a sua índole variável, se lhe foi aquietando o coração. Aquele homem, que alguns dias antes chorava de desespero, nenhum vestígio guardara de suas lágrimas. Não se lhe apagara o amor da viúva, mas no lugar da paixão veemente, como que ficara apenas uma recordação remota e suave. Esta mudança era em parte obra do seu esforço, que buscava no esquecimento um refúgio; mas em grande parte era um efeito natural dele.

Tal foi a situação em que o achou Meneses. A presença deste trouxe à memória do médico a última crise do coração. A impressão foi grande, não longa; a face do lago, que uma rajada encrespara, voltou à serenidade primitiva.

Meneses passeava de um lado para outro, a observar de quando em quando o médico. Ao seu espírito repugnava a ideia de que Félix recorresse a um meio extraordinário para sair de uma situação difícil, não sancionada pelo coração. Uma causa havia, decerto, que se lhe afigurava grave, e que ele a todo custo queria conhecer. Seus esforços convergiam para esse ponto. Instado pelo amigo, Félix aludiu à carta que recebera, mas recusou mostrá-la.

- Há nela um segredo - disse ele - que me impede de a comunicar a ninguém. Lívia tem jus ao meu respeito e possui ainda o meu amor.

Estas últimas palavras foram ditas com certa comoção. Meneses não perdeu a esperança de o vencer. A sinceridade era a sua eloquência; podia-se dizer que ele falava com o coração nas mãos. O espírito de Félix ia cedendo ao encanto; ele mesmo recordava as horas felizes do passado e as saudosas esperanças do futuro. O coração palpitou-lhe com mais força e a imaginação fez o resto. A carta, porém, a fatal carta lhe ocupou logo o pensamento, e a fronte descaiu diante do insuperável obstáculo. Cansado de lutar, Meneses resolveu partir para a cidade.

- Não sei o que pensarão os outros - disse ele -; eu levo a suspeita de que não a amaste nunca, e que esse rompimento estrepitoso foi um meio de salvar a tua liberdade.

Ouvindo estas palavras, Félix não pode conter um gesto de cólera. A atitude quieta de Meneses o fez cair em si.

- Tens razão - disse ele depois de algum tempo -. Quero que pelo menos alguém me reconheça inocente e digno. Dás-me a tua palavra de honra que nada revelarás do que vais ler?

- Dou.

Félix foi buscar a carteira, tirou dela a carta, e entregou-a a Meneses.

Meneses leu o que se segue:

“Mísero moço! És amado como era o outro; serás humilhado como ele. No fim de alguns meses terás um Cireneu para te ajudar a carregar a cruz, como teve o outro, por cuja razão se foi desta para a melhor. Se ainda é tempo, recua!”

A carta não tinha assinatura.

Meneses ficou atônito; mas foi obra de alguns instantes, poucos. Sua índole generosa repelia a ideia de acreditar na revelação que acabava de ler.

- É impossível! - disse ele.

Félix ergueu a cabeça, que apertava entre as mãos, e replicou:

- Essa é a tua convicção; eu quisera que fosse a minha. Mas que testemunho tens tu contra o que aí vês escrito?

- Não sei - respondeu Meneses com calor -, mas é o que me diz o coração. Repugna-me crer que essa pobre senhora... Não, é impossível! Demais, uma carta anônima!

- Põe o nome que quiseres aí embaixo; não lhe aumentas nem lhe tiras o valor, se a revelação é verdadeira.

- Quem te diz que é verdadeira?

- Quem me diz que o não é? A dúvida era já bastante para justificar o que fiz. Não foi só o receio do futuro que me impeliu, foi principalmente a lembrança do passado. A traição dela, se a houve, não deve doer nada ao marido que se foi; mas, ao marido que vem, a ideia da perfídia anterior destrói pela base toda a confiança, que é a condição da felicidade. Não sei o que farias tu no meu caso; eu segui o impulso do coração e da razão.

Meneses ouvira atentamente o amigo. Quando ele acabou:

- Creio-te sincero - disse -; e compreendo que sofreste.

- Muito!

- Mas recusarás uma reflexão? Quem escreveria esta carta? Não foi um amigo, decerto. Um amigo, se lhe pesasse o teu ato, viria falar-te cara a cara. Um indiferente também não foi. Resta, pois, um inimigo, teu ou dela...

- Dela?

- Ou um interessado: escolhe.

Félix refletiu um instante.

- Inimigo, não sei se os tinha; interessado... em quê?

- Ela é rica; algum pretendente...

- Não havia nenhum.

Meneses não fraqueou na defesa da sua hipótese. Quanto mais atentava na revelação da carta, mais o coração lhe bradava contra ela. Para ele a inocência de Lívia era clara como o sol. Félix sentia-lhe a convicção, e lastimava-se de a não ter, tão viva e tão profunda.

A noite caíra de todo. Meneses declarou que só voltaria à cidade no dia seguinte.

Félix compreendeu que o amigo não perdera a esperança de o converter e, longe de se irritar, agradeceu-lhe a intenção. Era a primeira vez que ele se expandia com alguém a respeito do seu amor; fê-lo com abundância e sinceridade. Não lhe lembrara sequer que Meneses também amara a viúva.

Muitas vezes falaram da carta. Meneses perguntou ao médico em que circunstâncias a recebera. Félix referiu a visita de Luís Batista, o objeto dela, a conversa travada entre ambos, até que a carta lhe chegou às mãos.

A singularidade da visita de Luís Batista não escapou a Meneses.

- Visitava-te esse homem? - perguntou ele.

- Nunca.

- Eras amigo dele?

- Havia mais razões para sermos inimigos que outra cousa.

Meneses hesitou; não se atrevia a desposar uma suspeita. Mas o espírito do médico era terreno fecundo para ela. Apenas as perguntas de Meneses lhe deitaram o gérmen, para logo foi lançando raízes e cresceu.

- Crês então que ele?... - aventurou o médico.

- Não sei; mas, não te parece curiosa toda essa história de gravuras?

Félix refletiu algum tempo. Como quando os olhos se vão acostumando à meia-luz de um sítio, e começam a distinguir a pouco e pouco os objetos, o espírito do médico entrou a recordar e a examinar todos os incidentes daquela fatal manhã. O que ele a princípio não vira, apareceu-lhe então claro e evidente. O tom ameno e jovial de Luís Batista, a sua estranha verbosidade, o episódio dos amores tão levemente contados a um homem que não era seu natural confidente, tudo isto com a circunstância da humilhação que recebera quando a viúva lhe fechou a sua sala, enfim, a má reputação dele eram indícios de sobejo para não achar natural a visita que lhe fizera. Mas, como deduzir daqui a autoria da carta?

Meneses resolveu a dúvida naturalmente.

- Se não desses crédito à carta - disse ele -, o último de quem te lembrarias seria Luís Batista, porque ninguém faz mal a um homem no mesmo instante em que lhe vai pedir um favor.

Félix aceitou esta explicação; mas o que acabou de o convencer foi uma circunstância até então deslembrada e agora decisiva. O médico levantou-se rapidamente da cadeira; deu alguns passos na sala e parou em frente de Meneses.

- É verdade - disse -; foi ele com certeza! Quando eu li a carta fiquei fulminado. Ele aproximou-se de mim; eu pedi-lhe que me deixasse só. Obedeceu, mas um sorriso, que então me pareceu feroz indiferença, mas que hoje vejo que era de triunfo, lhe roçou os lábios. Foi ele; oh! Sinto que foi ele.

Entendamo-nos, leitor; eu, que te estou contando esta história, posso afirmar-te que a carta era efetivamente de Luís Batista. A convicção porém do médico - sincera, decerto - era menos sólida e pausada do que convinha. A alma dele deixava-se ir ao sabor de uma desconfiança nova, que as circunstâncias favoreciam e justificavam.

Quando Meneses viu que o maior trabalho estava feito, não teve mais que falar outra vez de Lívia. A placidez do médico desaparecera; todo ele era agora amor e ódio, arrependimento e vingança. A noite foi maldormida, e quando a aurora os convidou a sair do leito, Félix era totalmente outro. Ardia por ir fazer ao pés da viúva plena confissão da sua indignidade. Era o nome que lhe dava; dar-lhe-ia outro, se os acontecimentos o fizessem duvidar outra vez.

Apressaram a viagem; Meneses estava alegre com o resultado da missão; lamentou com o médico a fatalidade do caso, mas estava certo de que tudo ia acabar como devia. Mil ideias cor-de-rosa enchiam o cérebro de Félix, e ambos desceram rapidamente na direção da cidade.

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